27/11/2008

Drama; 3 de 3

Todo fim de tarde, Esther vai à creche, ver no que pode ajudar. Sábado é a manhã inteira, com os filhos e o marido, queiram aqueles ou não. Laura não tem tamanha disponibilidade de tempo, mas sempre que pode está lá também, com Angus. O rapaz se sente meio responsável pelas crianças, embora o corpo esteja debilitado, a voz ainda vibra forte e alerta a qualquer risco. Virou "Tio Angus"...

- Tio? Eu?! Mas nem irmão eu tenho!

O bom humor está intacto. Laura já se reacostumou à sua boa aparência e o filho retribui. São cinco anos de sossego relativo, que Angus aproveitou para aprender hebraico com os novos amigos, o que não só preservou como aumentou sensivelmente sua lucidez.

A lua vai de balsâmica para nova nesta noite. De dentro da Caravan, mãe e filho vêem aquele Maverick fritando pneu assim que a luz verde acende. No som, toca "A Song For You". Rapidamente o bólido entra na Marginal Botafogo e some, D'us sabe a que velocidade.

Angus não acorda. Está quente, respirando, mas é uma respiração fraca. Leandro chega imediatamente, já com uma ambulância e o leva ao hospital. São horas de observação, com a pele empalidecendo e uma mãe se segurando para não desabar outra vez. Os dias correm serelepes e o quadro não melhora, mas Angus consegue acordar. Olhos fundos, voz fraca, mas mente lúcida e consciente do que se passa...

- Pelas barbas de Moisés! Não foi pra casa ainda?

Laura acorda de repente e cerca o filho. São quatro horas da manhã de sábado, na qual uma lua nova priva o mundo de sua luz. Leandro chega o quanto antes e ajuda a convencê-la a ir para casa e descansar...

- Alguma vez menti pra você? Então vai pra casa, toma... Toma um banho e descansa... Prometo que volto também, assim que puder.

Após muita insistência e diplomacia, ela vai, já tendo instruído todo o corpo de enfermagem dos cuidados a serem dispensados ao filho.

Dorme pesadamente. Sonha com uma menina dentro de uma grande caixa de bombons, debaixo da árvore de natal. O sono fez o efeito esperado e ela está nova em folha. Não tem outro pensamento que não o de ir ver Angus. Pelo caminho, vê aquele mesmo Maverick em uma loja de usados, à venda. Sabe o que dar de natal ao filho. Nisto se lembra se sua situação financeira razoavelmente confortável. Imagina o que as mães das crianças da creche passam, quando seus rebentos adoecem e precisam ser humilhadas em filas, guichês e corredores infindáveis de hospitais públicos.

Vê uma multidão no apartamento do filho, logo à frente vê Leandro desolado e se desespera. O pior aconteceu e ela não vê o tempo passar em seus prantos. Karen canta "Ave Maria".

Três anos e só as crianças da creche mantém a sanidade mental de Laura. Precisa delas muito mais que elas de si. Sua nova irmã se chama Esther, cuja fibra e experiência, a despeito da idade, amparam a órfã-de-filho em todos os momentos. É sua convidada constante para um chá, um jantar, às vezes um dia inteiro em uma casa íntegra. Mesmo cambaleando, Laura se mantém andando.

Certo dia, em vez da Caravan (que ficou na garagem desta vez) ela chega dirigindo aquele Maverick. Viu a lua crescente ainda bem cedo e se animou. Era de Maverick que Angus gostava? Então vai estudar tudo o que puder do carro, não pensou duas vezes antes de comprar aquele, cujo bom gosto da customização distanciou quem geralmente gosta de "tunning". A primeira cousa que aprendeu foi não subestimar um V8, principalmente com a preparação de seus 450cv já a 5000rpm. É carro manso, para as ruas, nem por isto menos perigoso em mãos leigas, como as dela. Os amigos gostam da novidade, sinal de que ela está superando.

Esther, uma cabalista que não se rendeu ao "show da cabala das estrelas de Hollywood", com seu modismo que mais detrata do que promove as tradições de seus ancestrais, chama Laura após as felicitações pelo carro novo...

- Ele te disse que voltaria? Você viu uma menina numa caixa de bombom? D'us é misericordioso ao infinito. Apareceu uma recém-nascida numa caixa em forma de coração, hoje cedo, à nossa porta.

