25/06/2010

Para o pós-túmulo

Peço aos amigos, quando já não houver minha presença nesta casca, que não chorem mais do que o necessário. Desabafem, evitem que haja uma complicação por represamento de sentimentos fortes. Só isso.
Não guardem lembranças materiais, a não ser que realmente precisem delas. Precisando, são suas, mas certamente os poucos e frívolos bens que me tocam não lhes serão de grande utilidade.
Guardem de mim o melhor que dei a vocês. Não foram as palavras que a audição lhes fez esquecer, tampouco os abraços, que estes infelizmente não pude dar muitos. Guardem as lições de que servi, pois estas sim lhes serão de valia.
Peço ainda aos amigos que não se preocupem com o destino de um corpo vazio que já não serei eu, o destino pouco importa a quem não utiliza. Mas se decidirem prestar homenagens, uma última despedida, o que for, não sejam lúgubres.

Se forem sepultar, não ergam um mausoléu de cimento e mármore, oneroso e útil somente á apreciação de visitantes. Ergam uma praça. Não quero uma lápide fria e tétrica, mas alguns bancos que servirão para aproximar as pessoas e dar descanso aos exauridos, ou mesmo um momento de contemplação a olhos já cansados pela labuta insana que nos consome.

Plantem um jardim, plantem árvores frutíferas, arbustos e ervas aromáticas. Não se lembrem de mim com tristeza pela ausência. Sei que esta foi muitas vezes uma vilã que involuntariamente ajudei, peço que me desculpem, não pude estar ao seu lado para ceder um lenço e um ombro. Nossos planos nem sempre coincidem com os da vida, no meu caso os planos feitos foram todos ao lixo.

Não quero prantos senão entre risos, de saudades pelas bobagens que disse em um momento de insanidade, para alegrar alguém. Chorem quando a dor bater, mas deixem a ela e aos prantos no dia do baque. Luto não é bom, meus amigos. Necessário por alguns instantes, mas patológico se dura muito. As saudades virão, talvez alguém olhe a data na folhinha e estique a cabeça para fora da porta, para ver se já estou chegando, mas nesta condição não estarei, com o perdão do gerúndio. Saudades, porém, podem ser convertidas em algo bom e o tempo tem as ferramentas para tanto, deixem que ele as utilize.

Dessas bobagens, também me desculpem as que disse sem sentir. Vocês sabem, minha dicção sempre foi sofrível, minha capacidade de comunicação verbal tão pífia quanto minha beleza física. Nem sempre consegui me fazer compreender, com o tempo desisti e me ative à escrita, esta pelo menos não gagueja. As idéias embaralham com facilidade, vocês sabem, me conhecem um pouco.

Não escolham muito, qualquer lugar serve para um corpo inerte. Peço apenas que sobre ele venha uma muda de árvore, não uma decorativa, mas uma espécie grande e frondosa, sob a qual todos encontrem abrigo e sobre a qual as crianças de todas as idades encontrem entretenimento, refúgio, quem sabe até um local para meditação. Que seja grande como o abraço que gostaria de ter ofertado, para que ao menos assim o possa dar. Vocês terão filhos e gostaria que eles também pudessem usufruir.

Podendo, que haja brinquedos na praça, para que as crianças e os namorados levem de vocês qualquer tristeza remanescente, para que a renovação das gestantes lhes conforte, para que a janelinha de um sorriso pueril lhes troque a lágrima por um par de lábio esticados. Não se lembrem de mim com tristeza, com ressentimento nem com apego. Só se lembrem, pois às vezes alguém tem vontade torcer meu pescoço curto, puxar minhas orelhas até virarem asas, faz parte da vida.

Não poupem cores, nem tons, nem brilhos, nem luzes. Minha sobriedade já não estará presente, enfeitem à vontade e deixem que as pessoas admirem. Se forem se lembrar de mim, que não seja a do meu vestuário monótono, mas do quanto acolhi suas extravagâncias e respeitei seus gostos estranhos. Não compartilhei deles, estou longe de ter sido um amigo perfeito, ausente seria uma definição cabível. Desculpem. Pintem o quanto quiserem.

Peço, amigos, que as músicas não sejam tolhidas. Deixem o alento das cadências e das boas vozes atenuarem a egrégora de um sepultamento. Toquem de minhas músicas, mas não se furtem o direito de escolher as mais alegres. O mundo que terei carregado sobre os ombros já constitui pesar mais do que suficiente, morto já não o carregarei. Estarei então leve, sem nem mesmo a gravitação a limitar meus gestos.

