25/10/2008

Nova balzaquiana

Beleza aos vinte é um presente, aos quarenta é mérito próprio.
Mulher madura, com uma vida inteira ainda pela frente. Reescalonarei Balzac, que na época admirava as mulheres que chegavam à maturidade com (pelo menos) um pouco do viço de sua juventude. Pois hoje ele elegeria a mulher de quarenta a cinqüenta anos.

Uma mulher assim é uma obra de arte biológica, uma ode à criação divina. Qualquer uma que chega aos quarenta anos sem ter se azedado, é uma vencedora, porque o machismo misógino ainda impõe a burrice de que se deve destruir o que se ama. Uma mulher que chega aos quarenta anos e é reconhecida de pronto por uma amiga de adolescência, é uma gloriosa, porque muitas se entregam cedo aos excessos que se convertem rapidamente em vícios, apagando os traços mais sutis de sua juventude, que ainda não deveria ter terminado.

Uma mulher que chega aos quarenta anos com a leveza que tem as de vinte e cinco, ah, esta é uma diva, uma deidade que deve ser venerada e respeitada, para quem o trânsito deve parar imediatamente, ainda que o sinal esteja verde.

Acreditem, há muitas assim. Não citarei Nicole Kidman, que é covardia. Desculpem, já citei, mas ela é um exemplo escancarado de uma multidão anônima que as câmeras ignoram. Tenho olhos já treinados e refinados, vejo muitas balzaquianas de quarenta pelas ruas, entretidas em suas leituras dentro dos ônibus, ignoradas por conta de seus trajes discretos e insuspeitos. Pois as observo com a devida reverência e discrição. São verdadeiras beldades que ainda têm o bônus da bagagem de vida, do conteúdo de suas palavras, da sabedoria para agir ou não agir, ainda assim conservando os traços e a fluidez da flor de suas eras. As quarentonas de hoje são brotos exalando perfumes primaveris.

As garotas de trinta agora são isto mesmo: garotas. Algumas ainda têm espinhas, seus rostos ainda são abaulados e seus olhos ainda são arredondados. Inconteste prova da evolução da espécie... pelo menos física. As de vinte acabaram de sair da adolescência para a emancipação recém-adquirida.

A mulher de quarenta exubera sua beleza, mas já não tem o desespero de cumprir sua quota de beijos em estranhos da noite. Arrasta o ar por onde passa, em seus passos firmes e elegantes, sem os requebrados forçados e trotados das adolescentes mais atrevidas. Sabe rir, sabe gargalhar, sabe quando e o quanto cabe um e outro.

Já viram o corpo de uma quarentona dos dias vigentes? A mulher que hoje tem de quarenta e cinqüenta anos teve que ralar na vida, não teve essas facilidades excessivas de "delivery", controle remoto para abrir o armário, fast-fat-food e toda uma quinquilharia que, na sua tenra juventude, simplesmente não existia. Elas iam da cozinha à sala para atender ao telephone, subiam escadas, giravam manivelas para descer o vidro do carro, iam ao restaurante para comer sem esquentar a barriga. A mulher de quarenta foi lapidada, sua beleza não é uma dádiva da idade nem um presente da indústria cosmética, que na época era só cosmética mesmo. Sua beleza é um mérito. É muito comum encontrar mães em muito melhor forma física do que suas filhas e, pasmem os homens desatentos que só enxergam partes, é muito comum ver mulheres maduras muito mais belas e bem conservadas que seus jovens rebentos. Os excessos de sua juventude são nada, se comparados à destruição suicida que a garotada venera e chama de "atitude"... Aham, tá. Vamos ver que atitude têm no primeiro acidente grave de trânsito.

Rendamos honras às musas que ora povoam, incógnitas, um mundo carente de inspiração. Beijemos suas mãos e as convidemos para uma noite, não apenas para uma cama, que elas são muito mais do que isto.

Há anos venho insistindo para o meu alfaiate começar a fazer roupas femininas, alego que vestidos são basicamente camisas esticadas, e saias são basicamente calças de uma perna só. pois nesta semana foi uma nova-balzaquiana, que com um modelito pronto para copiar, o convenceu a fazê-lo. Uma mulher de baixa estatura, mas bela, charmosa, elegante em seu estilo sessentista, que ainda tinha uma programação para resolver os negócios da família. Rugas? Sim, havia, eu disse que não deveria haver? A vantagem nesta bela senhora, é que as poucas e discretas rugas, em vez de estragar, emolduram seus traços e deixam ver perfeitamente a menina que ela já foi, e pelo visto ainda habita-lhe a alma.

