21/12/2014

Tragédia de natal

  "Coma uma fatia de panetone, Berenice" insiste Adalberto. Mas ela não come, sequer responde. Está há anos neste estado, como se estivesse morta. Ele a vê à sua frente, aquele olhar lacônico que a acompanha desde a adolescência, aquele coque quase vertical, aquele terninho imitando os modelos Chanel que ela mesma fez. Tudo como sempre foi, exceto que ela não responde mais.

  O natal há duas décadas tem sido uma época triste para a casa, o último filho se casou e tudo ficou muito vazio. Foi coisa de três anos. Num dia a primogênita apresentava o namorado e no outro o caçula saía em lua de mel. Seis casamentos em três anos. A euforia pelas festividades seqüenciadas logo deu lugar à ressaca da casa vazia, enorme, construída pelo casal quando decidiu pelo matrimônio. Já nem há mais decoração natalina na sala, que outrora foi um festival de luzes coloridas.

  Os sete primeiros netos deram uma alegria estrondosa, o último nasceu poucos dias antes de o caçula se casar. Hoje estão todos adultos, donos de seus narizes e sabe-se lá por onde andam. Sabe que estão com as vidas encaminhadas, deixando seus pais a sós com o patrimônio que construíram. Eles sabem por onde andam seus rebentos, todos nos exterior, mas são nomes de lugares aonde Adalberto nunca sonhou em ir. Não que a miséria tivesse batido à sua porta, apesar dos sufocos e revezes de uma vida longa, mas sempre foram ele e Berenice, um casal com os pés no chão, não se iludiam com o que na época era um luxo.

  Aos poucos ele desiste de oferecer o acepipe à esposa. Não está irritado, compreende sua situação. Aquela era a casa mais festiva do bairro, afinal eram seis jovens que a habitaram por muitos anos. Eles sim, conheceram o mundo, trazendo de volta aos pais a riqueza do que tinham aprendido lá fora. Photos, presentes, revistas e miudezas que até hoje repousam com carinho, no baú do quarto de casal.

  Lembra-se de como as pessoas faziam troça, quando dizia que se casaria com aquela moça linda e risonha. Era a alegria em pessoa. Com tantos rapazes em carros caros e vivendo de mesada do papai, por que ela o aceitaria? Pois por isso mesmo ela o aceitou. Foi um casamento dos sonhos, com todos os problemas que a vida doméstica tem, foi um conto de fadas.

  Lembra-se ainda de que a esposa era alegre até demais, em algumas ocasiões. Era uma estrela radiante, mas depois que o caçula se casou, as coisas mudaram muito. Ela nunca mais foi a mesma desde que ele saiu em lua de mel, pegou a estrada prudentemente pela manhã, mas logo na saída teve seu Chevette Hatch 1982 esmagado pelo Scania 113 de um motorista drogado.

  Ninguém se recuperou de verdade até hoje, mas todos aprenderam a conviver com a dor. Todos, exceto Berenice. Coração de mãe, também, mas a mídia estampando o corpo esmagado do rapaz em todos os jornais, tornou irreversível o que era extremamente grave. De então em diante o olhar lacônico não ra mais uma armadilha, Berenice definhava a olhos vistos, para a tristeza do marido dedicado.

  Morreu, como disseram os médicos, de coração partido. Hoje Adalberto chora sozinho, conversando em vão com o último retrato da esposa, tirado há quinze anos, pouco antes da morte súbita.

15/12/2014

Fusqueando no fim do ano

 Ele entra no Fusquinha 1967 verde, decidido ao que se propôs. Mal sai do bairro residencial e já vê luzes piscando por todos os lados. Mal entra em uma via principal e se vê cercado de carros em vários tons de cinza, praticamente parados. De que adiantou ter importado o Plymouth Superbird numerado, se naquela muvuca o ronronar encorpado de seu V8 permaneceria em marcha lenta o tempo todo? Vai no Fusca mesmo.

  Das janelinhas mínimas ele vê as pessoas apressadas, com celulares e smartphones dividindo as mãos com as sacolas. Uma mulher nem percebe que roubaram as suas, se tão entretida com o maldito tablet. Consegue andar uns dez metros e o trânsito para de novo, desta vez por causa de uma batida. Um Gol enfiou na traseira de um Up! e a maioria estava perto demais para poder desviar. Briga de família, pensa ele, melhor não se meter. Espera pela primeira brecha e se aproveita do metro e meio que manteve do Cruze para trocar de pista.

  A cerca de vinte metros à frente, um Caio Alpha Vip caindo aos pedaços pressiona uma Grand Besta que insiste em respeitar o sinal vermelho, o motorista da Kia estaciona e o ônibus avança o sinal, batendo em outro logo adiante e arruinando de vez o trânsito. Quanta irritação, quanto estresse, quanta vontade de de encontrar um portal das fadas e sumir deste mundo! E olha que estamos na época do amor e da fraternidade! Em época de carnaval ele vê o próprio diabo fugindo do inferno que se instala na cidade.