Eu lhes pareci triste em vida, talvez o tenha sido, não faz mais diferença. Faz diferença compreender que sempre fui introspecto, concentrado em meu mundo particular que infelizmente não tive tempo de compartilhar, talvez um canto ou outro para um ou outro amigo, mas via de regra não consegui abrí-lo como não consegui chorar, rir ou gritar como vocês pediam que o fizesse. A alegria de meu riso mudo e curto, esmaecida aos olhos alheios, era colorida pelo interesse que vocês me dispensavam. Compreendam, as portas que não foram abertas, eu não sei como abrir. Talvez algumas não saiba que existem.

Rancores não fizeram parte do meu repertório, então não os trago para o além túmulo, fiquem sossegados. Talvez a frustração da qual não consegui me esquivar, mas não terá sido ela o algoz. Terei ido quando a carcaça que me veste já não puder mais me reter, quando for a hora de me ausentar e deixar a gravidade deste orbe denso e pouco afeito às delicadezas, que minhas mãos rudes aprenderam a manusear e trabalhar com o afã de quem terá amado as flores, para o quê lidou com a terra e a sujeira da vida. É do esterco seco que brotam as mais belas flores.

A vida não é boa, meus amigos, nem ruim, simplesmente é a vida. Bons ou ruins somos nós e de nós parte toda a alegria e toda a tristeza das quais nos regozijamos ou reclamamos. Então não deixem de incentivar o riso sincero e os protestos de bom grado que certamente os estranhos prestarão, vendo flores, frutos, arbustos e sentindo a temperatura amena da qual sempre terei gostado, raramente usufruido. Lembrem-se de que não será um cemitério, mas uma praça pública.

Não fui tão bom quanto gostaria, não terei (talvez) sido então o exemplo pleno de lisura para ninguém. Mas também mau não tenho sido. Terei ido com a consciêcia plena e quieta, ciente de que o meu alcance foi usado para o que deverei ter feito, que em momento algum me entreguei pela metade àquilo que me dispus a fazer, que terei sido chato quando necessário; gostaria de ser bonzinho o tempo todo, mas minha índole dura e a necessidade não o permitem.

Minhas rugas não enganam, mas também não me preocupam. Ainda há tempo, não sei quanto, certamente o bastante para evitar arrependimentos por não ter feito algo. Não se intimidem neste intervalo, meus ombros ainda estão quentes e meu abraço ainda é forte. A única doença que me ameaça sou eu mesmo, com a melancolia que, ironicamente, me ajuda a manter uma saúde mínima do que ainda visto. Ainda posso ouvir seus lamentos e compartilhar de suas alegrias, ainda posso dar e ouvir conselhos, afinal sou um homem adulto, já maduro e ciente do bem que alguns minutos falando pode fazer por vocês.

Me olhem nos olhos e soltem o que tiverem que soltar, não faz bem prender um veneno.



19/06/2010

O chefe virá de fora


Uma das particularidades do meu emprego é o contacto freqüente e quase directo com faculdades da área de pharmácia. Que desgraça, meus amigos!

A incompetência já comum em qualquer profissão é realçada pelo lema "Pago, logo passo". A incapacidade de interpretação de textos é um insulto, não bastassem os "imterpretasão" que já vi escritos por formandos, muitos só conseguem ler literalmente. Se isto já é um problema em qualquer área, imagine em uma Vigilância Sanitária, onde a lida com leis é parte da rotina. Interpretar leis ao pé da letra é como comprar um guarda-chuva de aço, quando se ouve que "vai chover canivete".

Cálculos? Só os renais.

Mas a onda de incapacitação profissional vai muito além dos cursos de pharmácia... Aliás, se virem isto lerão "p-rarmácia" ou "pra Márcia". E é essa gente que vai interpretar receituário médico ou mesmo dosar formulações com princípios activos, coadjuvantes e veículos, se o médico tiver cometido um erro (grandes chances se vir de uma Unicoiser da vida) ele não saberá corrigir ou ligar para confirmar a dosagem. Donos de drogarias já estão se aproveitando desta incapacidade para pagar pouco e garantir que o (i)responsável técnico vai empurrar qualquer cousa para o cliente, até camisinha para monge budista. Lembrando: o responsável técnico de uma drogaria ou pharmácia cai facilmente nas leis contra o tráfico de entorpecentes. Eles não pesam os riscos da profissão.

Certos de que o diploma virá, uma parcela assustadoramente grande dos estudantes está negligenciando o aprendizado, o aperfeiçoamento e a diversificação acadêmica, tripé que garantiu a revolução científica do início do século passado e está fomentando as inovações tecnológicas deste início de século. A negligência se vê nos autos de infração que saem em profusão e diáriamente, alguns simplesmente porque o engomadinho não vê necessidade de uma lixeira com pedal para o banheiro de uso público, na empresa.

