19/02/2014

Esther e Sarah


  Sarah chega em casa pensando na aula de philosophia de hoje. Sempre gostou da matéria, mas às vezes aparece um professor que tenta enfiar em suas cabeças, na marra, uma opinião pessoal como se fosse uma lei da física. Não raro, com um pouco de pesquisa, a garota descobre que ele pouco faz além de jogar nos alunos as suas frustrações e seus traumas recolhidos. Entra já procurando pela mãe, como sempre fez, Dá-lhe um abraço, um chamego, os tem retribuídos e vai desmontar o figurino de estudante, para ajudar na cozinha.

  Após uma pausa, aproveitando que o pai e o irmão estão viajando, aborda Esther sem o risco de ter a conversa interrompida...

- Mamma... Qual a sua motivação pra viver?
- Nenhuma, Sarah. Por que?
- Como assim "nenhuma", mamma??
- Eu não preciso de motivações. Eu faço o que for necessário e pronto!
- Então a vida, pra senhora, é uma necessidade?
- Também não. A vida é um meio básico de eu satisfazer uma necessidade.

  Sarah observa a mãe com a sobrancelha esquerda levantada, fazendo cara de "Meu D'us, que maluquice é essa?", arrancando uma gargalhada da genitora, que assim se distrai um pouco de seu crochê...

- Juro pelas tábuas sagradas que não entendi.
- Sarah! Você realmente precisa de um motivo para fazer alguma coisa, minha filha? Precisa mesmo sentir que será recompensada de alguma forma?
- Não...
- "Não"? Tem certeza?

Ela encara seu rebento com um sorriso bem esticado, como se dissesse "Não minta para mim, te conheço melhor do que você mesma". O sorrisão e o olhar de piedade encorajam arriscar uma resposta...

- Quer dizer... Eu espero que o que eu for fazer, me traga alguma satisfação, mas isso é básico, não é?
- "Mas isso é básico, não é?" Sarah? Minha filha, você não tem certeza de sua convicção?
- Eu... Mamma, não faz isso comigo...
- Tem?
- Não...
- Óptimo! Isso é muito bom. A falta dessa certeza te abre à humildade para reconhecer um possível erro, e mudar sua linha de pensamento quando for necessário.Você sabe por que eu estou fazendo esta toalhinha de crochê?
- Para o papa não se incomodar com o suor na nuca.
- Isso mesmo. E por que eu estou fazendo isso por ele?
- Porque o ama, é claro.
- Não. Amo seu pai independente de qualquer fator, apesar de todos os defeitos dele. Eu fiz guardanapos para colocar entre os pratos, no armário da cozinha, mas não tenho o menor amor por eles. Faço esta toalha porque ela é necessária. Decerto que eu vou ficar muito feliz de seu pai ter algo confortável para absorver o suor, nos trabalhos de campo, mas eu não estou fazendo isto para eu me sentir feliz, estou fazendo para o problema dele ser resolvido sem que outros venham por efeito colateral.
- Então a senhora faria algo assim para os garis da nossa rua?
- Faria? Não, eu fiz toalhas de algodão para eles prenderem atrás dos bonés, para sofrerem menos com a insolação.

  Sarah medita por alguns segundos, já com as sobrancelhas devidamente alinhadas. Olha para a mãe, que já ostenta uma expressão meiga, se recosta no sofá e se abre...

- Estou ouvindo, mamma.
- Sarah, minha joia, se eu fosse expressar meu amor por seu pai em uma toalha de bolso, ela não seria de crochê. Meu trabalho seria inglório, jamais terminaria porque eu nunca conseguiria colocar em um objecto o que tenho para ele em meu coração. Também não devo ser egoísta de só fazer esta toalhinha porque o amo, estaria me presenteando, a solução do problema dele seria secundária. Eu estaria sendo egoísta. Da mesma forma, eu estaria sendo cruel comigo se me impusesse essa tarefa, seria um círculo vicioso. Se o facto de ser necessário e estar na sua alçada não for uma motivação em si, minha filha, então você não quer realmente fazer algo. Se eu fosse precisar de recompensas motivacionais para viver, eu já estaria morta. Já tentei suicídio, sabia?

