21/10/2015

De volta para o passado

Parece que foi ontem... E foi mesmo!
  É hoje a data, segundo a saga De Volta Para o Futuro, em que Martin McFly chega ao ano de 2015. Desde anos antes, muita gente dizia querer pedir o DeLorean emprestado para corrigir um erro. É compreensível, mas lamento, não é possível. Ainda que se consiga voltar no tempo, qualquer alteração faria desaparecer a motivação da viagem, não permitindo a façanha e mantendo tudo como estava. Quem volta algumas horas para comer o sanduíche que acaba de ver na mão do cunhado mala, ficará satisfeito e não voltará, ou seja, o estorvo vai encontrar o sanduíche lá.

  Futuros alternativos são histórias da carochinha, se prestam muito bem para revistas em quadrinhos com crises de criatividade e inspiração, na prática eles nem podem ser levados a sério. e se existissem, bem, não consertariam o teu futuro, mas o de um seu "eu" alternativo que gozaria do teu trabalho, tu mesmo continuarias no aço.

  Francamente? Essa conversa de mudar o passado tem mais fundo depressivo, por frustração ou trauma, ou ambos, do que de utilidade real. O passado é um tempo que já não existe, o futuro é só uma especulação que pode ser mais ou menos conduzida.

  Mas se fazem questão, há algo que um viajante do tempo poderia fazer e se enriquecer muito, sem precisar bancar o herói da humanidade. Ele poderia fazer viagens periódicas a épocas de seu interesse e vivê-las, se integrar a elas. Isso causaria pequenos nódulos, no máximo, mas nenhum trauma na malha temporal. Se alguém engravidasse disso, bem, é porque alguém já pariu, a coisa já teria acontecido mesmo. Amores de verão, entendem? Dois jovens se encontram, não se controlam e nunca mais se vêem... Belo tema para um filme!

  Voltando ao assunto... Imaginem um fã dos Beatles. Naquela época, e até no início dos anos noventa, era praticamente impossível localizar de pronto alguém que não quisesse ser encontrado. Um documento forjado com a tecnologia de hoje, há até vinte anos convenceria facilmente qualquer autoridade, ainda mais policiais comuns. Com todas as precauções legais e formais tomadas, esse fã poderia simplesmente ir aos primeiros shows dos garotos de Liverpool! Imaginem uma câmera de celular embutida em um broche! Naquela época, ninguém desconfiaria.

  Imagine voltar ao século XXI com revistas, cartazes, discos, bugigangas e outras coisas do quarteto que hoje valem uma fortuna! E tudo novo, sem uso, na caixa. Até os reclames das lojas hoje são valiosos, como a da famosa Biba's de Londres. Ok, isso custa dinheiro, por pouco que hoje pareça ser, mas se o passado teve, e realmente teve mazelas, que o presente não resolveu, também tinha facilidades fascinantes, que por si já valeriam a aventura.

  Existe um termo para preciosidades encontradas praticamente abandonadas após anos, décadas esquecidas em um lugar fechado e escondido: Barn Find. Imagine-se sabendo exactamente onde procurar, ou mais, imagine-se fazendo o teu próprio, voltando diariamente, de ano em ano, para cuidar do tesouro, até que chega o dia de hoje e lá está tua cápsula temporal, intacta e pronta para fazer queixos caírem ao chão. Não há limites e, melhor, não há problemas éticos, já que tudo aquilo é teu mesmo.

  Noutros tempos era relativamente fácil conseguir trabalho sem dar satisfação aos Estados, então não haveria problema em arranjar dinheiro para bancar a estadia temporal. Que tipo de trabalho? Vá a 1948, pegue uma reportagem para fazer, volte, peça ajuda ao Google e dê ao jornal da época uma matéria inesquecível. O repórter da casa pode levar o crédito, qual o problema? Perde-se a fama, ganha-se a hospedagem. Sim, isto é só um exemplo! As ferramentas baratas de hoje fazem serviços profissionais como as mais antigas nem sonhavam! Fazer um carro de passeio de alumínio, até o início do século, era coisa para artesãos muito habilidosos, que cobravam os olhos da cara pela trabalheira ingrata. Hoje há estampadoras que fazem o serviço numa pancada só.