Agora a justificativa do título. Estamos no limiar do insuportável para a falta de mão-de-obra competente. Milhares de vagas, só em Goiás, estão sendo preenchidas por gente de fora, até por imigrantes. Não é só questão de diploma, isto, como disse acima, qualquer um que faça uni-duni-tê no vestibular de uma faculdade particular consegue. A questão é a completa falta de conteúdo de nossos formandos. Há países que deixam a educação em segundo plano, mas negligenciar como o Brasil, só o Brasil. A praga da aula por videoconferência deveria ter facilitado a vida de quem quer estudar em instituições renomadas, mas só fez reduzir ainda mais os custos das medíocres. Até eu tenho computador com webcam (que nunca usei, confesso), então até eu poderia dar aulas para qualquer um em qualquer parte do mundo. Até as provas são unificadas e impressas em graphicas, o que facilita tanto a fraude que não há como não pensar que não ocorra a todo instante. Há faculdades antigas que gastam com divulgação, só pra alertarem os candidatos que elas não têm nada a ver com outras quase homônimas.

Sim, temos faculdades sérias, as que existiam antes de o Ministério da Educação abrir as pernas para qualquer especulador que queira ganhar dinheiro fácil e rápido. Escrevi no blog Talicoisa (aqui) um texto satírico a respeito, que arrancou risos, mas as cousas pioraram muito de lá para cá. Toda aquela fanfarra de punição e fechamento de cursos ainda não surtiu os efeitos que deveria surtir, e com todo mundo de olho na copa (enquanto o Senado refaz tudo o que foi obrigado a desfazer no início do ano) o caso vai sendo esquecido. Ter um diplominha de licenciatura de uma Universidade Federal (mesmo sucateada) ou uma PUC vale mais do que muitos doutorados, simplesmente porque tem mais conteúdo e mais alicerce. O problema é que muitos cursos da primeira são totalmente diurnos e as vagas são escassas. Gratuita, mas quem trabalha dificilmente pode usufruir.

A indústria nacional está travada não só pela burocracia estúpida que cresce na gestão de indicados políticos, mas também pela falta de mão de obra. Os sindicatos caem de pau se alguém começar a importar engenheiros da Alemanha, mas infelizmente é o que precisaremos fazer muito em breve. Porque mesmo que a situação se reverta agora, vão seis anos no mínimo para fazer efeito. O transporte público de Goiânia é vítima de algo assim, já ouvi aberrações de técnicos, mas provavelmente os donos das empresas mandaram que soltassem as asneiras.

Ainda raciocinando como se o Brasil estivesse sob reserva de mercado, poucos estão vendo corporações estrangeiras comprarem empresas nacionais, colocando gente sua nos cargos de comando e reduzindo a mão-de-obra local à condição subalterna. Mesmo as que têm política de valorização dos nativos (como multinacionais brasileiras) estão precisando fazê-lo, porque o brasileiro sabe de cór o esquema tático da seleção dos Estados Unidos, mas não faz idéia do poder de fogo que suas empresas ainda têm. Eu conheço e digo, eles fazem nossos leões miarem fino e baixinho. Seus profissionais mais estúpidos não fariam feio entre os nossos, até os puxa-sacos deles precisam ter muito mais conteúdo do que o nossos para garantir seus empregos.

É notória em Goiás uma série de histórias de japoneses que vieram, compraram terras que ninguém queria e rapidamente estavam tendo lucros. Por que? Porque no país de onde vieram eles aprenderam. Quem fez lá o equivalente ao nosso ensino fundamental, tem muito mais com o que se virar do que a maioria dessas faculdades caça-níqueis oferece. Eles aprenderam mesmo a tirar da terra o que ela pode oferecer, e dar à terra condições para isso, não apenas tirar e abandonar quando não conseguir mais. De onde suponho que a perpetuação da piadinha sobre a genitália dos japoneses é só despeito, tenho uma colega descendente e casada com um, ela desmente na hora e revira os olhinhos. Aliás, não só os japoneses, o pessoal da Região Sul está fazendo a festa e enriquecendo muito com a nossa incompetência. Goiás, hoje, produz uva quase o ano inteiro e com muita qualidade, graças à patota que fala com as mãos e os cotovelos. Tutti buona gente.