Ela não responde, apenas se agarra aterrorizada à mãe. A olha como se a segurasse pendurada no trigésimo andar. Esther, por sua vez, a acolhe e afaga, mas com um olhar impassível...

- Você não teria nascido, se eu tivesse cedido àquela tentação.
- Mas agora você estaria sofrendo muito!
- Ah, minha joia! Você começou a entender. Foi uma fase, já passou. Foi bem antes de eu me debruçar na nossa doutrina. Um dia eu te conto. O facto é que eu não tinha motivos para continuar viva, não sentia prazer nenhum em acordar todas as manhãs e ter que esperar dar dez da noite para voltar a dormir e me livrar do mundo, por algumas horas. Eu estava sendo muito egoísta e ingrata, Sarah! Muito mesmo! Eu só pensei no meu prazer, me iludindo com os pensamentos de que minha família viveria melhor sem um peso morto para alimentar. Eu não estava realmente pensando nela, estava pensando no meu umbigo e em nada mais. É isso o que acontece com a maioria absoluta das pessoas, Sarah, elas precisam de uma luz no fim do túnel para continuar caminhando, por isso param de andar quando não a enxergam mais; geralmente não a enxergam porque passam a olhar para baixo, para o umbigo, quando ela está lá na frente, ligeiramente para o alto. A escuridão pode até te privar da visão, momentaneamente, mas não te torna paraplégica. O prazer que tanta gente busca, minha joia, pode ser obtido de graça, todos os dias, se essa gente parar de adular o próprio ego e passar a fazer as coisas que precisam ser feitas, sem pensar em mais nada além de concluir a contento a tarefa. Existe um prazer sutil, mas duradouro, que vem como conseqüência natural. Não fique assim, a Esther estúpida daquela época já não tem nada a ver comigo.

- Fiquei com medo.
- Você pararia por causa desse medo?
- Acho que não, mas ele dói.

  Ela afaga o rosto da filha, fazendo uma expressão mais terna...


- Então você está entendendo, mas ainda precisa de refinamentos. Sarah, uma das coisas que eu aprendi com minha vida, é que a única coisa que justifica pensar em recompensas imediatas, é trabalhar em um emprego ruim. E olhe lá! Quando você foca na recompensa, acaba perdendo o padrão de qualidade que teria no que estiver fazendo, e muitas vezes perde também as lições que sua actividade tem para lhe dar. Eu não espero ser recompensada no trabalho doméstico, nem mesmo um sinal de gratidão, eu simplesmente me entrego ao serviço que tenho a fazer sem pensar em outra coisa. Mas sou recompensada assim mesmo. A primeira recompensa que vem é o tempo bem preenchido, sem ter lugar para arrependimentos. Há uma sensação de poder também, com o tempo você se torna muito mais forte do que as dificuldades do cotidiano, é como se a vida passasse a te respeitar. A terceira recompensa, você conhece bem, foi eu ter me tornado ama e senhora de mim mesma; nenhum pensamento ou sentimento derrotista tem vez em minha vida. Lembre-se de que eu não busco a serotonina produzida por essas sensações, que também não estão no meu horizonte, elas estão aqui dentro, comigo, e as renovo dia após dia. É mais um efeito positivo, eu me tornei uma pessoa mais tranqüila, porque a renovação diária não me permite atormentar pensando no dia em que serei feliz. Eu peço desculpas a você e seu irmão se nem sempre demonstro isso, é que essa felicidade também é uma conseqüência, por isso eu não demonstro a alegria escancarada que a maioria espera de uma pessoa feliz. percebe, Sarah? Eu não precisaria nem mesmo ter felicidade para continuar viva, ela vem atrás de mim. É como o prazer, que é um resultado maravilhoso, mas só traz frustrações quando é o objectivo. Faz parte de ser uma mulher madura, minha joia, dizer ás emoções quem realmente manda em quem, quem deve servir e quem deve ser servida, quem precisa realmente de quem pra existir. Não é conversa de livreto de auto ajuda de banca de revista, é o resultado de uma surra que a vida me deu e me fez aprender a ser gente.
- A senhora não é uma pessoa sem sal, mamma.
- Não, não sou. Eu sei que às vezes sou tempestuosa, chego a parecer cruel, mas ser equilibrada não me priva de ter reações intensas, pelo contrário, me dá base para tê-las e também o seu controle. Quem disse que uma pessoa equilibrada precisa ser insossa?
- Meu professor de philosophia.
- Aha, está tudo explicado! Mais um que se considera a última reserva intelectual da humanidade! Ele repete o tempo todo "Eu li Nietzsche, eu rinite, tendinite"?