  Problemas mundanos resolvidos, e ciência do lado B de cada época, vamos ao que interessa. Elvis Presley começou bem de baixo. Sua primeira gravação ele tirou do bolso. Imagine-se se oferecendo para ajudar nos custos em troca de uma cópia autographada... Neste meio tempo, coisas que hoje são cultuadas por vintagistas e nerds do gênero poderiam ser encontradas por uma ninharia, aos montes, algumas até de graça, jogava-se muita coisa fora, e algumas eram amostras grátis.

  Aquele arrepio quando ouve "Rien de Rien" por Edith Piaf , sabe? Imagine ouvindo-a ao vivo, na primeira fileira do teatro. Maria Callas em sua melhor forma, no auge de sua carreira, em uma fresca noite de primavera, também ao vivo. Emilinha Borba, ao vivo, com direito a pedir-lhe tua canção favorita... MEEEEEEEEU DEUS! E vocês preocupados com mimimi "Tô magoado com o passado"? Ah, façam-me o favor! Cresçam!

  Ah, claro! Dividir uma roda de samba com Cartola! Um chorinho de raiz com Pixinguinha! Chorar mágoas no ombro de Elizeth Cardoso... Indo para o Velho Mundo, dividir a mesa e o drinque com Charles Aznavour... Ver Dalida iniciar sua carreira, Gigliola Cinqueti em San Remo AO VIVO! Depois alguém te chama para ver um detalhe estranho em um filme clássico, um cara que se parece demais contigo, até na voz e nos trejeitos... Ah, se eles soubessem!

  Mas o mais valioso, o mais importante desse tipo de viagem, e de todas as viagens possíveis na vida real, é o contacto com as pessoas. Poder levar um papo gostoso com Elvis Presley enquanto ele abastecia o caminhão, trocar idéias com John Lennon, descobrir o gênio matemático e a puerilidade de Marilyn Monroe, ser assistente de camarim de Audrey Hepburn, dividir um cruzeiro com Grace Kelly, uma mesa em um bistrô com Marlene Dietrich... Estão entendendo? Então continuemos.

  Imagine-se presente nos principais discursos de Getúlio Vargas, ouvir o que ele realmente disse e ver a real reação do público. Ler, e trazer para o presente, edições de jornais da época, cartões postais que então eram quase brindes em bancas de jornais... Imagine ver gente que vai às ruas para passear, se distrair ou se divertir, que vai aos restaurantes para relaxar e comer em vez de postar selfies cafonas, que chega em casa e vai ter com a família, em vez de zapear nos 1.577.328 canais da tevê por assinatura, fora o pay per view, gente escrevendo cartas e esperando uma ou duas semanas pela resposta, em vez de dar tiros no computador porque levou mais de dois segundos para abrir a página de pesquisa, enfim... Gente sendo gente!

  Com um celular disfarçado no traje a rigor, seria fácil e até divertido ter imagens da estréia de My Fair Lady no teatro, com Bibi Ferreira e Paulo Autran. Imagine-se voltando com o canhoto do bilhete! Era uma época ainda distante da famigerada reserva de mercado, dos anos setenta, que só fez atrasar o Brasil, e ainda hoje persiste na cultura burocrática imbecil deste país. Na época viam-se carros nacionais, simples e práticos, ao lado de bólidos e encantos importados. Já viste um Cadillac 1956 zero quilômetro? Um televisor Crosley na loja? Um refrigerador General Electric azul bebê na vitrine? Meus amigos, o vosso espanto seria similar ao de visitantes do passado nos tempos correntes, mas com a vantagem de que nós sabemos como aproveitar e usufruir daquelas épocas.

  Ouvir o Repórter Esso com a locução original, festejando o fim da guerra... Asseguro que as bobagens que a CBF hoje chama de futebol, não vêem nem a sombra da festa, dos choros, do alívio, da emoção e do sentimento de esperança no futuro que aquelas pessoas sentiram. Vocês estão me compreendendo? Há uma riqueza imaterial, a material é indiscutível, incalculável para quem conseguisse fazer essa viagem. A visão de mundo e do teu mundo seria completamente modificada.