O índice de desperdício na maioria das nossas manufaturas é estarrecedor, e poucas aproveitam ou vendem suas sobras para fundição. Fora que a qualidade da usinagem (quando a máquina corta e modela o metal bruto) é feita na base do "mais ou menos tá bom". Quando metalúrgicos bávaros começarem a aparecer, empresas fecharem e chefes de produção irem para o torno, todo mundo vai piar, reclamar das potências imperialistas estrangeiras. Mas ninguém vai se dar conta que a culpa será nossa, exclusivamente nossa. Um bom executivo de segundo escalão que passar as férias no Brasil, ainda em férias se torna facilmente dono de uma empresa, sem tirar um centavo do bolso, só planejando empréstimos com racionalidade e pagando com o lucro que o antigo dono jogava fora, o que pode (quase certo que será) significar a demissão de todo um corpo de directoria.

Diploma já não é mais atestado de cultura, pelo contrário, dependendo de onde tiver saído se torna prejorativo. Tem gente formada, asseguro, que pensa que metro quadrdo é para ambientes quadrados, que o Maracanã se mede em metros redondos. então o Edifício Copan (aqui) seria em metros tortos? Metros cobrinhas? Metros em curva? Não sei. Sei que a insignificância da formação de nossos profissionais legará ao brasileiro a fama de burro de carga divertido, porque é só o que a maioria de nós está apta a fazer em escala global. Sim, para quem não sabe nós vivemos em um planeta, existem países neste planeta e muitos deles já começaram a exportar profissionais de primeira linha para cá, muitos destes profissionais já perceberam que não damos conta do recado e estão trazendo auxiliares de seus países; alguns deles já são chefes de seus antigos contractantes. Depois não me venham com xenophobia, isto é desculpa de incompetente.

Existe sim pressão, existem interesses, existem conspirações, os sanduíches de lanchonetes de fora têm sim gosto de papelão amanteigado. Mas diz o ditado que cachorro não entra por porta fechada, e a nossa porta profissional está arrancada do portal.

No andar da carruagem, em breve o Brasil continuará sendo país de brasileiros, mas sob comando aberto e directo de imigrandes e seus descendentes. Sabem de uma coisa? Bem feito para nós. Quem mandou votar e não dar a descarga direito?

15/06/2010

Enfermidade

É quando a lágrima chega à base dos olhos e se recusa a sair, o riso à porta do palato e se recusa a sair, o grito à sombra das pregas e se recusa a sair. Não se chora, não se ri, não se brada o que já dificulta a respiração, com esta a subsistência.
É quando a depressão deixa de ser uma situação para se tornar o estado natural. Então não há muito o que fazer além de resistir, domar os instintos suicidas do corpo que se recusa a continuar nas circunstâncias presentes. Se antes as palavras não saíam, agora seriam inúteis mesmo que saíssem perfeitas... A dicção trai. O cenho se contrai.
Por todas as perdas que se lamentou, a sombra do que não foi resolvido permanece, perpetua o frio glacial que a luz do sol não alcança. O orgulhoso se recolhe, curvando a coluna; o humilde se contorce para não ir ao chão. A força que se faz para se soltar o riso é maior do que a necessária à corrida, ainda assim se sorri. Sem som, sem o gargalhar salutar que desobstruiria o peito e a mente. Torna-se intimista por força das circunstâncias e não mais por mera discrição. A vida etérea baila ao redor sem ir e sem ficar, agarrada apenas pelo magnetismo que a duras penas se gera.
As saudades dos tempos difíceis emergem por terem sido tempos em que, ao menos, se podia agir, lutar, impôr-se ao destino que se apresentava sem ser chamado. Mesmo difíceis, eram tempos em que se tinha a mínima esperança, viver era assim muito mais fácil do que o mundo de confortos que hoje nos é ofertado. Não que o mundo fosse mais belo, mas o era assim mesmo, o véu monocromático ainda não caíra sobre os olhos de quem perdera quase todas as esperanças. Não que ela esteja morta, mas agoniza no leito de uma ulterapia de tratamento intensivo. Os médicos entregaram à Deus, mesmo os que não crêem. Mas dizem que irá por último.
Toca Amelinha, Foi Deus, na radiola que jaz em um ferro-velho. Há anos não recebe uma pilha, já nem tem os transístores. A capa espessa de baquelite nacarado foi transformada em marmita.
Não se pede piedade, somente respeito. Afasta-se paulatinamente das pessoas, para não ouvir a insistência chata em se fazer o que pensam não ter sido feito. Quem não sabe nunca acredita nos esforços já desprendidos. Não se fracassa pelo gosto de fracassar, nem todos fracassam por erro. Em uma queda livre se vê e se prevê tudo, mas não se pode evitar o desfecho. A boa vontade não subtrai a crueldade dos que insistem em nos tirar da cama antes de se debelar a enfermidade. Se a vida foi, em suma, um fracasso, pode não ter sido por negligência de quem a recebeu.
As cenas em branco e preto são mais nítidas e verossímeis.
Busca-se um recanto para tentar relaxar a musculatura já tensa pelas batalhas mal sucedidas, onde a sombra benfazeja nos prive de olhares curiosos, onde o silêncio possa prover a liberdade dos sons encarcerados. Mas a cada posto que se ocupa, se avizinham os sábios de toda hora, sempre a dar conselhos, exigir reação, agindo em desacordo com o que gostariam que se fizessem a si, na mesma situação. A incompreensão dó mais do que o tapa.
Não se quer ouvir conselhos, não se quer ouvir lamentos, não se quer ouvir cousas boas, não se quer ouvir consolos. Ainda se houvesse quem acolha sem dizer o supérfulo, apenas ajudasse a aquecer e o pranto a sair, que ofertasse um ombro e um abraço para acalentar das dores que já são perenes, mas sei que é pedir mais do que podem oferecer. Os ombros já cobram pedágio, os que não cobram estão indisponíveis.
Na cela da solidão voluntária a rigidez há de ceder, algum dia, permitindo que a respiração, o riso, o choro, o grito, a palavra e a própria vida voltem a correr como antes. Por agora se põe a rastejar, que de pé já não consegue avançar. Não há a intenção de perpetuar a clausura, tampouco a de se disseminar o veneno que ora transpira. Aos poucos a agonia há de romper a barreira que barra o fluxo das emoções, que presas se põe em guerra contra os hormônios.
Festivais não servem senão para aguçar a tristeza, que embora Torquemanda, é em seu equilíbrio o que se mantém, como uma lança que se torna a única muleta disponível para sua própria vítima. Mas precisa estar com a ponta para baixo.
Houve a ausência a contragosto de quem queria estar por perto e amparar, pois o sofrimento não amparado afeta o coração bem intencionado, a distância crescente dos que se ama é um cobertor que nos é puxado ao relento do inverno nórdico. A culpa que não caberia se instala, pois mesmo sendo maior, encontra âncora para se fixar. A quem reclamar? O que reclamar?
Qualquer riso é mudo e se converte rapidamente em lágrimas abafadas.
Ninguém tem culpa, na verdade ela não existe. É somente a sombra da frustração de uma vida que não aconteceu de facto e não tem sequer indícios de vir a acontecer. Então se afasta, que tristeza é uma doença contagiosa e um enfermo basta. Conhece os pesares da enfermidade e não deseja que se dissemine.
Ela passa, um dia passa, não sobrevive muito mais tempo sem novas vítimas. Por isto a distância, mesmo de corpo presente.
Se mantém em marcha, que alternativa não há.