  Sarah dispara a rir. Esther espera que os risos cessem, enquanto novamente afaga os cabelos da filha. Continua com sua explanação...


- Se há uma coisa em que os livros falham crassamente, é que raramente demonstram os caminhos que os pensadores percorreram para chegarem às suas conclusões. A motivação, lembre-se bem, pode transformar uma morte em assassinato ou legítima defesa, suicídio ou heroísmo. O desconhecimento da estrutura que resultou em uma conclusão, torna as consecutivas limitadas, rasas e frágeis, incapazes de resistir à menor mudança de rumos, que o mundo toma sem aviso prévio com relativa freqüência. Dizer, por exemplo, que o prazer é o motor da vida, é levar ao pé da letra as palavras de quem pode ter chegado a uma conclusão ligeiramente diferente, como ter observado as pessoas de sua época e concluído que o prazer é o motor de suas vidas. O pensador, em si, pode ter uma posição completamente diferente. Repetir para si mesmo "Oh, que grande sacada! Que pensamento genial! Vou repetí-lo até acreditar nele" é tudo o que a maioria dos "philósophos" diplomados faz. Arrebitam seus narizes e fingem ter piedade das pessoas comuns, que chamam de alienados e ignorantes, ignorando que dependem delas para sobreviver. Filha, um philósopho de verdade não tem vergonha de dizer que não entendeu algo, de discordar de um pensador famoso, porque ele medita sobre a vida e não sobre seu ego melindroso. Nietzsche, por exemplo, era um homem, falível e passional como qualquer outro, não uma deidade extremamente evoluída. Aliás, a philosophia, em sua essência, nos ensina justamente a abandonar o ego. Foi abandonando o meu ego que eu abandonei também os pensamentos suicidas. Eu não preciso dele, ele precisa de mim.
- Pena que eu não posso colocar isso na prova da escola.
- Não lance suas pérolas aos porcos, eles as comeriam. Dê respostas medíocres e padronizadas para os medíocres padrão, guarde seu intelecto para quem estiver aberto a ele. É até bom que esse intelectual de ar condicionado te subestime, vai te poupar dos aborrecimentos de ser desafiada para disputas egoicas de pseudophilosophia. Sabe aquelas discussões de pontos de vista que não acrescentam coisa alguma? Pois sim, é um dos tipos de disputas de que falei. Ah, pronto, terminei a toalhinha do seu pai. Estou satisfeita. Por falar nisso, você anda calada sobre seu namorado, o que houve?
- Eu não tinha namorado. Eu namorava meu próprio ego, agora eu entendi.

Vão à cozinha, laboratório alquímico da matriarca, preparar um lanche para repor a energia que seus cérebros consumiram durante a conversa.

12/02/2014

Ava Indelicada

Sim, eu sei passar roupas! Aliás, sua cara está tão amarrotada! Vem cá!