Ela vai ver. Angus nunca mentiu, não foi desta vez que faltou com a palavra. A mesma garra que teve para cuidar de Angus, usa agora para adoptar Ceridween. Ela fez por merecer.

E a vida continua, sempre.

21/11/2008

Drama; 2 de 3


Angus espera a mãe na sala de espera. Até imagina o que ela tanto conversa com o médico, mas fica agoniado com o passar de quase uma hora. A bengala já é sua companheira de todas as horas. Não tem mais tremores, mas a coordenação motora tornou-se pífia. Consegue se alimentar, tomar banho, arrumar a própria cama, mas a caligraphia bonita e bem desenhada é saudade. Mal consegue escrever.

Laura sai do consultório com o semblante duro, pesado, chama o filho e diz para não fazer perguntas. Na verdade está segurando o choro. Deixa-o com a fisioterapeuta e vai ao pátio interno, desabafar. Uma vizinha com a qual pouco fala a reconhece. Nota claramente a dor no rosto da viúva, que aos poucos chora, passando de lágrimas furtivas ao choro mudo e desesperado. Esther sabe que Angus tem problemas de saúde, mas nunca teve grandes intimidades com aquela mulher em especial, só soube pela amiga em comum Mirtes. Deixa as crianças com as outras voluntárias e vai ter, seu coração de mãe judia tem certeza de que foi algo que o médico disse. Médicos deveriam ter bônus e ônus duplos, para o céu ou para o inferno, pensa. A fortaleza aparente de Laura desmorona rapidamente, ela nem percebe que está sendo amparada, só repetindo quase aphônicamente "vou perder meu filho". Esther também começa a chorar.

Passado o aguaceiro, Esther traz o médico pelo colarinho, literalmente. Deu um sopapo na secretária e em um segurança, mas é cousa à qual está acostumada a fazer pelos próprios filhos. O faz ver o que sua frieza "profissional" causou. "Lamento, mas é quase certo que ele vai morrer logo" é trocado por palavras mais amenas, ainda que na marra, enquanto Leandro é avisado do erro crasso do colega, e quase põe o hospital abaixo. Concorda com a judia que filho é assunto a ser tratado com luvas de pelica, principalmente em casos tão graves. A própria trata de preparar a outra mãe zelosa como acha que deve ser...

- Ouça, talvez o seu anjo tenha que voltar para o céu mais cedo. Aquele paspalho irresponsável não deixou claro que isto é uma possibilidade, não uma certeza. (suspiro) Cuide dele, que nosso bom D'us não pede mais do que isso, mas evite ficar triste e desarrumada. Ele vai ficar tão ou mais triste do que você, vai achar que está atrapalhando e que é o culpado pela sua tristeza. Tô vendo que você é mãe de verdade, que coloca o seu filho à frente de tudo, então faça mais isto por ele. Eu já te vi em épocas em que se arrumava, perdoe a indiscrição, volte a fazê-lo. Ele vai ficar feliz. Ele não merece isso?

Laura confirma com a cabeça. Mas por agora continua precisando do amparo, após o quê é auxiliada na melhoria da aparência. Já que está cor de rosa de tanto chorar e soluçar, lhe empresta uma fita branca para colocar na cabeça, prendendo só os cabelos rentes ao couro, dá um laço muito discreto, um baton cereja-claro e ajeita-lhe a camisa. Agradece e vai buscar Angus, que já é hora. Esther estava certa, os olhos do garoto brilham ao ver a mãe mais leve e bem arrumada.

A lua mingua para balsâmica, neste início de noite, mas desta vez a televisão foi desligada. Laura acompanha o filho àquele treco esquisito com o qual nunca teve intimidades, o computador, manipulando aquela cousa estrambólica com a qual nunca simpatizou, a internet. Só os usa (ou usava até agora) para assuntos sérios, estritamente profissionais ou casos de urgência. Ele lhe mostra seu espaço pessoal na rede, dedicado aos Carpenters. Nunca soube que ele tinha esse gosto para música, sempre esteve ocupada demais tentando dar-lhe um futuro melhor. Na rádio virtual que montou, toca "Crescent Noon". Vê também que ele tem muitos amigos virtuais com espaços isotemáticos. Confessa-lhe...