  Sem escolha, desiste do itinerário que traçou e pega a primeira via transversal que consegue, entrando em bairros mais caros e cheios de luzinhas que simbolizam o que suas casas não têm. Um Azera branco entra na contramão, buzina e vai embora, chamando o milionário do Fusquinha de pobre e intruso. Ele segue pelo reino da plebe esnobe, em meio a casas ajardinadas e repletas de temas natalinos. Tudo tão bonito quanto falso, pelo menos nas que conhece, como a daquele contraventor que quase bateu no seu carro e não o reconheceu.

  A motorista de um Mercedes-Benz E-400 Hybrid preto até demonstra civilidade, dando-lhe a preferência em uma rotatória. Talvez porque ela também esteja farta de tudo aquilo, se há algo que aquele carrinho tem de sobra é honestidade, não parece ser o que não é e dependendo do uso, entrega até mais do que promete. O completo oposto do que está acostumada naquela vizinhança. Sabe de muita gente que arrota Cadillac, mas pena para pagar as prestações do Impala.

  Enfim consegue entrar em uma zona comercial. Aqui, pelo menos, pobre com dinheiro na mão tem alguma consideração. Ele em sua fantasia de pobre pode circular com menos medo. Os panetones que estão à venda desde Outubro não dão para quem quer, mesmo os ruins. Já se preveniu, o carro tem tudo de que vai precisar. E ser bairro caro não o poupa das mazelas de um prefeito que não tem gestão, tem uma congestão à frente da capital do Estado. As madames não têm com seus esportivos utilitários a desenvoltura de seu mini Panzer, em meio a todos aqueles buracos e poças de lama.

  Consegue sair da babel. Agora anda a mais de quarenta por hora, mesmo com asfalto cheio de remendos, desníveis críticos e buracos. Engata a quarta marcha e o boxer ronrona macio. Liga o rádio e ouve "Solitaire" na voz de Karen Carpenter. Acalma-se. Finalmente vai passar o fim de ano sossegado, sem ter que exibir dentes e participar de selfies infames. Participou ontem do último encontro oficial do clube do Fusca, já avisando do que iria fazer, e que por isso não poderia aceitar convites de fim de ano. Hpuve insistência, mas ele está decidido a ter um tempo para meditar e ter em mente o que fará da vida de agora em diante.

  Sua intenção é ficar só, ele e a solidão, mas mudanças de planos que não comprometam o objectivo podem correr, como a de itinerário para pegar as ruas largas de bairros industriais. Encontra uma amiga à beira da alameda, com seu Fusquinha 1968 vermelho parado. Nada de mais, um alicate e uma argola de chaveiro resolvem o problema que mandaria os carros modernos para o guincho. Ela não foi ao encontro de ontem, teve a mesma idéia, passou meia hora antes pelos mesmos lugares, passou pelos mesmos sustos, teve as mesmas irritações e seu Fusquinha está cheio das mesmas coisas.

  Vão os dois Volks então para o recanto que ele preparou, onde até há bons sinais de celular e internet, mas quase não usam os recursos, querem mesmo usufruir da solidão a dois. O ano novo começa com uma senhora dando ordens na casa. Só digo uma coisa, não digo nada. E digo mais, só digo isso.

03/12/2014

Papai Noel da depressão

Fonte: Bear Tales
  Carta: Querido Papai Noel, eu pedi uma conta gorda e um corpo magro! Por favor, não confunda novamente as coisas.

  Resposta: Eu te dei um emprego de gerente em uma academia grã-fina, você ganha o bastante para trocar de carro todos os meses e tem direito de usufruir de graça de todos os recursos da academia. O que você fez? Malhou? Fez o pé de meia? NÃO! Você se empenhou em dar em cima dos instrutores e quase perdeu o emprego por isso! Passa mais tempo pensando em como ferrar aquela sócia linda e maravilhosa que malha pouco e tem muitos resultados, do que se cuidando. Sua preguiça é tamanha, que torra quase três quartos do seu salário em clínicas de estética para preguiçosos que não querem malhar. Mas eu sei o que te falta, vou te mandar embrulhada em uma caixa aveludada com laços de fitas douradas, uma dose cavalar de vergonha na cara.

  Carta: Aí, Noel! Tô com a Maria e o Menino Jesus! Se não trouxer o que eu pedi, você nunca mais vai ver eles. VLW!

  Resposta: Aí, boçal! Pensa que está falando com quem? Com a turminha "Telma eu não sou gay" da sua rede social? Pode enfiar esses bonequinhos de gesso onde você já tomou, na cadeia, e é para onde vai voltar se não tomar jeito de homem, rapá! Vê se toma vergonha nessa cara lerda e usa o computador que EU TE DEI para aprender alguma coisa que presta, em vez de bancar o mano revoltado e oprimido que você nunca foi! Se vacilar de novo, mermão, vais ganhar é um par de braceletes judiciais e um apê com vista pro pátio do Carandiru.

  Carta: Eu não fui um bom menino, mas foda-se! Meu pai é deputado, tem imunidade, tem grana e vai me dar o que eu quiser! Chupa, velho chato!