Colaborando com o hábito de usuários se valerem de gente realmente famosa para passar recados, ou só zoar mesmo, apresento prováveis frases que dariam certo com Ava Gardner, conhecida como "O mais belo animal do mundo", por seu temperamento tempestuoso e sua disposição em passar o ferro de roupas na cara do primeiro que a confrontasse. Sua sinceridade cortante era um dos melhores seletores de amizades que alguém poderia ter, e acreditem, muita gente a amava apesar de seus rompantes.
  • Então você se chocou com o que eu escrevi? Pois eu estou chocada por você saber ler.
  • Sim, eu estou com TPM, mas também estou com um ferro de passar roupas bem quente, e você está próximo demais para falar besteiras.
  • Eu respeito a sua opinião, só não quero saber dela.
  • Meus parabéns a você, que assiste televisão só para falar mal e depois faz campanha contra seus patrocinadores.
  • Sem essa de "Nada pessoal", é pessoal sim! Cai fora ou te arrebento!
  • Eu não guardo ressentimento, guardo seu nome, endereço, problemas de saúde e os números de alguns rapazes barra pesada.
  • Sim, eu tinha um minuto para ouvir a "Palavra do Senhor", mas vocês gastaram dois se apresentando. Adeus.
  • Sim, eu te amo, mas isso não te torna à prova de balas. Comporte-se.
  • Eu não quero vocês chorando no meu velório, quero ter o prazer de ver isso em vida.
  • Não, eu não estou sozinha, minha pistola e suas vinte e uma balas estão me acompanhando.
  • Então se eu te jogar aos lobos, você volta liderando a matilha? Vale à pena arriscar.
  • Seus melhores amigos são o espelho e a balança, pare de ignorá-los só porque te dizem a verdade.
  • Eu não vou te bater por tão pouco, precisa muito para me arriscar a cometer um crime ambiental.
  • Entenda, eu não sou violenta, violentas são suas demonstrações de imbecilidade aos meus pobres ouvidos, só estou me defendendo.
  • Vai me bloquear se eu continuar postando coisas assim? Jura? Promete mesmo?
  • Então você está cansado de sua família chata e careta? Quantas entrevistas para emprego você já fez mesmo?
  • Suas idéias não me impressionam, me impressiona você acreditar que tem alguma.
  • Então você se sente um completo idiota por ter feito uma besteira! Meus parabéns, alcançou o auto conhecimento.
  • O adolescente cheio de atitude chega e diz que teria sido muito melhor ter sido abortado, eu lhe dou os parabéns, nunca é tarde para reconhecer um erro. Agora se mata!
  • Não me incomodo tanto quando você posta o que está comendo, me irrita é insistir em postar o tempo todo o resultado da digestão.
  • É claro que eu não acordo linda, penteada e maquiada! Só um idiota como você pensaria que uma mulher faz um make up para dormir!
  • Sua coragem me impressiona! Não é qualquer um que xinga alguém com uma faca de churrasco na mão, só porque está do outro lado do monitor.
  • Não me impressiona certas pessoas postarem besteiras, me impressiona é elas saberem escrever, com a inteligência que demonstram.
  • Compreendo, você tem orgulho de ser hétero, quer trancar as mulheres em casa e ficar cercado só de homens o dia inteiro. Faz todo sentido.
  • Quando eu vejo alguém postando "Diga não" a qualquer coisa, me dá uma vontade de responder "E por que não?".
  • Não, não sou jovem e minha vida não é um livro aberto, muito menos para analphabetos funcionais como você.
  • Seus elogios não me comovem, pelo contrário, me fazem pensar no que eu teria feito de errado para ter te agradado tanto.
  • Eu sei que isto engorda e faz mal! Agora tira o olho do meu sanduíche e cai fora!
  • No meu tempo de actriz, usávamos apenas maquiagem e todos nos reconheciam nas ruas, hoje é preciso o retrato na revista com o nome da fulana, para o público saber de quem se trata.
  • Você pode ser sincero comigo, não me ofende, é até uma oportunidade para eu treinar minha mira.
  • Sua mãe disse que você é lindo? Ela aproveitou e disse quem é o seu pai?
  • Incrível como vocês aprendem valores nobres com desenhos idiotas! Mais incrível ainda é não colocarem nenhum em prática.
  • Não tenha inveja do papel dos outros no mundo, descubra o seu e seja feliz; provavelmente é o higiênico.
  • Mas é claro que eu tenho TPM, celulite e mau-humor! O que você quer namorar, uma mulher ou um traveco?
  • Eu não preciso de motivos para estar irritada! Eu estou e pronto! Cai fora!
  • Eu não estou louca! Te bati consciente do que estava fazendo.
  • Não, você não é um perfeito idiota, precisa melhorar muito para conseguir ser um mais ou menos.

Texto em honra à irmã astral Patrícia Balan.

07/02/2014

Poupem gerúndio

Twitter by Orlandelli

O Ministério do Racionamento adverte, o gerúndio está com os níveis mais baixos da história, desde que foi inventado, ainda na pré-história. Pedimos aos cidadãos que façam uso comedido da linguagem, para que não falte em um futuro próximo, pelo menos até a próxima safra ser colhida.