  Um flerte com teus avós, quando eles eram jovens? Talvez, mas as próprias regras do tempo impediriam que algo mais acontecesse, ou não existirias para fazer isso. O bom seria chegar à tua mãe, quando fosse levar a família para visitar, e soltasse um "Como vai a minha Jabuticabinha? Tomou seu Biotônico, tomou?". Imagine a cara que ela faria.

  Bem, meus amigos, a função mais nobre do passado é justamente enriquecer os vivos, material e imaterialmente. Principalmente imaterialmente. Meus amigos, mudar o passado para quê? Intacto ele tem muito mais a oferecer do que com tentativas fúteis de fechar feridas psicológicas, isso é trabalho para a psicologia. O passado tem em si todas as soluções para o presente guardadas em suas entrelinhas, basta que o deixemos mostrar seu lado mais belo, porque a unha encravada os historiadores azedos fazem sem dó, até piorando o que já era ruim... Depois falam da imprensa!

  Se eu faria essas viagens? Mas decerto que sim! Eu praticamente viveria intertemporalmente! Dos anos 1930 até 1980 eu não teria dúvidas! Viveria um milhão de vidas e cresceria todas elas em uma só. O passado pode ser redimido, nunca apagado! Aceite, dói menos.

10/10/2015

Jacob e o troll

Agora cai fora, antes que me irrite, troll safado!
  Jacob conversa com colegas sobre o festival de cosplay que estão organizando. Não conseguiram espaço no colégio, mas uma transportadora cedeu o pátio, com isso ficou menos difícil conseguir infraestrutura adequada. Vão estimular pelo bolso, com entrada menor e desconto no comércio interno de quem for caracterizado.

  Por redes sociais já confirmaram uma presença maciça. A fantasia de cada um é a parte mais fácil da empreitada, ele está dividido entre Doutor Estranho e Buck Rogers. Mostra os esboços que fez e um cálculo prévio de quanto custaria cada uma, para os outros também se balizarem. Antes que eles possam ajudar na escolha, aparece um aluno estranho ao grupo que vive trollando os outros na internet...

  - Marvel é merda! Marvel é pra criança! Não vem com mimimi, que DC é muito melhor, é mais sombrio, é pra adulto. É porque é!

  Jacob o fita do ápice à base, com o olhar de desprezo que herdou da mãe e o faz mandar alguém tomar naquele lugar sem precisar abrir a boca...

  - Ninguém te perguntou nada.
  - Mas eu falei, pronto! Todo mundo sabe que Marvel é lixo, é festinha alegrinha! Adulto gosta é de depressão e porrada! Batman é muito mais foda do que qualquer Marvel!
  - Jacob, porque não tenta Harry Potter? Você parece com ele!
  - Por isso mesmo! Não quero o óbvio! E me identifico mais com heróis menos festejados.
  - Ah, ra, ra, ra, ra, ra, ra! Só faltava essa! Vir de Harry Potter! Aí é que a criançada pira! Ah, ra, ra, ra! Vai logo de Banana de Pijama! Ui! Tenho medo do escuro! Não quero nada de triste, senão não durmo...

  O rapaz perde a paciência. Levanta rapidamente a mão direita e lhe acerta a orelha, agarra a nuca e o derruba. Forte, pelos rigores que a mãe sempre impôs aos irmãos, o segura facilmente contra o gramado. Ele protesta, evoca os direitos humanos, a liberdade de expressão e se esquece rapidamente que tolhe os dos outros. Estava tão acostumado a atacar opinião alheia e atrapalhar conversas em caixas de diálogo, que desta vez se esqueceu que não está ao seu computador, trollando os outros em redes sociais, onde faz o que quer e no máximo tem os comentários apagados.

  Agora tem que lidar com gente de verdade, não está em condições de bancar o machão e xingar mãe alheia, até porque sabe o que aquele judeu é capaz de fazer pela sua. Não pode simplesmente clicar em "cancelar respostas", não existe esse botão na vida real. Alguns minutos de luta inútil e ele se acalma. Todos ali têm queixas contra o sujeito e querem esfregar verdades na sua cara debochada, mas ele parece não se importar com os danos que lhe reportam, na verdade demonstra satisfação com isso...