  Resposta: Seu pai vai ser cassado antes de comprar os presentes, vão aparecer todos os podres, as amantes e O amante dele vão aparecer para dilapidar o fruto do furto ao erário, vai virar boneca na cadeia porque o diploma dele é falso e você vai estudar na escola municipal pipoco feliz. E você sim, vai correr o risco de chupar algo na pior acepção da palavra, se tentar montar banca por lá, fedelho insuportável.

  Carta: Querido Papai Noel... Ah, qualé, isso é invenção da Coca-Cola pra vender aquele desentupidor de pia que ela faz todo mundo beber! Por que continuo escrevendo essas cartinhas idiotas?

  Resposta: Querida adolescente revoltada que pensa que sabe tudo, meu nome verdadeiro é Nicolau e eu fui monge na idade média. A roupa vermelha não foi invenção de nenhuma companhia industrial, várias propagandas do século XIX já me mostravam assim, o que eles fizeram foi contractar Haddon Sundblom para criar uma imagem mais amigável às crianças, e o artista retratou a si mesmo para agradar à neta. Veja aqui e aqui. Quanto a evitar refrigerantes, você faz muito bem. Quanto a continuar escrevendo essas cartinhas idiotas, é porque você é o melhor tipo possível de idiota. Você não pediu nada, mas vou te dar uma bolsa em Harvard.

  Carta: papai noeu eu keria ganha um plestexiom e porke todo mundo ja tem e so eu q nam tem e poriso me intristese muitu eu vou fi k felis se ganha o plestexion. Vlw.

  Resposta: Ai, meus olhos seculares! Vou te dar é um ano de internato, para aprender o que essa escolinha empurrista não te ensinou.

  Carta: Querido Papai Noel, eu não quero um presente, propriamente dito, quero uma ajuda sua. Tenho muitos amigos, mas alguns deles são meio "politizados" e ideológicos, me trollam porque eu te escrevo cartinhas todos os anos, berrando que eu tenho problemas mentais e deveria é lutar pelos preceitos ideológicos de mudanças e eleger os candidatos que eles apóiam. Toda vez que eu falo em algum sonho, aparece um deles para me criticar de novo, afirmando que o sonho é um governo dos militantes que eles apóiam e que o senhor é invenção de exploradores para alienar as crianças. O que eu faço?

  Resposta: Então eles acreditam em discursos de políticos e te criticam por acreditar em mim? Meu filho, quem tem problemas mentais são eles! E te digo mais, eles nunca foram seus amigos, se não te respeitam. Vou te dizer o que farei, vou te dar um endereço novo e um emprego de meio período, para poder continuar estudando e não ter tempo de ser encontrado por esses caras, de quebra vai ter seu próprio dinheirinho.

  Carta: Aí, Noel! Ohooo! Valeu, aí!

  Resposta: Só, bicho!

07/11/2014

O postador invisível


  Ele caprichava, sejamos justos! Todos os dias colocava ao menos uma publicação digna de nota. Interagia bem com os contactos, fazia questão de ler todo mundo, na medida de seu possível. Tinha sua preferência, é claro, os quadrinhos antigos, mas falava de praticamente tudo. Discorria com autoridade nos comentários e não levava para o lado pessoal as broncas e desabafos dos outros.

  Tinha uma boa técnica para o cabeçalho, utilizava palavras sem muito rebuscamento em chamadas de três a cinco linhas, para anunciar e descrever sucintamente sua postagem, sempre com algum viés de utilidade prática, quase sempre com boas doses de diversão. Utilizava palavras-chave populares para chamar atenção, mas queria evitar a mendicância de curtidas que infestava a rede social. Achava um horror a chantagem emocional que muita gente utilizava em tudo quanto era lugar para implorar que favoritassem suas páginas.

  Algumas de suas postagens eram repletas de referências, isso quando o conteúdo não era de sua autoria, o que era muito comum. Photographias, vídeos, desenhos, textos, enfim, fazia questão de deixar e não só se valer do conteúdo que vagavam pela rede. E era muita coisa, com muita, mas muita diversidade, capaz de agradar a todo mundo. Seu perfil acabava por se tornar uma revista cibernética, quem entrasse lá estaria actualizado com o mundo e ainda encontraria algo para curar os traumas pelas notícias brutais que se tornaram tão corriqueiras.

  Tinha sua rádio preferida e sempre que podia, colocava um vídeo da música que estivessem tocando no momento. Às vezes com um comentário de uma linha a respeito do cantor ou da banda. Seguia algumas boas rádios com perfil oficial, além de alguns artistas de que gostava, especialmente músicos e cartunistas, embora estes não se considerem artistas, chegou mesmo a ser e ter alguns como contactos regulares. Tudo acessível aos outros contactos, para que pudessem se entreter com facilidade, sem ter que catar páginas pela rede.

  Tecnicamente era um perfil muito, mas muito interessante, mas não decolava. Enquanto gente que postava photos de sua unha encravada, nada além da photo da unha encravada se tornava viral, ele via suas postagens muitas vezes ignoradas solenemente até pelos seus contactos, que não raro sugeriam que ele falasse de coisas que já tinha falado várias vezes e ninguém tinha dado bola.

