23/08/2015

Nem todos são caçadores

  Paulo Coelho disse certa feita que as pessoas são, basicamente, caçadores ou fazendeiros. Gostar ou não do que ele escreve, é outra conversa, até porque só os iniciados em magia tiram o devido proveito de seus livros. A questão aqui é outra.

  Recentemente a Ford trocou o nome do Focus sedan para Focus Fastback, com a alegação dos marqueteiros de que não queriam a imagem de carro de tiozão... De novo isso, não bastava a Nissan perder minha preferência. Não é de hoje que a indústria pegou phobia de maturidade, tentando a todo custo parecer adolescente em todas as circunstâncias. Será que terei que construir eu mesmo meu próprio carro?

  Quem é o tiozão, nos termos ditos? É o fazendeiro ao qual Coelho se refere, ele mesmo um caçador assumido. O fazendeiro é aquele cara que tem compromissos com um lugar e as pessoas que o habitam, por isso mesmo é muitas vezes taxado de conservador, às vezes até é mesmo, mas isso não significa que a máscara festiva do caçador não esconda um conservador ainda mais arraigado, uma noite não mostra o que um ano de convivência escancara. Bem, eu sou tiozão, já disse isso aqui.

  O fazendeiro não procura por emoções novas a cada noite, ele prefere cultivar a família e as amizades consistentes a conseguir dez amigos rasos de balada a cada noite. Estranha quando ouve "novos amores a cada fim de semana" porque se doar a um relacionamento, em vez de simplesmente sugar o que pode de uma noite, é o que ele entende por "amor". Jogar pessoas fora por causa de uma decepção, para simplesmente evitar um sofrimento, não faz parte da política do fazendeiro. Ele tenta até não ter mais como.

  Sim, há caçadores disfarçados de fazendeiros, esses são os piores, praticamente psicopatas que aprenderam a chorar com convicção. Assim como há fazendeiros que aparentam em tudo um caçador.

  Alguém que não sabe o que é cultivar a própria cozinha, experimentar suas próprias invenções, emergir suas próprias novidades, aprimorar as receitas tradicionais, tatear as verduras e preparar algo apenas para o lanche da tarde, sem tentar ser "cool", não pode falar da vida de um fazendeiro. Não pode falar nem da própria, seria como ler notícias da imprensa oficial, que só diz o que agrada ao governo. O fazendeiro geralmente tem, por isso, uma casa grande, porque pretende ficar nela o máximo de tempo possível, assim como pretende que seus hóspedes fiquem mais do que durar uma comemoração, quem sabe para pernoitar.

  O facto de os fazendeiros não tentarem aparentar a idade que já não têm, mesmo que seus trajes esbanjem frescor e leveza, rende tanta ou mais implicância do que a minissaia curtíssima da adolescente. As pessoas parecem ter medo de que a "velhice" aparente do fazendeiro seja contagiosa, a ponto de repreendê-lo publicamente por não se vestir como um garotão descolado, aí, mano, tamos nas quebrada... Argumentação mesmo, nenhuma.

  A tragicômica busca por juventude ganhou impulso com as redes sociais, novamente beneficiando a vida do caçador em detrimento do fazendeiro. Fazer sua vida parecer uma eterna balada já excedeu as raias da sanidade. O fazendeiro até gosta de festas... Ok, nem todos, mas a maioria não faz muitas objeções. Mas ele tem os pés no chão, sabe que a diversão é SEMPRE sustentada pelo trabalho de alguém, e que faz muito bem o festeiro trabalhar para financiar suas noitadas. A vida, ele sabe bem, tem o lado B e está ciente de que precisa lidar com ele, em vez de simplesmente reclamar.

  Note-se que as cenas de noitadas em comerciais, nos últimos anos, têm desprezado totalmente o entretenimento familiar, que o fazendeiro aprecia. Mostrar amigos em um restaurante não tem mais apelo, tem que ser uma lanchonete de flash food repleta de slogans, em um ambiente feito para se ficar por poucos minutos. Foi-se a época em que oferecer o ambiente social era parte do programa. Muita gente, mas muita gente mesmo sente falta dessa interação calma e pormenorizada.