17/10/2008

Tristeza assumida




Caminhava à luz da Lua Cheia, sem preocupações e sem ansiedades. Feliz. Um pouco triste, é certo, mas tristeza não é sinônimo de infelicidade.


Durante a infância foi uma criança alegre e despreocupada com a vida, afinal só teria sua formação cerebral (e portanto sua ligação com o corpo) completa pelos seis ou sete anos. brincava, corria, caia, se machucava, levantava e corria de novo. Foi uma criança normal. Se é que uma criança pode ser chamada de normal.


Com o passar dos anos foi tomando uma sobriedade intensa, muito maior do que os adultos achavam salutar para a sua idade. Se há algo que detesta até hoje, é compararem com qualquer outra pessoa, ainda que para a melhor.


Levaram a criança triste (como ficou conhecida na rua) para um psiquiatra com mais títulos e congressos do que células no corpo. De pronto diagnosticou esquizofrenia, sem nem ter tido muita conversa com a parte mais interessada. Passou medicamentos e aconselhou uma vigília rígida sobre seu comportamento.


As drogas acabaram dando, pois toda droga dá, efeitos colaterais. Até hoje tem os cabelos fragilizados por isso.


A vigilância foi um factor de irritação profunda, principalmente quando descobriu uma câmera escondida no banheiro. Em poucos meses viram suas imagens em um site de pedofilia. Os técnicos que instalaram a parafernália ganharam bem pelas imagens de sua mais privativa intimidade.


Um dia decidiu vestir a fantasia de adolescente. Seriam só seis anos. Seis anos e poderia sair de casa, sem dar satisfações, passar a agir à sua maneira e não ter que agüentar as cobranças para que exibisse alegria.


Ainda não era aquela cousa caricata dos adolescentes, mas já parecia á família, mais normal. Quanto sofrimento! Logo percebeu que ninguém notava a diferença entre um sorriso e uma exibição de dentes.


O passar dos anos foi penoso. Toda aquela gente superficial e vazia lhe dava náuseas. Todo aquele discursos pseudointelectual fazia um corte nos pulsos parecer razoável. Não se poderia esperar demais de gente com a sua idade, mas esperava muito mais do que isto de sua própria pessoa.


Conheceu cantores e grupos de antes de seu nascimento. Músicas tristes, melancólicas até, mas alguma muito animadas. Passou a saborear as obras ás escondidas, para não ter mais que dar satisfações a um psiquiatra com cara de tarado. Uma de suas preferidas passou a ser "Israel" nos vocais do Bee Gees. Aos poucos as músicas célticas, medievais, as antigas de Roberto e Erasmo, et cétera. Sentia-se bem. Ficava triste, sim, mas sentia-se muitíssimo bem. Conseguia se equilibrar e colocar as idéias em ordem.


Enquanto os "amigos" se casavam cedo, não raro à contragosto, se envolviam em barbáries jamais vistas por seus pais, se desencaminhavam completamente, sua tristeza lhe garantia a serenidade necessária aos seus propósitos. De campeonato de transa por noite a campanha pela obrigatoriedade da castidade, seus "amigos" se enveredaram por todo tipo de caminho, mas sempre em alas muito radicais, quase sempre irracionalmente radicais.


Decidiu estudar psicologia por conta própria, para saber se o que tinha era realmente nocivo. Acabou se envolvendo mais do que imaginava, logo passou a tomar "drogas" mais pesadas, como philosophia, arquetipismo, línguas mortas e outras.


Sua conclusão foi tão simples que se surpreendeu. A tristeza não é de todo ruim. em níveis baixos, como o seu, pode ser chamada de introspecção. Essa introspecção protegia sua sensibilidade aguçada de um mundo que lhe parecia ser muito grosseiro e agressivo, lhe permitiu viver até então sem se molestar, mantendo o respeito próprio.


