27/09/2016

O soldado não tinha pernas para oferecer


    Era um soldado com as pernas comprometidas, praticamente não se sustentavam mais, mas o resto do corto ainda era forte e operante. Experiente, com mente lúcida, contornava como podia a necessidade de se arrastar para se locomover no acampamento. Fazia serviço burocrático e às vezes ajudava na manutenção do armamento. Às vezes usava um andador, mas era incômodo para o trabalho duro do destacamento.

    A logística difícil de um acampamento avançado e sua utilidade, mesmo com a mobilidade comprometida, afastavam a hipótese de ser mandado de volta. Pelo menos por enquanto. Acordava cedo como todos os outros, fazia como podia os exercícios de condicionamento, comia com os companheiros e ia fazer seu serviço. Até pequenos namoros, dentro do que permitia o estado de guerra, aconteciam.

    Ocorreu de precisar ir com um grupo de reconhecimento, pela sua competência na lida com instrumentação de precisão e bom conhecimento para reparos de emergência, nas viaturas e no armamento. Para isso levava algumas ferramentas e peças.

    Não foi preciso um ataque ou mesmo uma mina para causar um acidente. Uma ponte de madeira que não estava tão boa quanto parecia, depois que a chuva levou parte da sustentação, fez o GMC desembestar a uma velocidade maior do que era capaz de atingir em reta. Nenhuma baixa, mas todos feridos gravemente, exceto o soldado que já tinha o aleijão. Seus ferimentos foram pequenos, o comandante o tinha obrigado a usar o cinto, coisa que não pode ser feita por um soldado apto a saltar e combater, então pôde sair sozinho do caminhão tombado.

    As dores às quais já estava acostumado, em sua maior parte já ignorada pelo cérebro, praticamente imobilizavam seus companheiros, que eram alvos fáceis naquela posição. Foi ao rádio, pediu socorro, mas sabia que demoraria mais tempo do que seria prudente esperar naquela ribanceira. Faltava-lhe a força nas pernas, pelo que dependia do grupamento para praticamente tudo no acampamento, mas tinha força de sobra nos braços, no tronco e em sua lucidez.

    As pernas dos companheiros tinham a força que faltava nas suas, então bancou o sargento e deu ordens curtas e explícitas, como "Apoie-se em mim", "Afirme-se, soldado", "Empurre com as pernas" em tom de comando. Um a um, em um esforço hercúleo, sem pensar em outra coisa além de fazer o que era necessário fazer, mesmo sem ter pernas para carregar alguém. Usou a força de cada soldado, a conciliou com seu equilíbrio e tirou a todos das posições perigosas em que estavam. Se um não pudesse mesmo se mover, poderia agarrá-lo e arrastar-se com ele apenas usando seus braços.

    Os primeiros socorros ele fez sozinho, como aprendeu no acampamento. Identificou prováveis fraturas e algumas pistas de ferimentos internos. Medicou como pôde, dentro de sua competência, acalmou os companheiros e se pôs a esperar pelo resgate.

    O socorro demorou a chegar por conta da topografia e da distância que já tinham percorrido. A preocupação do destacamento, era a pouca capacidade de ação do único soldado lúcido o suficiente para pedir socorro. Pouca, sim, mas foi suficiente para levar os sete companheiros para a segurança, sob uma vegetação que lhe permitia ver sem ser visto do alto. Ouvir sons de motores não é necessariamente uma boa notícia, então esperou até reconhecer as vozes, então se revelou.

    Não havia espanto pelo acidente, nem pelas condições precárias em que estavam os sete soldados. Havia espanto em todas aquelas providências terem sido tomadas por quem acreditavam que não conseguiria fazê-lo. Ele virtualmente não tinha pernas, como poderia ajudar quem as tinha em boas condições? Pois ajudou.

    Não foi a falta de pernas, a pouco autoestima que de vez em quando o abatia, nem a tristeza de ter que voltar para casa daquele jeito que o impediu de arrastar os outros, encorajar e reanimar, manter a moral do grupo alta e dar-lhes esperanças. Ele tinha a vontade e a convicção de que deveria fazer e o fez da melhor forma como pôde. Fez e salvou.

06/09/2016

O sistema, novamente ele.

Art by Shag

    Imaginem um grupo humano primitivo, ainda mal sabendo falar. Nesse grupo não haveria, em princípio e como conhecemos, leis, sistema ou Estado. Para muita gente parece ser a sociedade ideal, para muita gente parece ser um cenário pós apocalíptico. Vamos ver.