  Na verdade até a família dava mais bola para bobagens superficiais do que para suas boas postagens. Não que ele de vez em quando não publicasse algo bobo e leve, para atenuar as tensões do dia e arrancar algumas risadas de alívio, mas até nisso os acessos estavam muito abaixo da média. Ele não entendia, simplesmente não entendia o porquê desse fiasco. Verificou os bastidores do perfil, viu as permissões, acessibilidade, enfim, era um perfil aberto e bem organizado, fácil de lidar até por leigos, mas simplesmente não decolava.

  Fez um passeio por perfis mais acessados, estudou-os, deixou curtidas e comentários de cortesia, mas simplesmente não havia explicação técnica satisfatória. Viu até alguns comentários que simplesmente mendigavam curtidas e seguidores, mas eram coisas de robôs com programas cancerianos, piegas tamanha a chantagem emocional. Praticamente ninguém clica nesses comentários, não passam de spams. Chegou a publicar uma notícia de como tornar seu perfil interessante, mas nunca aquelas tranqueiras de "ganhe um milhão de seguidores em um dia", que lhe soam como aqueles anúncios fajutos em revistas baratas dos anos oitenta, que prometiam músculos do Hulk com pouco esforço e em pouco tempo.

  Certa feita, meditando sobre outros assuntos dentro do ônibus, notou o estresse do motorista. Provavelmente estava atrasado e toda a habilidade que demonstrava ao volante não ajudava muito, o trânsito estava caótico e cada um queria ser o primeiro a sair daquele caos. Imaginou que o problema estaria justo em cada um querer se ver livre sem se importar se isso aprisionaria mais os outros, ainda que essa atitude os deixasse mais travados no congestionamento. Pensou em dar uma palavra amiga ao motorista, mas percebeu que isso só o irritaria mais.

  Já em casa, após comer e descansar, ao computador, pensou em falar a respeito e algo engrenou. Aquele motorista ter evitado batidas naquele caos, mesmo sem um cobrador para ajudar a ver quem pedia parada e quem ainda estava descendo, demonstrava um alto grau de preparo, mas não dependia só dele. Se as pessoas colaborassem um pouquinho só, um esforço mínimo, o trânsito teria fluido a contento e ninguém se estressaria, mas não eram vulcanos ao volante, eram humanos. Humanos e lógica são auto excludentes, pensou. então olhou para o seu perfil, pensou um pouco, sorriu de tristeza e se conformou. Era isso, estava lidando com pessoas e esperava que agissem com coerência, estava pedindo muito delas.

  Voltou às suas publicações habituais, abriu uma página sobre quadrinhos antigos, alguns dos quais quase ninguém jamais tinha ouvido falar, obtendo os mesmos índices de retorno, mas desta vez sem grilos. Um dia, quem sabe, um arqueólogo cibernético possa se deliciar com os arquivos preservados nos discos rígidos do provedor, a sua contribuição para um mundo menos besta estava dada. Afinal, estava fazendo aquilo para agregar conteúdo interessante que quem quisesse pudesse acessar facilmente, não para ganhar dinheiro, não ainda.

29/10/2014

Um crime perfeito


  Aparentemente era uma esposa recatada e submissa, mas todos sabem que dentro de casa as coisas costumam ser um bocado diferentes do que se ostenta nas ruas. Ela se fazia de "levemente" submissa para o marido se encher de confiança e enfrentar o mundo, afinal foi mimado para ser o macho alpha da humanidade e não estava muito preparado para as frustrações. Ela o poupava de todas as que podia, às vezes tomando a frente dos negócios e dando recados indelicados aos malandros que tentavam depenar seu marido. Nada de extraordinário, só coisas de máfia mesmo.

  Praticamente todos os seus caprichos eram satisfeitos pela linda e dedicada esposa. Contra as ordens médicas, fumava à vontade em uma área específica na chácara onde moravam, feita para as crianças não se acostumarem a ver o pai fumando tanto e sentindo prazer nisso. Algumas concessões ele fazia, confiava muito no bom senso de sua adorável esposa. Afinal, ela era sua cúmplice, seu porto seguro, o acalanto onde tinha seu repouso garantido, protegido do mundo agressivo lá fora. Ah, era um casamento muito, mas muito feliz.

  Ela também era uma confeiteira talentosa. Tomava para si, dispensando empregadas, a tarefa de encher a casa com bolos, doces, pães, roscas, bombas, cremes e tudo mais. O casal de filhos podia comer, sim, mas só um pouco. Quase tudo era para seu amo e esposo ter uma alegria a mais na volta ao lar, onde era o rei e assim o tratava.

  E os drinques? Ah, ela poderia abrir um restaurante-bar e ensinar tudo aos empregados, teria casa cheia todas as noites. Sua criatividade, sua vastidão e profundidade de conhecimento, era tudo de cair o queixo! Identificava de cara a qualidade de um vinho, raramente precisando abrir a garrafa. Um uísque que tivesse onze anos e onze meses não passava pelo seu crivo, sabia identificar até a madeira do tonel. Os amigos o invejavam muito, em seu lar eles tinham bebidas que não encontravam em outro lugar nenhum do mundo.