Os estudos voluntários acabaram por ter um efeito colateral, pois toda "droga" tem. Não viu a passagem dos anos. Os seis anos se foram como se tivessem sido seis meses. Apesar da sobriedade intensa, da imensa antipatia para com quase tudo o que as pessoas louvam nesta época, era feliz. Na véspera de completar dezoito anos, foi à costureira buscar o vestido longuete azul marinho que encomendara, vestiu-o e chamou os pais para uma conversa séria. Não parecia uma jovem, parecia ser mãe da própria mãe. Primeiro avisou que, apesar de nem pensar em se converter, estava estudando a fundo e simpatizando muito com o judaísmo, então não os acompanharia mais às missas cheias de gente engomada que dão cheques de cinco reais à paróquia. Pelo menos não se sentia mais obrigada a fazê-lo, então que não contassem com sua presença. Agora avisa que não vestiria mais a máscara de jovem rebelde-sem-causa-mas-socialmente-aceita que vestia até agora. Nada tendo contra a juventude descompromissada, não fazia e nunca fez parte dela. Não queria ir á balada, não queria beber até cair para ver como é, não queria experimentar o que sabia que faria mal só para "saber" se gosta, enfim, sua cabecinha era muito diferente.


O ultimato amedrontou seus pais de sobremaneira, amanhã poderia ou não haver uma festa de dezoito anos, se a respeitassem do jeito que é. Caso contrário, já tinha para onde ir logo nas primeiras horas do primeiro dia de sua maturidade. Os fez lembrar das fortunas e dos prantos que nunca precisaram gastar por sua causa, dos filhos inesperados que não arranjou e dos cafagestes que nunca trouxera para dentro de casa.


Não foi preciso sair de casa, o recado foi bem dado. É uma moça feliz, muito feliz. Quem disse que precisa ser escancarada? Quase todos os sorrisos que vê exalam desespero, não que não hajam os sinceros, mas dentes brancos não são garantia de felicidade. E está feliz, muito feliz do jeito que é. A tristeza assumida e sob controle a faz parecer uma rainha.

04/10/2008

Aeromoça

A turbulência é grande, a nave estremece como se fosse se dissolver no ar. E é o que acontece. A aeromoça (como faz questão de ser chamada) consegue atar o último passageiro e as chapas do teto se desprendem, o vácuo a suga antes que se dê conta do que aconteceu.

Leva algum tempo para perceber o que está realmente acontecendo, está iniciando uma queda de quase três mil pés. A princípio chora, se desespera como se alguém fosse socorrê-la, como se o avião fosse dar meia-volta para tentar salvar sua vida. Mas ele se afasta a seiscentos quilômetros por hora, buscando altitudes menores, com o comando se esgoelando para pedir auxílio à torre. As comissárias de bordo não fazem questão de avisar da tragédia.

Cai em si. Ninguém vai salvar uma simples funcionária, para a qual existem milhares de candidatas para preencher a vaga que deixou. Ainda mais uma chata de caroço que insistia em ser chamada de aeromoça. Que merda! A gente não pode ser educada com os passageiros? Só porque não fazia careta quando me pediam uma caneta à bordo? Tá, eu nunca fui baladeira e companheira de manguaça, essas coisas. Isso deve pesar contra mim.

Vai pensando, meditando e praguejando enquanto a velocidade aumenta a 9,806 m/s². Sabe que estaria à salvo, na cabine da tripulação, se não tivesse se lembrado daquele bocó que levou uma revista pornô para o banheiro. Ele teria se lascado, acha que teria sido bem feito ao fedelho mal criado, mas seu senso de dever falou mais alto. Exactamente como lhe ensinara a sua mãe. Ah, droga! Agora ela chora desatadamente. Como ficará a sua mãe quando souber? Foi por causa dela que ingressou na carreira. Vanda era aeromoça, nos anos 1960, 1970 e 1980. Mas naquela época as cousas eram diferentes, se lembra bem de uma viagem que fez com ela e o pai à Lisboa, em 1978. Todas sorridentes, como enfermeiras que precisavam transmitir algo de bom aos pacientes. Aeromoça era algo glamouroso, conheceu várias pelo mundo, com uniformes que copiou e colocou em suas bonecas. Estão até hoje na estante, a mais nova tem o uniforme que usa agora. Droga! Droga! Droga! Droga! Droga! Droga!!!!!! Ela não queria ficar rica com isso, não queria viver imensos amores em cada país, nem mesmo escrever um livro quando se aposentasse. Só queria ser aeromoça. Conhecia a fundo as demandas da profissão, quando iniciou sua carreira, há menos de um ano. Mas que surpresa desagradável teve. Se sentiu uma arquiteta com doutorado, trabalhando com peões que não sabem fazer uma parede que não seja de tijolos furados.