    Em uma decisão comum, como geralmente acontece, esse grupo decide por maioria ir em uma direção, enquanto uma parcela pequena insiste que na outra a caça é mais fácil e melhor servida de água e pequenas frutas, para o caso de demorarem a encontrar animais que possam comer, em vez de serem comidos por eles. Mas a maioria venceu.

    O grupo discordante é relativamente pequeno, mas necessário, ou não teria sido ouvido, provavelmente nem teria sido levado em conta na hora de planejar a caçada. Então, sendo esse pequeno grupo necessário, ele é coagido de alguma forma a ir ajudar na caçada. Não pode ser de qualquer jeito, ou a maioria parte logo para a briga e eles perdem uma ajuda importante, alguém media e impõe, com ou sem negociação. Temos então uma liderança, mesmo que temporária, portanto temos uma hierarquia, que tem suas leis ainda que informais e, portanto, temos um Estado primitivo. Com o Estado temos o sistema que o rege.

    No decorrer da jornada, os discordantes podem comentar entre si sobre as dificuldades que enfrentam agora, e que seriam mais tênues no outro caminho. A cada posição do sol sem se alimentar a contento, o descontentamento aumentaria. Os resmungos também aumentariam e logo passariam a incomodar, a não ser que obtivessem carne suficientemente boa e numerosa para aplacar sua fome e convencer de que aquele caminho era realmente o melhor.

    Quem conhece um pouco do assunto sabe o quanto a caça pode ser difícil. Mesmo com a vegetação viçosa, amplos espaços para uma manada correr, água abundante e poucos predadores de outras espécies, pode levar muito tempo para se conseguir abater um animal. Alguns dias, talvez mais de uma semana. A sobrevivência fora da civilização, por mais hostil que esta pareça ser, é muito difícil. Não há um supermercado depois da próxima cachoeira para trocar uns pedaços de papel por uma semana de subsistência.

    Como passar fome é a regra na natureza, ainda que por apenas uma grande parte do dia, não demoraria muito para o grupo discordante esfregar na cara do líder o seu erro, e ganhar adeptos. Ainda que conseguissem caçar o mínimo necessário para todos, a má impressão e a argumentação, ainda que primitiva e tosca do grupo discordante, ganharia força nos planejamentos seguintes. O líder daquela caçada seria pressionado a negociar das próximas vezes, mesmo que ele não tenha tido a menor intenção de ser líder. Apresentou-se, agora é.

    Com a demanda mais intelectualizada do grupo geral, as regras precisariam ser menos informais. Precisaria haver um revezamento de métodos e roteiros, a fim de evitar que a escassez em um sítio de caça comprometesse a sobrevivência do grupo. Gostando ou não, temos aqui um sistema com regras e hierarquia, que agora sustenta um Estado primitivo. Sozinho, as chances de um homem sobreviver na vida selvagem são mínimas, ainda mais em um contexto que o prive de aprender técnicas de sobrevivência, que na maior parte da história da humanidade se resumiram a comer e não ser comido.

    Agora a hipótese de o grupo maior considerar que o pequeno não é importante, não a ponto de seus queixumes precisarem ser tolerados. Não querem vir? Vão embora. Eles vão, mas vão ressentidos. A falta de uma sociedade formal não inibe a formação de um caráter rancoroso e vingativo, isso é conversa de quem não conhece a psique. A criança nasce com suas tendências, como agressividade, persistência, volubilidade e outras. A sociedade acentua ou atenua, porque ninguém nasce conhecendo métodos de vingança, mas as tendências estão lá, prontas para serem lapidadas e usadas para o bem ou para o mal.

    Voltando ao grupo dissidente, ele vai pelo outro caminho e, como seu líder disse, encontra mais frutas e água pelo caminho. Talvez até pequenos répteis e roedores, para agüentarem até encontrarem a caça grande. Com essa tranqüilidade eles vagam mais descansados e menos estressados, mais aptos a fugir de predadores ou afugentá-los. Com menos estresse o entrosamento aumenta, com ele a troca de experiências e o conseqüente incremento cultural, favorecendo o intelecto e a maior identificação de cada indivíduo como parte daquele grupo.

    Se decidirem voltar, mesmo que não tenham obtido um volume estrondoso de caça, voltarão mais felizes e saudáveis. O outro grupo, por sua vez, voltaria cansado, irritado e sem poder colocar a culpa nas queixas do menor. Provavelmente nem todos voltariam. Aqui nasceria um conflito social, ainda que tênue, porque a diferença entre os dois grupos seria notável, especialmente pela quantidade de ferimentos nos indivíduos de cada um. Claro que as mulheres do grupo passariam a preferir o que aparenta ser mais saudável, porque é assim que funciona a natureza.