  Não eram só aparências para visitas ou transeuntes, os empregados sempre comentavam o quanto ela conseguia manter a paz e a harmonia daquela mansão, enquanto outros ricos gastavam os tubos para manter as aparências e manter amantes. Ela não, ela conseguia manter seu esposo no cabresto do matrimônio contraído. M\as era um cabresto muito confortável, muito prazeroso, era tudo o que importava àquele homem. Ter muito mais prazeres do que aborrecimentos estava de bom tamanho.

  Mas os excessos de seus prazeres cobraram o preço. Cedo ou tarde eles sempre cobram. Os abusos alimentares lhe causaram disfunções graves no tubo digestivo, rapidamente evoluindo para uma úlcera muito importante. Também os níveis de açúcar e gordura no sangue começavam a ficar mais altos do que se poderia controlar. Não demorou muito para precisar de intervenções medicamentosas para conseguir fechar qualquer ferida cotidiana, pois o corpo já não o conseguia.

  Paralelamente o fígado começou a falhar. Os prazeres etílicos, aquelas misturas que só sua amada esposa sabia fazer, também cobravam a gorjeta pelos momentos alegres que ofereceram, pela alienação conveniente do mundo real que ele tanto buscava em casa. Ela por sua vez, compensava seu sofrimento físico com sexo, muito sexo, que o ajudava a tolerar com facilidade o sofrimento físico que seus vícios lhe renderam.

  Ele começou a falhar e temer por isso, mas ela sempre lhe dizia "Até que a morte nos separe, meu esposo" e ele ficava tranqüilo. Ela sempre revigorava seu orgulho masculino e ele sempre se sentia à vontade para dar escapadelas dos tratamentos complexos que fazia. Era seu amo e esposo, como prometera que seria, e suas vontades eram sempre satisfeitas, a qualquer preço.

  Certa manhã, porém, ela berrou por cada morador da mansão. Todos os empregados se apressaram em ir acudir sua generosa senhora, que tantas vezes os socorrera em situações que nada tinham a ver com os assuntos do trabalho. Diante dos filhos, empregados, irmãos do esposo e advogados, ela teve a trágica notícia do inevitável. Falência múltipla de órgãos. Estava praticamente cego e impotente, quando morreu.

  Todos eram testemunhas de sua dedicação, de quantas noites perdeu cuidando dele, após tomar conta dos negócios. Todos eram testemunha de sua lealdade, de ter transformado o matrimônio em um sacerdócio. Todos sabiam o quanto ela era forte, que depois do luto conseguiria levar a vida e criar os filhos. Tinham certeza que aquela mulher que tanto admiravam sairia deste luto de cabeça erguida e passos firmes, pronta para mais tarde, quem sabe, fazer algum sortudo se sentir um deus.

  Mas as coisas não eram assim tão bonitas. Em seu coração, só ela sabia o que realmente havia por detrás de tudo. Não o deixou viciado nos excessos de prazeres por amá-lo, pelo contrário, o odiava tanto que se tornou insensível à sua presença e aos seus toques. Ao lado do caixão, momentos antes da cremação, sozinha, fingindo rezar...

  _ Queime no inferno, filho da puta! Tudo o que você sofreu foi pouco, eu queria ter prolongado sua agonia por mais cinco anos, mas desgraçados como você são sempre fracos mesmo! Você não sofreu nem metade do que minha mãe sofreu após ter matado meu pai, só porque ele parou o ônibus e não te deixou furar o sinal, seu vagabundo! Vou com prazer pro umbral, sabendo que sairei de lá muito antes de você, porque não me apeguei aos valores baixos que sua gentalha amaldiçoada apregoa debaixo do pano. Agora eu sou a dona de tudo, vou levar meus filhos e minha mãe para morar em San Francisco, como o meu pai sempre sonhou. Já você, vou jogar suas cinzas no aterro sanitário, cachorro infeliz. Agora eu vou ter um marido, você foi só um alvo do meu ódio.

  Se levanta, autoriza a cremação e cumpre com tudo o que disse que faria, e tudo o que disse se realiza.

18/10/2014

O destino de Catharina Roque


  Ele chega com a filha ao prédio, um casarão dos anos quarenta que estava para ser demolido, quando uma mulher maluca fez uma oferta por aquele mocó gigante. Com ajuda de voluntários, ela reformou e deixou como novo o imóvel, encheu os jardins com flores e árvores frutíferas e, não bastasse isso, transformou em praça o lote baldio ao qual a prefeitura se recusava terminantemente a dar destinação. Quase trinta anos passados desde então, a praça foi oficializada e batizada com o nome de um vereador qualquer. O facto é que as casas ao redor e próximas não demoraram muito a ter os mesmos cuidados.

  É tudo muito bonito, muito bem organizado, muito calmo e o clima muito aprazível. Não parece que estão na São Paulo que já sofre com as conseqüências das décadas de impermeabilização. O portão está aberto, a escola de pedagogia estranha está em pleno funcionamento, mesmo nesta tarde de sábado. Os dois entram, ele emocionado, toca à filha a função de pedir informações e tratar do assunto. Ainda hoje lhe dói ter lido "Dona de escola é agredida por radicais de igreja" em um jornal. Quase chorou quando viu o nome da vítima, porque hoje ela é uma anciã, deve ter mais de oitenta anos. Se bem que ele em seus setenta não é mais aquele garotinho que desafiava colegas para brigas atrás da igreja.