12/06/2010

Curve-se ao muar

O que faz um homem pensar que é superior? Músculos? Um burro é muito mais forte e vive pastando. O único serviço que conhece é o de carga, dorme ao relento e não tem folga. Se for isto, o homem deve se posicionar no arreio e deixar o burro segurar as rédeas. Aliás, pelo menos o burro não bebe para pegar o volante logo em seguida, será melhor condutor.
Agressividade? Besteira. O coice de um burro mata. Quando irritado, o burro não mede conseqüências para eliminar o motivo da irritação, depois volta para sua vidinha muar de pasto e serviços rudes. Também há o bode, que é muito mais impulsivo e ataca com fúria, mas mesmo atingindo o alvo continua a ser chifrudo até morrer. Depois de chifrar alguém, ou algo, volta à vida de comer capim, papel, plástico, qualquer porcaria que aparecer pela frente. Não esqueçamos dos cães de guarda, que pulam para a morte ao atacar um atirador bem treinado. Se é agressividade o motivo da "superioridade", então sente e dê a patinha para poodle da madame.

Pênis? Não me façam rir, não com uma piada tão ruim. O pênis humano é pequeno, falho e com prazo de validade muito curto. Decepciona com freqüência e não suporta longos períodos de ereção. O burro, pelo contrário, pode copular à vontade, seu membro é enorme e nem por isto as mulheres (sãs) se casam com quadrúpedes. Seria o caso de vocês idolatrarem a baleia azul, cujo pênis chega a seis metros de comprimento, um e vinte maior do que o Opala Diplomata. Se vocês estão se guiando pela cabeça de baixo, e usando isto como status, então qualquer filhote de eqüino merece liderá-los.

Resistência? Juram que se acham resistentes? Seria este o motivo? A musculatura macia e flexível de uma mulher a torna muito mais tolerante a trabalhos contínuos, a rigidez masculina só se presta para trabalhos brutos com períodos de descanso, de resto já foi falado acima. Resistência às doenças as coloca alguns degraus acima de nós, então também não vale. Qualquer outro mamífero é muito melhor equipado do que um homem para esforços intensos e prolongados. Qualquer um. Mas o destino mais certo pra muitos deles é o abate para consumo humano. Quer?