  Isso porque o fazendeiro não pode se dar o luxo de aprender os sinais e só procurar por ameaças, ele precisa atentar aos detalhes da fazenda, todos os dias. Tudo é relevante. com isso ele aprende a também cultivar os mínimos detalhes de uma relação, inclusive familiar; às vezes irrita, reconheço. O fazendeiro ganha então ares de uma mamma calabresa da mais pura linhagem. Você simplesmente odeia amar alguém assim, nunca assume, mas geralmente ama.

  Não ter vergonha de não estar actualizado com absolutamente todas as novidades da internet, não é motivo de vergonha para ele. É motivo de receio o péssimo tratamento que recebe de quem se diz aberto e livre de preconceitos, porque para este tipo não basta não gostar, é preciso localizar, identificar e hostilizar quem gosta. Por isso o fazendeiro se desilude rapidamente de redes sociais, ao contrário do caçador, que simplesmente se cansa e procura outra. Se ele consegue um bom número de contatos ou mesmo tem uma página temática, simplesmente passa a ser menos visível e evita os desconhecidos... Se bem que esse comportamento é típico dele mesmo na vida real... Abandonar o que conseguiu construir é uma opção muito remota.

  Às vezes o fazendeiro dá a louca e destrambelha pelo mundo, mas isso não é uma rotina e ele não está em busca de emoções tão intensas quanto superficiais, tampouco se sempre obrigado a fazer selfies para todo mundo acreditar que está feliz em um lugar descolado agitando altas sei lá o quê. O fazendeiro sai do ninho para espairecer ou por necessidade, mas sempre com a intenção de voltar. Não se iludam, sua rejeição à superficialidade o faz aprender muito com o que vê e vive, umas poucas viagens lhe ensinam muito mais do que uma vida cigana à maioria de vocês.

  Por tudo isso o fazendeiro se ressente da indústria, inclusive, como disse, da automotiva. Essa mania dos marqueteiros acharem que todos são "mucho locos, mano" afasta um tipo de consumidor que simplesmente sustenta uma marca em crises prolongadas. O caçador, vendo que não há caça, se manda e não quer saber do resto, quem cultiva e cuida da terra para voltar a produzir, é o fazendeiro. Alguém aí notou que as marcas retrô progrediram, enquanto os outros encolheram ou desapareceram, no pior da última crise mundial? Uma olhada pelo Facebook, uma busca rápida por esse tipo de página e vocês verão o que digo.

  Não preciso dizer que o gosto pela mansidão e pela rotina já produz rejeição sumária, privando os preconceituosos de conhecerem o fazendeiro e sua história de vida, que ao contrário das lorotas de caçadores ávidos por aplausos, é real. Muita gente provavelmente acabaria descobrindo que é fazendeira, contrariando tudo o que alimentava até então; é um risco que poucos querem correr, seria uma perda brutal de popularidade.

  Desdenhar um público é perigoso, especialmente um tipo emotivo e teimoso como o fazendeiro. Ele pode interpretar isso como um fora ou, pior, como uma traição. Trair o fazendeiro é ter certeza de perder para sempre, inclusive o cliente. Essa neurose estúpida não vai durar muito mais, ela cansa, os próprios consumidores que as campanhas idiotas adulam, um dia se cansam delas. Da mesma forma é um equívoco acreditar que um tratamento aceito pelo senso comum, vai agradar a todos, nem todos gostam de intimidades com estranhos, muito menos em público.

  Se lhe parece pífia e sem sal a vida do fazendeiro, bem, boa sorte na tua vida louca, mano! Só não se esqueça de manter o devido respeito, porque disso ele faz questão. Caçadores que se prezem sabem bem que o fazendeiro, para defender seu rebanho, aprendeu a administrar vários alvos móveis ao mesmo tempo, ciente de que nenhum deles pode sair vivo da invasão.