    Ao fim de algumas gerações, teríamos uma sociedade mais complexa, com leis, hierarquia, especialização profissional e regras de convivência formando um sistema, que sustentaria um Estado menos primitivo. E como chegamos a este estágio? Com a troca de experiências, a comunicação, o entrosamento, o respeito que os vencedores conseguiram em sua sociedade. É o sucesso que indica quem vai se reproduzir, gerando mais sucesso. Para manter o grupo coeso, um dos expedientes seria narrar como os fundadores daquela civilização a viabilizaram, o que a falta de uma escrita precisa e um conceito sólido de história transformaria em lenda, fábula, talvez até em religião.

    Os conflitos apareceriam com o aumento populacional, com eles as intervenções, com elas nasceriam as leis e a sociedade ficaria mais complexa. Seriam injustas? Talvez. Mas sem leis não há convivência, mesmo esporádica. Ruim com elas, pior sem elas. Alguns se perguntariam sobre a propriedade. Bem, no começo aquele pedaço de pedra estava quieto em seu canto, alguém o pegou, o lascou, se houver refinamento tecnológico suficiente ele também o poliu e fez sua ferramenta de caça, culinária e defesa pessoal. Seu desempenho na caçada seria maior e suas chances de voltar vivo e bem também seriam, assim como seu sucesso em mediar conflitos. Claro, na hora de defender o grupo de invasores errantes aquela lança seria mais eficaz, porque não ter armas não significa que outros grupos não vão usar as suas. Ser pacífico não deve ser motivo para baixar a guarda.

    Ele ganharia algum status dentro da sociedade, pois seria mais útil e poderoso, seria mais ouvido e talvez abusasse de vez em quando. Claro que isso geraria ciúmes e inveja, é comum, embora sejam sentimentos perigosos. E quem disse que os outros no lugar dele não fariam o mesmo, com uma ferramenta tão bem elaborada? Por que ele deveria deixá-la à disposição do grupo? Quem garantiria que este lhe devolveria assim que precisasse dela? Só porque a pedra veio de graça? E o trabalho que ele teve lascando e polindo aquela pedra? Ele em si estaria à disposição do grupo, faz parte da convivência, não precisaria abrir mão de algo de que precisa em seu cotidiano.

  Opressão? Repressão? Haveria. Estamos falando de um grupo humano, não de seres celestes. Quem não quer viver sob as regras do grupo, que volte para a floresta, mas certo de que suas chances de sobreviver são menores, e que obrigar alguém a aceitar seu ideal de vida também é opressão. Não és tu que sabe qual a necessidade do outro, talvez nem ele saiba! Se quiser ajudar, ajude, mas não vais querer que alguém te force a viver de outro jeito, então não faça o mesmo. Seria opressão!

    Não dá para fugir do sistema! É sair de um e cair em outro, que pode te iludir com as cores vivas de suas penas, mas pode ser uma ave de rapina; provavelmente será. Eu já disse aqui que existem casos de pessoas que foram bem sucedidas não por causa dele, mas apesar dele e de todas as suas falhas, eu conheço algumas. Não é essa ou aquela ideologia ou crença que vai formar um sistema justo, é o indivíduo que faz parte dele. E lamento informar, não dá para ser justo com todo mundo o tempo todo, mas 85% são um índice alcançável. Quem quer uma sociedade justa, não aponta culpados, resolve problemas. Os culpados são naturalmente punidos pelos problemas resolvidos, porque perdem poder e talvez até a razão de viver. O certo é que em uma sociedade de indivíduos maduros e bem resolvidos, suficientemente sofisticada e bem entrosada, a intervenção do Estado é mínima, assim como a quantidade e sofisticação das leis. Estamos longe disso!

    Acha mesmo que não existem regras, hierarquias e sistemas na natureza? Olhe de novo. Mesmo animais solitários precisam evitar perigos e ocasionalmente procriar, o que em certos casos pode ser um dilema, então as regras se sofisticam e pronto! Adeus idealização de uma vida totalmente livre! Se o indivíduo entra no território (A-HA!) de um predador sem o devido cuidado, vira refeição. Há leis, há hierarquias, há um sistema e entre certas espécies até rascunhos de Estados, tudo isso na natureza que aos olhos leigos parece ser tão generosa e simples. Não é! Ela é abundante, mas quem quiser sobreviver tem que se virar! Fora do sistema, as chances de sobreviver são proporcionais à equação de capacidade física com a mental. Não preciso dizer o que aconteceria a um eficiente físico, preciso? Fora da sociedade, ele seria apenas mais uma refeição.