Inteligência? Nós temos dois bilhões de neurônios a mais que não nos servem para praticamente nada. Para quem nunca ouviu falar de Mileva Maric (ver aqui), que cuidava da parte matemática das teorias de Einstein, ou Marie Curie (ver aqui) que co-descobriu de facto a radioactividade, ou pensa que Hedy Lamar (ver aqui) era apenas um rosto bonito, trate de investigar e ler direito. Muito provavelmente vocês devem suas vidas a estas e outras mulheres, sendo que Hedy doou suas pesquisas para o bem da humanidade, o que um homem dificilmente faria, pensando na própria glória e nos próprios prazeres.

A bíblia? Vá aprender hebraico, aramaico, grego, latim e ver as versões (sim, há muitas) originais. Ou pergunte a quem realmente conhece, sem as deturpações misóginas que Roma e a idade média impuseram. Já é muito difícil manter a autenticidade de uma mensagem após cinqüenta e sete traduções, quando se deseja manter sua integridade, quando esta não convém é quase impossível. Adão e Eva eram siameses, só para adiantar. O cristianismo primitivo e ainda puro não era sectarista.

Angela Merkel (esta moça aqui) está segurando a economia européia na marra, com mãos de ferro, para que não afunde. Seus antecessores empurraram com a barriga o quanto puderam e tudo estourou nas suas mãos. Os homens que vieram antes sempre acreditavam que o sucessor iria dar um jeito de tampar o buraco, e deixavam para o próximo governo a responsabilidade, tal qual acontece no Brasil.

Elisabeth II (aqui) abriu mão da própria juventude para suceder o pai, que precisou subir ao trono para substituir Eduardo VIII, com todos os ônus que só quem usa a coroa conhece. Ela aprendeu a trabalhar duro, trabalhou como mecânica durante a Segunda Guerra Mundial, mesmo sendo uma princesa. E vocês vêm me falar em resistência e aptidão para o trabalho! Tenham dó.

Das maiores asneiras que ouço de machões, acusá-las de incapazes de guiar uma nação e de jamais terem contribuído para o progresso científico é o topo delas. Falam que ganham menos e não podem sustentar uma casa, quando eles mesmos fazem questão de pagar menos e nunca visitar uma casa sustentada por uma mulher, que não sai gastando em bares o leite das crianças. Ainda há muitos anencéfalos que as proíbem a vida inteira de estudar e trabalhar, mas na hora do aperto lhes cobram a contribuição financeira que nunca puderam aprender a obter.

Há sim muita ignorância, mas quase todo o machismo é fruto de orgulho. Hoje não existe desculpa para ser ignorante, para não saber os quês e porquês que realmente fazem o mundo funcionar. Acreditar que se é melhor do que alguém, ainda mais alguém historicamente detratado, é muito confortável, acaricia o ego. Da mesma forma e pelos mesmos princípios, Hitler sujou o bom nome da Áustria e arruinou com a Alemanha, que amargou décadas de divisão física. Os princípios do machismo e do nazismo são exactamente os mesmos, bem como são similares suas conseqüências.

Trabalhar ao lado delas requer uma dose de humildade da maioria, e de paciência de todos, elas são realmente de lua, mas a humildade dá os bônus pelo que cobra. Não foi idéia delas reduzir custos a qualquer preço, inclusive demitindo mão-de-obra compatriota, capacitada e bem paga, para contractar semi-escravos de uma ditadura.

Nenhum país machista chegou ao primeiro mundo, muito pelo contrário, estão todos na lama (ou na areia) atolados e afundando, seja em lama ou óleo. O Brasil não é exceção, caso não tenham percebido. Como vocês vão cobrar tratamento igualitário das autoridades, se dentro de suas casas fazem e fomentam o oposto? Os motivos que os levam a considerar uma mulher cidadão de segunda classe, serão adaptados para que lhes neguem até mesmo direitos constitucionais.

Agora, para quem insiste em deturpar a teoria (na verdade um facto) da evolução para justificar sua "superioridade", estude direitinho para ver seu erro. Mas antes aprenda interpretação de textos e um pouco de gramática, para não reincidir nas asneiras. Não existe isto de "instinto do homem é trair e da mulher é ficar em casa". Vai trair com quem, machão? Com outro homem? Darwin jamais endoçaria algo tão estapafúrdio, nem ele nem os autores dos evangelhos.

Querendo parecer durão, o machão acaba se contradizendo nos mínimos gestos. Enquanto um homem se abaixa para pegar algo no chão, o machão faz um ritual: abrir as pernas, arrebitar os glúteos e ficar de quatro.