Se pergunta o porquê de isto estar acontecendo. Sempre foi honesta até o talo, se dedicava aos passageiros como se realmente fosse uma enfermeira. Enfermagem, aliás, faz parte de sua formação, tal qual sua mãe, a melhor aeromoça que a antiga companhia aérea já teve. Sua mãe é seu ídolo, trabalhava com tpm, cólicas, joanetes, o que fosse. Ainda que com o semblante mais sóbrio, sempre tinha um sorriso para os olhos suplicantes de seus passageiros. Ser aeromoça demandava classe, elegância e boa educação. Seguiu todos os seus exemplos, tudo mesmo, à risca. Mas os tempos não são aqueles e a impessoalidade dominou quase tudo. Numa época em que a fedelhagem dos fóruns de internet rechaça quem demonstre cordialidade e camaradagem a todos os participantes, em que os carros rígidos e bem ajustados são chamados de resistentes, em que memórias sórdidas de uma prostituta (que se fez sem necessidade) são best-selers, em que ninguém mais sabe fazer piada sem palavrões e ofensas, em que uma brincadeira com um amigo pode render processos por alguma entidade neurótica, as suas qualificações não tinham mesmo o espaço de outrora.

Agora eu me pergunto, por quê? Por que eu me preparei tanto, se transar com o comandante é a única forma de subir naquela birosca, aquela garagem de paus-de-arara aéreos? Bem feito pra mim! Bem feito! Fiz tudo certo, deu nisto: vou me espatifar no chão daqui a pouco, vou virar ração em pasta pra cachorro. Eu sou burra, bur-ra... Mas não me arrependo de nada.

Começa a parar com as lamentações, pois o fim é inexorável. Se lembra do beijo que recebeu de uma criança autista, ao fim de uma viagem. Os pais da menina ficaram pasmos, completamente atônitos com aquilo, a psicóloga dela exigiu três testemunhas para acreditar. Acha que não fez nada de mais. Foi atenciosa, respeitou o mundinho daquela pequerrucha e conseguiu seu respeito. Volta a chorar, mas agora de alívio, pois esta lembrança honrosa traz outras, e outras, e mais outras. Não é ela a burra, são os chefes que não enxergavam e não remuneravam a contento a jóia que tinham em seu quadro.

Mas agora se lascaram! Ah, ah, ah, ah, ah, ah! Minha mãe vai poder comprar o condomínio inteiro com a indenização! Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah! Vai poder mandar todos aqueles xaropes pra fora e encher os apartamentos com nossos parentes. Irra! A Paula vai ter casa própria quando casar! Até que morrer não é tão ruim assim. Mas será que dói? E por que tá demorando tanto?

Aproveita a demora para, em um lampejo, pegar seu celular. Liga-o. A recepção está extraordinariamente boa. Pela primeira vez não amaldiçoa o inventor daquele aparelho. Liga para a mãe. Avisa que aconteceu um imprevisto e que não chegará em casa a tempo para o noivado da Paula. Se puder mandará mensagem (por um médium, quem sabe) e diz que ficará bem. Se despede da forma mais amorosa que consegue e desliga. Agora sim, chora copiosamente. Pela gente que deixará e, se o alfaiate Zé estiver certo, não verá por muitos anos. Se lembra de tudo o que fez de bom na vida, percebe que supera de longe suas traquinagens.

Começa a rezar para, não pedir, mas agradece pelo que pôde fazer de bom no pouco tempo de vida que teve, por não ter se rendido aos ataques dos colegas radicais de extremo rancor contra passageiros, por não ter deixado de fazer o que realmente queria e por ter sido uma aeromoça. A-e-ro-mo-ça. Foi para isso que se esmerou.

Olha para baixo, agora o chão está próximo. Que conveniente, bem o fundo do Instituto Médico Legal. Faz uma manobra para não ver e não sofrer ainda mais. Ajeita o broche na lapela, a echarpe azul e branca, coloca a boina contra o peito e acabou.
Nem doeu. Agora vai embora, que não precisa mais de nada daquilo.