Não se trata de uma metáfora colorida, que floresce rapidamente em qualquer canto e  mesmo sem cuidados, o gerúndio é uma fruta fina que tem sido consumida com voracidade e desperdiçada sem dó. Então, antes de xingar os perdulários, o Senhor Ministro do Racionamento mandou comunicar o alerta, para conhecimento e providência popular.

Seguem algumas recomendações.

  • Evitem gerundiar sem necessidade. Usem sempre o presente ou o futuro simples, eles quase sempre resolvem o problema de comunicação, geralmente até melhor do que um gerúndio indevidamente colocado;
  • Não ponha dois gerúndios seguidos em uma  oração, muito menos em uma só frase. É sabido que o vício pelo gerundismo força alguns dos dependentes a aplicar até três doses seguidas, em uma só frase. Não reproduziremos para justamente dar o bom exemplo e poupar o artigo que, repito, escasseia rapidamente;
  • Faça duas ou três versões do texto, para se assegurar que aquela quantidade de gerúndios é realmente necessária à comunicação da idéia. Caso seja, faça o texto mais curto possível, de preferência com linguagem mais seca, com orientações para que as partes não respondam com a mesma fartura;
  • No decorrer dos acontecimentos, faça como os portugueses, informem que as coisas estão a acontecer ou que acontecerão. De início as pessoas estranharão, mas vão entender e logo se acostumarão, o que até aumentará a riqueza do linguajar do vulgo;
  • Não dê opiniões que não lhe forem solicitadas, pois o risco de gerundiar sem necessidade é muito grande. Grande parte do desperdício de gerúndios, se deve às colocações intrusas e à falta de conteúdo, que incluem o desperdício das palavras "enquanto", "nível" e "junto", cujos níveis também começam a baixar de modo preocupante;
  • Reaproveitem textos, assim as pessoas passarão por eles e só perceberão o que estiver realmente fora de lugar, já tendo conhecimento seu conteúdo, o que evita que gerundiem em pensamentos, conseqüentemente também por palavras ao balbuciarem o que lêem.

Caríssimos, a situação é crítica. O Ministério do Racionamento jamais pensou que algum dia, nem nos sonhos mais loucos, seria necessário fazer uso comedido de uma linguagem tão popular, mas os tempos nos dão lições duras, urge que tenhamos consciência e a pratiquemos

Os grandes focos de verborragia, ainda não estancados, são os intelectuais de ar-condicionado e o serviço público, este sabidamente desdenhador do erário, quanto mais do vocabulário. Suspeita-se que a intenção seja, a fim de não parecerem que não sabem o que estão falando, quando geralmente realmente não sabem mesmo, parecerem mais cultos e inteligentes, causando boa impressão no público com textos prolixos, repletos de retóricas,  dialéticas e, claro, gerúndios desnecessários.

Sabido também que essas pessoas são muitas vezes protegidas, não raro em cargos comissionados ou indicados por políticos aliados, pedimos a compreensão do cidadão ordinário, que não faz uso de linguajar rebuscado para impressionar terceiros. A culpa não é sua, mas como no racionamento do FHC, novamente cabe a nós o ônus de restaurar a normalidade linguística, com o uso estritamente necessário do gerúndio.

As redes sociais, no entanto, não escapam ao vício gerundiocômano, em especial quando se trata de algum garoto a tentar impressionar uma dama de grandes encantos, ou mesmo petizes ainda mais crus do que o mesmo.

Pedimos também que evitem o uso de "enquanto", "nível" e "junto", especialmente seguido das partículas "de", "ao" e "em", estas que ainda têm bons estoques, mas não mais confortáveis como quando de nossas mocidades.

Alertamos, caríssimos, que pode haver alguma impopularidade inicial, na adoção dessas medidas, mas elas são absolutamente necessárias e demandam a maior adesão possível, para que a população em geral também as adopte por imitação; afinal, é tudo o que a massa faz mesmo.

Se tudo mais falhar, teremos que importar o português lusitano e utilizá-lo de modo definitivo, o que mesmo assim pode não estancar a verborragia, nos obrigando à penosa e prolongada transição para substituição do idioma. Talvez tenhamos que falar romeno, se não quisermos nos tornar de facto colônia cultural dos americanos; sim o nome daquele país é América.

Sem mais, aqui termina o comunicado do Ministério do Racionamento.