Macho, qualquer animal, qualquer plantinha consegue ser muito mais do que qualquer idiota que cometa suicídio por injeção de testosterona. Ser homem, portanto, vai muito além das virilhas. Se mesmo assim prefere o conforto de só enxergar até a altura da púbis, dirija-se ao cavalo mais próximo e o saúde assim: "Meu amo e senhor". Porque é o que ele será.

05/06/2010

Saber morrer

Uma das falhas crassas da sociedade é (não temer, mas) alimentar o temor pela morte. É importante não ter pensamento fixo nela, mas ter ciência e tranqüilidade de que ela virá e não adianta cultivar temores.

Primeiro porque é inútil, o medo é um mecanismo de defesa e quando a morte chega, não há absolutamente nada que se possa fazer contra. Segundo porque aumenta o sofrimento a cada luto, as pessoas instintivamente imaginam que sua hora vai chegar e variam entre a depressão e a euforia cega, na tentativa de viver tudo antes que acabe. Terceiro porque é insalubre, a pessoa deixa de viver o que realmente lhe faria diferença para melhor por se preocupar em viver tudo antes que acabe. Quarto e último porque é idiota, a pessoa passa a pautar sua vida pelo fim dela, como um viajante que tenta comer de tudo e photographar tudo e todos antes que a estrada termine; não aproveita absolutamente nada.

Os materialistas que cabem ao caso, temem porque, bem, porque acreditam que são apenas bichos dotados de raciocínio lógico (nem tão, vá) e que deixarão de existir, caindo no vazio absoluto de onde suas consciências teriam surgido.

Os não materialistas que cabem ao caso, temem porque sabem que não estão fazendo a lição de casa como deveriam, muitos acreditando que alguns deslizes os lançarão à tormenta eterna e infinita do inferno. Como Deus é mau, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah... Bobagem.

Em ambos os casos houve uma falha na educação para a vida, aquela que deveria preparar a criança para a vida adulta desde a mais tenra idade, que a troca da mãe pela babá, do livro pelo videogame, das prendas domésticas (também para meninos) pelo shopping center, do pai pelo currículo escolar, da vida em família pela mesada (entre muitos outros factores) legou ao esquecimento. Se a pessoa não aprende a viver, não saberá morrer com o mínimo de dignidade própria. Quando digo "viver", subtraia-se a busca insana por prazeres efêmeros e voláteis. Falha-se, neste caso, em ensinar como obter prazer na busca de um objectivo. É como no mercdo financeiro, quando a especulação toma o lugar do trabalho, forma-se uma bolha de prosperidade que estourará a qualquer momento, nós vimos isto, uma estourou logo nas mãos do Obama. Tudo parece maravilhoso, a cousa certa a ser feita, mas rapidamente a casa cai. Na vida pessoal não existe um Obama para tomar as rédeas, elas são tuas.

Uma das informações mais importantes que deveríamos receber da família é a de que um dia vamos morrer. A criança precisa se acostumar a isto. Não, bocó, não é para transformar a vida da menina em um filme de terror. É para não se esquivar quando ela perguntar a respeito, não florear e não monstrualizar, dizer que todo corpo tem uma data de validade e que um dia expira, como tudo no mundo.

Para os teístas, não se deve fazer propaganda da morte. O acto de morrer não é bom, é agonizante. A passagem que se dá pode (ou não, na maioria dos casos) ser boa. Agir com naturalidade é a única receita válida para todos os casos, o resto varia muito. Privar a criança de velórios não a poupa em nada, ela não crescerá mais saudável por isso, também não há porque impedi-la de visitar parentes hospitalizados, quando autorizado pelo médico responsável. Aprender que ninguém está bem o tempo todo, e que uma hora não estar bem é irreversível, ajuda a digerir a idéia de que se vai morrer um dia.

Sim, claro, "A morte não existe". Mas vamos tratar do fenômeno bioquímico a que nos acostumamos como sendo a morte.

A civilização ocidental, desculpem bater em ferida aberta, é a mais despreparada para o fim da vida. Levado ao extremo da distorção, o termo "carpe diem" foi transformado em um slogan para uma vida de excessos e desconsideração para com os outros. "Aproveitar a vida" se tornou símbolo de promiscuidade e desperdícios. Quando chega a hora, a imensa maioria já está tão apegada à vida que levou, que se desespera e leva o desespero como última e perene impressão da vida. Não preciso dizer o que penso de "Melhor viver dez anos a cem que cem anos a dez". O infeliz que adopta esta aberração como lema de vida, abrevia a própria e a de quem nada tem a ver com sua loucura.