  A escassez de formalidades está em todos os cantos, embora isso não signifique carência de disciplina. Lembra-se bem, o bom comportamento e o excesso de felicidade que ela conseguia em sua turma, era demais para as encruadas que exerciam indevidamente a profissão de professora. Quando ela se foi, por não poder mais ensinar como fazia e para assumir seu amor, sua turma começou a evadir e os poucos que ficaram pareciam ser gênios perto dos outros alunos, porque tinham aprendido a raciocinar e tinham fome de conhecimento. As aulas passaram a ser não só enfadonhas, como irritantes, ele chegou a ser expulso de sala por ter gritado com a professora e a chamado de imbecil.

  O tempo provou que sua linda professora estava certa, com o frescor pedagógico que havia levado à cidade. era uma lufada de ar fresco em uma cidade que não dava perspectiva nenhuma aos seus jovens. Mas era tarde e ninguém mais teve coragem para fazer as coisas do jeito certo, só seguia o roteiro medíocre de uma grade pífia. Hoje ele volta a ver crianças aprendendo aritmética estudando geografia, certamente caprichando na caligraphia e na boa gramática. Pela janela do corredor vê crianças aprendendo biologia no meio do jardim, enquanto desenham e fazem anotações, aprendendo mais e melhor vários tópicos ao mesmo tempo, como era com a sua turma.

  Ele tem uma ligeira queda de pressão quando vê uma moça com vinte e poucos anos saindo do pequeno teatro com seus alunos. Decerto que não é ela, mas é ela esculpida em carrara. Balbucia "Professora Catharina" um pouco alto demais para um simples balbuciado e ela ouve...

- Oi, boa tarde. Estão procurando a minha avó?

  A filha do ancião explica a situação, conta um resumo do que sabe da história e a jovem professora não se agüenta...

- PACHEQUINHO!! Meu Deus, você existe! Minha avó não pára de falar de você! Vó!

  Ela pede que a turma vá para a sala e entra em outra, onde se demora pouco e de onde sai com uma anciã. É ela, aqueles trejeitos não têm similar. Os olhos serelepes e gulosos o analisam do ápice à base, detrás de óculos de cuja armação não sabe contar as cores. Apesar das marcas do tempo, todos os traços que conheceu na infância estão lá. Ela pisca um olho, faz um sorriso torto e debochado e corre para o abraço. Está mais ágil e lúcida do que seu ex-aluno. Ela os leva para sua sala, que mais parece uma sala de estar, e começa a falar, contar dos bastidores de sua fuga da cidade, a vida que enfrentou depois, a viuvez ainda jovem e as dificuldades para criar os três filhos. Só o que não perdeu com as escolhas que fez, foi a coragem. Apesar de tudo, de nada se arrepende. Mas fala puco de si, pergunta por ele, pela moça bonita que o acompanha, quer saber tudo.

  Ele conta uma história mais triste, com menos coragem e mais tragédias. Arranca algumas lágrimas da ex-professora com relatos de mortes trágicas, de ex-professoras que enlouqueceram e viraram prostitutas, da turma que há uns sessenta anos não vê. Mas também fala da família, esposa, os três filhos encarreirados mais a temporona que o acompanha. Todos encaminhados e tocando suas vidas com dignidade. Fala ainda do início difícil da carreira de psiquiatra em um mercado saturado, dos anos amargos de divã vazio até se lembrar das aulas de sua professora, e as adaptar ao seu trabalho. Foi assim que fez sua clientela e sua fama profissional.

  Ela faz questão de apresentar o psiquiatra à família, toda ela trabalhando na escola, e aos alunos. Quer mostrar a todos o que podem se tornar, se não desistirem se seus sonhos e tiverem coragem de correr atrás deles. Consegue mais dois para o elenco de sua escola. Como queria esfregar isso nas caras daquelas quengas que saíram do armário, mas acha que não vale à pena descer ao inferno só para isso.

11/10/2014

Os Dragões de Titânia, A Dama da Montanha

  Certo, fui lerdo e quem casou já está amamentando o rebento. Lamento, as coisas nunca saem como esperamos, pelo menos para mim.

  A Dama da Montanha é mais uma demonstração do enorme talento do amigo Renato Rodrigues para administrar muitos, mas muitos personagens ao mesmo tempo. Outro enorme talento dele é mostrar que ser louco não significa ser idiota, e vice versa.

  Este terceiro livro da saga mostra uma maturidade já consolidada da trama, prevista para ter quinze livros, por isso cada um pode ter tão poucas páginas, por conseqüência ter custos mais baixos de produção para seu autor. Sim, o número de páginas não é determinante, nada é determinante, mas são mais horas de funcionamento da impressora, mais horas de salário para os montadores, mais caminhões para carregar toda a edição, enfim. Por isso vai uma dica, se a história for muito longa, é melhor dividir em fascículos. Páginas encarecem.