  - E você ainda reclama que é discriminado, se faz de vítima quando apanha e volta a fazer merda...
  - Você é que deveria se fantasiar pra vir pro colégio, mas de homem invisível, pra ninguém ter que agüentar essa sua cara nojenta!
  - Fala aí! Vai querer ser tratado como escroto até a formatura, babaca?

  Ele não tem tempo para ofender os outros, não é como pela internet, onde simplesmente ignora o que já foi postado e escreve o que quer. Começa a se sentir sufocado por não conseguir responder a todos e do jeito a que está acostumado, tampa os ouvidos e sai correndo para a lanchonete. Já eram quinze pessoas que há muito estavam com ele até o pescoço.

  O rapaz volta para casa com o cenho franzido. Desce de banho tomado e é interceptado pela mãe. Não entra em detalhes sórdidos, Esther não precisa deles e não entra em caixas de comentários quando abre o navegador. Ela afaga a cabeça do adolescente...

  - Vocês já tinham tentado outras formas de abordagem, Jacob?
  - Muitas, mamma! Mas quanto mais a gente fala de constrangimento e respeito, mais ele faz troça! Eu não entendo, não existe motivo pra ele fazer isso!
  - Existe sim, Jacob. Ele é vazio, provavelmente a família dele o acostumou desde muito cedo a usar uma armadura para impor respeito, mas se descuidou do corpo que a veste. Ele deve tentar preencher esse vazio sugando a alegria de vocês.
  - Faz sentido, mas mesmo assim foi um episódio tão desagradável...
  - Ele teria entendido outra linguagem?
  - Acho que não.
  - Ele deixaria vocês em paz, se simplesmente o ignorassem?
  - Não, quando é ignorado ele passa a alisar e bater nas pessoas.
  - A direção do colégio já sabia desse comportamento?
  - Já, ele é reincidente, mas tratam tudo genericamente como "discussão de adolescentes".
  - Então, meu filho, você não tinha escolha. E se é tudo "discussão de adolescente" e ele se aproveitava disso, não poderá reclamar das conseqüências. Vocês tentaram todas as vias diplomáticas, esgotaram os argumentos pacíficos e ele só piorava.
  - Acho que consegui um inimigo.
  - Faz parte da vida, meu filho. Os inimigos aparecem, quer você os procure, quer não. Às vezes você não sabe que tem um até ser vítima dele. Não precisa de pretexto, eles inventam um e perseguem só de não ir com a sua cara. Se ele se tornou seu inimigo, não foi pela imobilização em público, ele já acalentava esse rancor de bem antes. Pense bem e tente se lembrar.

  Ele se esforça. Encontra na memória duas ou três ocasiões em que impediu o assédio dele a amigas de turma. Se recosta no sofá e começa a se lembrar de ofensas aparentemente gratuitas, desde então...

  - Não, ele não pode ser tão infantil!
  - Sim, Jacob, ele pode. Provavelmente o pai dele é tão quanto, para relevar esse tipo de comportamento. Meu amado, não se engane, são poucas as famílias que se ocupam em educar e formar seus filhos, em vez de simplesmente dar-lhes o que não tiveram em suas infâncias. É por isso, meu filho, que às vezes eu sou tão dura com vocês. Não generalize os portadores da condição de "pai", porque como o seu não se encontra fácil, são poucos os que ensinam seus filhos a controlar seus impulsos e ajudam a resolver seus problemas. Olha pra mim... Você foi mais paciente do que precisaria, desenrugue essa testa.
  - Tá, mamma. A senhora já tinha dito que as pessoas gostam do mal porque ele sempre te dá razão.
  - Sempre. O mal te faz acreditar que só a sua causa é justa e que só você é bom.
  - Gostam do Darth Vader por ele ser supostamente mau, mas se esquecem que ele se regenerou e se redimiu no último instante e que por isso a trilogia teve aquele final feliz.
  - As pessoas confundem o mal com poder, quando na verdade é apenas falta de escrúpulos.
  - Certo, vou de Darth Vader para esse festival. A senhora vai de?

  Esther ri. Não se imagina fantasiada no meio de um monte de garotos, mas quer prestigiar a primeira empreitada séria dos filhos. Promete que vai pensar em algo, só não esperem que apareça de maiô cavado em público.