Acostumar-se e perder o medo da idéia da morte tem outro efeito, passa-se a envelhecer com mais dignidade. Embora se procure manter corpo e mente activos, não há mais a preocupação em recuperar a juventude perdida. Não interessa o que charlatães de programas de auditório digam, a juventude jamais volta, é uma fase, um tempo; o tempo não pára. Envelhecendo com dignidade, os efeitos da velhice ficam mais tênues, perde-se menos (ou nenhum) tempo implicando com a saia curta da neta, a música de péssimo gosto dos jovens incomoda menos, até se conseguem alguns acompanhantes de menor idade para saber de novidades e repassar a experiência. Infelizmente esta velhice digna não dá o retorno financeiro que os fabricantes de milagres, que usam e abusam de se chamarem de cientistas, conseguem fazendo os idosos passarem por ridículo.

Ter espiritualidade ajuda, mas asseguro que sozinha não adianta. A hora da morte não aceita ensaios, é tudo no improviso, se sair bem, saiu, se não sair...

Ajuda a morrer bem não deixar inimigos. Desde que o inimigo vai cuspir no seu túmulo até se casas com a sua viúva, tudo passa na cabeça do moribundo rebelde. Melhor então fazer o seu possível para acabar com a richa, se ele não aceitar, paciência, a tua parte na inimizade já terá sido extirpada, o problema será dele, porque gente que não aceita reconciliação planta inimizades.

Ser útil. Poucas cousas aliviam a consciência como a sensação de a passagem sobre a terra foi mais necessária do que onerosa. Para quem não conhece, experimente ser útil a terceiros, sem esperar recompensas. Haverão os detratores, te chamarão de otário, mas eles também terão suas horas e elas lhes cobrarão o tributo.

Se entregar à futilidade e à vida vazia não é o mesmo que satisfazer vontades sinceras. Faça-as. Chocolate é caloria pura, mas uma barra não vai te tornar um obeso. Poupar para conhecer o Rio de Janeiro em grande estilo não deve ser considerado luxo, porque sonho não é luxo. Pessoas viciadas em saúde são tão doentes quanto as viciadas em drogas. Cuide da saúde para ter a certeza de que a morte virá quando tiver que vir, não antacipada por descuidos, mas não deixe de viver a vida à tua maneira, corra artrás dos teus objectivos ou Azrael vai te cobrar a alegria que não foi disseminada, e lhe cabe disseminar. Ele não tem dó de ninguém.

Pague o que deve. Não gaste mais do que ganha para não levar para o túmulo a preocupação da dívida. Há circunstâncias em que é necessário assumir uma, mas na maioria dos casos não é. As ilusões cobram juros altos. Mas o dinheiro gasto em prol da comunidade ou de necessitados é uma poupança que inflação nenhuma corrói. Pensar "Fiz o que pude" enquanto o cérebro se apaga é um antídoto contra a agonia.

Trabalhe. Trabalhe com afinco até o último instante. Quem trabalha direito está mais exposto às provações necessárias e menos ao azar. Um acidente de trabalho te dá direito a regalias, tanto legais quanto morais, em especial dentro da família. Trabalhar em pequenas actividades, quando se torna necessária a aposentadoria, mantém a lucidez e o foco, a vida fica tão cheia que não há espaço para a tristeza que ronda a espreita de um idoso displicente.

Acostume os mais jovens à idéia da tua morte. Saber que filhos e netos vão sofrer muito em luto só interessa ao mau-caráter. Gente de bem como tu quer que eles chorem o que têm a chorar e depois toquem suas vidas. Tenha tato, escolha as palavras de acordo com quem estiver ouvindo, mas não deixe de ser directo. Vamos todos morrer, um dia, não tem jeito. Todos verão o teu corpo decair até se apagar por completo, então é melhor que estejam formalmente prevenidos, o choque é muito menor.

Como sei de todas essas sensações? Já tive uma experiência de quase morte. Senti o corpo deixando de obedecer aos meus comandos e o cérebro se apagando aos poucos. É escuro pra dedéu. Não houve um túnel, mas também não houve noção de tempo, porque meia hora deopois eu acordei e não parecia ter se passado nem um segundo, a consciência permaneceu na activa e minha boca ficou torta por mais uns minutos.

Sei de um patriarca judeu que, momentos antes de falecer, chamou o filho e a esposa, recém-casados, abençoou a união e mandou que fossem para a lua-de-mel. Depois fechou os próprios olhos com a mão direita, a uniu com a esquerda no peito e morreu. Isto não é conversa de evangélio, aconteceu nos rincões do Amazonas, na primeira metade do século vinte. Quer morte mais serena e tranqüila do que esta?

Ateu ou teísta, trate de se acostumar e aos mais jovens à idéia da morte o quanto antes, a vida ficará muito melhor.