  Já que toquei no assunto, este livro nos mostra justamente isso, que absolutamente nenhum fator isolado determina o desenrolar e o final de uma trama, o que vale também e principalmente para a vida real. O leitor atento e ávido por conteúdo pode se irritar com o jogo de "Wataru é bom! Wataru é mau! Wataru é bom! Wataru é mau!" que toma boa parte do livro, mas a persistência na leitura mostrará que o lorde manequim de funerária tem seus motivos para agir daquela forma. Aliás, todos têm seus motivos para suas esquisitices, como é na vida real e o nosso bom amigo mostra isso com maestria.

  Em dado momento parece que o Renato enlouqueceu, se deixou influenciar demais por séries estúpidas de televisão e colocou tudo a perder. Depois parece que ele ficou preso em um elevador
jamaicano e saiu doidão directo para seu computador, depois ainda dá a entender que se arrependeu e tentou consertar tudo, mas gostou tanto do estrago que resolveu deixá-lo lá mesmo. Mas não é essa zorra que parece. como o Citröen 2CV, que parece ter sido feito de qualquer jeito, mas foi cuidadosamente desenhado para o que se propunha. A trama também é assim, mas só nos últimos capítulos é que o leitor vai se dar conta de quase tudo o que aconteceu. Eu disse "QUASE" porque só nas últimas páginas é que muita coisa começa a fazer um débil sentido, porque os esqueletos só começarão a sair do armário no livro quatro, ainda em gestação.

  Uma característica deste volume é ter sido escrito a quatro mãos. Renato teve a colaboração de sua adorável esposa para escrever um dos capítulos, onde o leitor habitual vai pensar que o rivotril fez efeito contrário. É um manicômio! Dois personagens preciosos dos Dragões de Titânia pensam que estão entrando em um país, mas entram em um sanatório e caem justo na ala dos casos perdidos. Morre de dó das vaquinhas marrons, mas devora sem dó o porquinho selvagem... Sei... Bem, o facto é que nossos adoráveis e cômicos personagens não voltam sozinhos à Titânia, embora ninguém seja visto com eles. Só sei que o amor é lindo!

  Há ainda cenas que seriam proibidas para menores de dezesseis anos, em um ambiente psicodélico de fazer inveja aos anos setenta. Parece, mas ninguém aproveitou a viagem para se servir de cogumelos ardentes, A partir deste ponto, decepções e revelações acontecem, coisas que sozinhas renderiam um livro exclusivo. Esta fase ainda nos brinda com o fio da meada, o que realmente causou toda essa confusão, e mostra que eles estão apenas ganhando tempo, força e aliados para o confronto final.

  O que o livro nos ensina?

  Primeiro que jamais devemos confiar no óbvio. O que nos parece claro e inequívoco a ponto de xingarmos quem não enxergar o mesmo, pode ser uma ilusão, uma armadilha do ego que se apropriou da conclusão que lhe era mais confortável, como a recusa em acreditar que a figura tida como herói não passa de um canalha, ou vice versa.

  Mostra também que o mal mente sempre, que o mal é sempre covarde, que sempre se encolhe quando está em desvantagem. Que aquela frase usada por cidadãos revoltados para os bandidos, serve direitinho para ditadores. Nenhum deve ser admirado, ditadores mentem sempre.

  Mostra ainda o quanto são absurdamente cotidianas e até infantis, as motivações de eventos de grande envergadura, que uma dor de cotovelo pode ser o estopim de uma guerra, um casamento mal sucedido o motivo da busca pelo poder, enfim... Não existem motivações extraordinárias, transcendentes ou sobrenaturais para os vultos históricos, não são nem mesmo razoáveis em sua maioria. O leitor atento vai reconhecer esta e outras lições no decorrer do livro.

  Mostra finalmente, que não existe poder bom ou mau, bom ou mau é quem faz uso dele. E mesmo um poderoso mau pode se arrepender e se tornar bom, mas sem se tornar idiota, que ser bom E idiota é coisa da DC Comics.

  O que me causa estranheza é a semelhança da narrativa do Dom Renatonski com a minha, dá a impressão de que bebemos na mesma fonte, no Norte dos estados Unidos. Conversarei com ele mais tarde. O facto é que eu recomendo, rebebendo e redançando o livro. Exemplares desta edição ainda podem ser encontrados nas lojas de departamento e no site da Linhas Tortas (clicar aqui). Por agora eu aguardo o próximo hospício, digo, volume da saga de OS DRAGÕES DE TITÂNIA.

06/10/2014

E o quociente levou


 A depressão tomou conta do ambiente. Era para ser um dia festivo, até mesmo de alívio pelo êxito de meses de trabalho árduo, enfrentando adversários baixos, com piadinhas e provocações altamente misóginas, alguns até tentaram agredí-la por ter se candidatado.

  Tinham lhe dito que aquilo era jogo sujo, que dificilmente alguém com boa índole conseguiria furar o bloqueio. e mesmo que conseguisse, seria completamente engessada pelos picaretas que só se candidatam tendo em vista dois objectivos: roubar o quanto puder ou se perpetuar nos prazeres do poder a que nenhum ciadão comum tem acesso; quando não ambos.