- Pois o seu pai, no nosso aniversário de namoro, me levou pra ver eles, quando estiveram no Brasil. Conheci os dois. Não sabia que ainda havia gente que gosta deles, faz tanto tempo!

Vai ao seu quarto, pega uma caixa sobre o maleiro e leva ao filho. Lhe dá de presente. Ele abre e o coração dispara, o que poderia ser perigoso se estivesse só. Laura Smaradigma, sua mãe, em várias photografias com seus ídolos. Sabe que é sua mãe, mas não reconhece aquela Laura risonha e marota que mostra língua ao namorado photógrapho, ao lado de Karen Anne, que também faz a careta. Os golpes da vida e a falha dos que deveriam ajudá-la, a encrudeceram pouco a pouco, quase sem perceber. Escaneia imediatamente, publica várias das muitas poses e dá à mãe a senha e os macetes da página. As imagens fazem sucesso rapidamente e ela fica famosa entre os fãs dos irmãos. Muito bonita é o adjetivo mais brando que Laura recebe dos internautas.

Com a aparência restaurada, os galanteadores de cinqüenta centavos logo começam a receber sopapos da mulher, que passa a ajudar Esther e seus filhos no voluntariado, na creche do hospital. Não só pela mudança de atitude, mas a lida com aqueles rebentos a rejuvenesce. Angus ajuda com sua serenidade, pois fisicamente já está incapacitado para tanto.

Continua...

13/11/2008

Drama; 1 de 3

Laura leva o filho para casa. O garoto se cansou muito, no meio do recreio já não agüentava dar um passo e os professores acharam por bem que não voltasse a pé. A lua cheia já começa a minguar em último quarto, neste fim de tarde, quando a boa Caravan entra na garagem. Para quê trocar de carro, se seu mecânico de confiança conseguiu enfiar uma injeção electrônica no GM151? Não vai gastar a poupança à toa.

Angus volta a se cansar, desta vez com mais intensidade, e desta vez desmaia. Acorda à noite, no hospital, com suspeitas de esclerose...

- Meu filho tem sete anos!

- É só uma especulação, mas o eletroencefalograma não deixa muita margem, e pegamos os sintomas em plena actividade.

O neurologista se esmera em explicar que não existe doença exclusivista, que ele mesmo já teve câncer de mama.

Uma semana depois, Angus tem um ataque, consegue gritar pela mãe, mas cai e se fere no meio-fio de granito. O diagnóstico é confirmado por dois outros médicos.

Laura é uma mulher forte, viu o pai ser levado, sem acusação formal, pela repressão e nunca mais o viu. Sustentou a mãe e a irmã caçula até se ver sozinha no mundo. Depois pela segunda vez, quando viu o marido esmagado entre um ônibus e um poste. O motorista fugiu e nunca foi encontrado. Suportou tudo para criar o filho, o fez aprender as lidas domésticas desde cedo, disciplina-o como acha que deve. Ela agüenta a notícia, explica ao menino da forma mais diplomática que pode e avisa que terá que estudar em casa, de agora em diante. Sorte? Não. Laura nunca lhe passou a mão na cabeça e se mostra uma professora rigorosa.

Vai um ano sem novos incidentes, com remédios relativamente caros. Angus monta um Maverick de papel, que pegou na internet. Modificou a pintura original para fazer um bólido. Diz que pegará uma carcaça no ferro-velho e montará um igual, quando crescer.

Angus acorda de um mês de coma. O dono da drogaria já está preso, por venda de medicamento falsificado, mas as seqüelas no sistema nervoso são irreversíveis. O garoto perdeu quase um terço da visão e aquele décimo oitavo Maverick foi o último que ele conseguiu montar sem ajuda. Precisará de uma bengala, de vez em quando. Laura se mostra firme. Impressiona a todos pela fortaleza e pela serenidade, mas por dentro se contorce de preocupação. Seu filho não terá uma adolescência normal. Receitam mais medicamentos. No caminho de volta, Angus vê um Maverick 302 exactamente igual ao último que fez. Chama a atenção da mãe para o que viu, consegue assim distraí-la de seu mundo denso. Ela sabe dispensar carinho, mas só o faz para quem julga que realmente precisa. Seu filho, no entanto, se comporta como um homem, ao menos aparentemente.

Segue mais um ano sem qualquer ocorrência. A única anomalia é Angus estar dois anos adiantado em relação à antiga turma, que se compadece...

- E a gente pensando que cê tava de boa, mano!

- "Boa" o cacete! Eu estudo o dia todo, faço exercícios o dia todo, levo bronca o dia todo. Fora que ela nunca mais me deixou comer bobagem.

Eles o confortam. Infância sem comer bobagem, para eles, não é infância. Findada a visita, Laura o põe para estudar tudo o que as horas de lazer inesperadas não permitiram. Quer mantê-lo o mais lúcido possível pelo maior tempo possível. Seu neurologista afirmou que todos os pacientes que lêem e estudam respondem melhor ao tratamento. No rádio toca "Era Bello Il Mio Ragazzo". Desliga-o na hora, já começava a marejar os olhos.

Aos poucos se torna comum ver o filho usando a bengala, aos poucos se torna comum ele não conseguir andar mais que devagar, logo o médico desconfia da gravidade dessa doença e pede exames novos, com tecnologias novas e se põe a estudar descobertas novas. Viu aquele menino nascer e a última cousa que quer é enterrá-lo. Laura aceita de bom grado a solidariedade dos próximos, mas rejeita até com rispidez as manifestações de piedade. O rádio de alguém, no Vaca Brava, toca "Lady Laura". Aperta mais a mão do filho, mas não muito, ele ficou sensível à dor.

A polícia interfere para que Laura não mate um dos médicos que deram o diagnóstico. Descobriram violações no tomógrapho que aumentam muito as chances de acusar doenças graves, estranharam ele ter trocado de carro tão depressa. Um fiscal da Vigilância Sanitária diz que é comum, como o caso, médicos receberem comissão pela receita de drogas controladas...

- Seu Sérgio, meu filho tomou medicamento para esclerose por dois anos! Será que tem jeito de reverter o quadro dele, se parar de tomar aquilo?

O pharmacêutico de formação pensa um pouco, lembra do trabalho de formatura e conclui, com o médico da família, que foi justo isto que degenerou a situação do rapazote e, lamentam, pode ser irreversível. Dias depois uma nova tomographia revela os danos graves. Mas ela não vai ficar parada, vendo a banda passar. Manda um e-mail para a irmã, hoje em Berlim, para que informe de qualquer novidade na área, e recebe uma reprimenda. A caçula a espinafra por ter escondido o caso, soube por jornais do escândalo do médico, mas nunca pensou que o sobrinho estivesse doente. Manda no dia seguinte artigos que são entregues ao único médico em quem Laura confia. A luta dá frutos e o quadro estabiliza.

Os estudos? Os amigos de Angus voltam a consolar o garoto...

- Putz quiparalho! Tua mãe é lôca, mano!

- Isso é coisa pra gente ver no vestiba!

Laura surge por trás, com o lanche e sugere que, em vez de resmungar, que aproveitem o adiantamento do amigo para se darem bem na escola. Eles acatam a idéia. Na manhã seguinte, Leandro dá uma notícia preocupante. Nem ele, nem nenhum dos colegas do mundo inteiro que consultou, sabe o que Angus tem. A medicação errada fez uma confusão de sintoma tão grande, que ninguém mais arrisca dizer que tratamento deve ser seguido. Além de áreas internas e importantes demais estarem envolvidas na lesão. Por enquanto, continuarão com a medicação e as actividades de praxe, mas alerta para que não subestime o menor sintoma, qualquer tremedeira, a mínima formigação, e mantenha Angus longe de lâminas e pontas.

Graças à mãe firme e disciplinadora, consegue chegar à puberdade sem maiores revezes, contando até com a presença da tia que nunca tinha visto na vida. A coleção de Mavericks de papel impressiona, não pela quantidade, mas pela personalização e pela qualidade da montagem, hoje com co-autoria da mãe. Aliás, se perguntam se um bom padrasto não seria de ajuda para ela cuidar do filho...

- Mas que idéia mais estapafúrdia!
- Por que? Se eu te levo comigo pra Alemanha, tu não fica solteira nem que queira! Já se olhou no espelho? Já viu o pitéu que tu és?
Não se acha. Nem se veste como uma mulher bonita, na verdade nem quer ser, quer manter os homens longe para se dedicar ao filho sem ser perturbada.
Continua...