  Olha para as lixeiras com sua bela esfinge, nome e número estampados, simbolizando sua campanha limpa e ética. Riram de sua cara quando leram seu slogan. Não, não foram os adversários, foram justamente seus correligionários. Foi a única coisa engraçada que ouviram naquela reunião longa, enfadonha e prolixa. Sete horas de discursos para concluírem que todos precisavam se empenhar pelos ideais do partido. Bem, logo de cara ela percebeu que os ideais em questão poderiam ser parcelados no cartão de crédito, mas também aceitavam carro, casa e até uma noite com uma adolescente... E ela viu negociações assim.

  Qual foi a surpresa de todo o partido, quando sua campanha decolou na base da criatividade e competência administrativa! Começaram a vê-la com outros olhos, na verdade passaram a adular descaradamente, para receber respingos do prestígio que conseguiu com o eleitorado. Chegaram a imprimir santinhos conjuntos, o que acabou beneficiando alguns que estavam em baixa. Ajudou a eleger o governador, que estava em uma saia justa por conta de estripulias de parentes.

  Mas aconteceu o que todos temiam. Ela recebeu votação suficiente para se eleger prefeita, mas ficou de fora da câmara federal. Por causa do tal coeficiente eleitoral um zé mané, que se livrou de um processo porque uma das testemunhas morreu "misteriosamente", levou a vaga com um décimo dos votos, tudo porque alugou candidatura em um partido nanico, que vive justo de alugar candidaturas.

  Está desolada. Tão desolada que nem se importou quando o governador, constrangido, a chamou para um canto e disse que todas as secretarias já estavam negociadas. É, "negociadas" desde o início da campanha, quando ainda era motivo de piadas. Ele tentou alegrá-la, prometeu que um dos secretários pretende concorrer ao pleito municipal e então a vaga será dela, até lá teria regalias, vantagens e tudo o que sua preciosa ajuda a fez merecer.

  Parece que até seus centenas de milhares de eleitores a esqueceram, depois da apuração. Que derrota amarga! O fel da perversidade eleitoral amarga até sua genital. Esta, aliás, motivo das dificuldades acima da média. Foi discriminada até por ser "bonita demais para cargos sérios"! Calou todas as bocas, disso pode se orgulhar, mas perder para um analphabeto funcional que quer acabar com os doces de Cosme e Damião, alegando que são coisas do capeta, dói demais em seu coração católico. Ele não vai conseguir mais do que uma bala na testa, se insistir, mas dói assim mesmo.

  Fazer o quê? Pelo menos sua formação em administração evitou grandes dívidas, poderá dar conta das que tem. Palestras, quem sabe, pelo sucesso nas urnas? Vai pensar em algo, mas por hoje quer tirar sua Lambretta da longa hibernação e espairecer. É o que vai fazer, amanhã esquenta a cabeça de novo.

22/09/2014

Desabafo palmeirense

Motivo a mais para o Kanangô surtar e trocar de esporte

Este time é o Palmeiras
Que vergonha faz passar
Os times que a outros goleiam
Não goleiam como lá

É cheio de estrelas
Todas sentindo dores
Ou a pipoca é vendida
Ou só dão dissabores

Vão baladar sozinhos à noite
Para ao  treino se atrasar
Jogadores do Palmeiras
Que vergonha faz passar

Seu passado tem primores
Que já não encontra por cá
Me revoltar, sozinho, à noite
Pelos frangos a entrar
Este time é o Palmeiras
Que vergonha faz passar

Hoje digo adeus, que morra
Não vou mais me envergonhar
Superbowl tem mais primores
Que já não há por cá
Já desisti desse Palmeiras
Que vergonha faz passar

03/09/2014

Psicologia da tristeza por três belas

Choquei vocês? Oh, que coisa... Maravilhosa!

  Fui involuntariamente inserido na conversa entre duas amigas e a filha de uma delas, as três são
psicólogas experimentadas, bem preparadas e as três já viram cair por terra todas a teorias que transformam em coitadinho, qualquer um com um problema sério. Assevero que eu seria um coitadinho de elite, se tivesse me deixado seduzir por isso.

  A conversa girava no tema "desagregação familiar e suas conseqüências". Para quem espera um discurso de fariseus fiscais de bunda, pode esquecer, a coisa foi séria. De lá eu conclui que teremos uma década tenebrosa pela frente, antes de 2025 a humanidade não começa a dar sinais de civilização. O ponto de entroncamento foi a completa falta de criação das crianças de hoje. E não é papo de gente alienada ou saudosista, eu já disse que se trata de um trio de psicólogas muito competentes.

  A mais menina, filha de uma das moças, tocou no assunto de crianças que se tornaram o depósito de desesperos da família. Gente que se apega a um problema ou característica "diferente" de um filho e nesta característica, colocando na criança todo o peso do mundo, ancora todos os problemas que todos os outros enfrentam. O problema é sempre culpa dele, nunca nosso. O caso de um pai que queria que a mais menina das três corrigisse a fala demasiadamente caipira do filho. O problema apareceu quando ela foi falar com esse pai: Chapelão de coronel do interior, olhar soberbo, jeitão de caipira, um gosto arrebatado pelo erre gutural, gestos e tiques de quem se acha o macho alpha da humanidade, enfim... O menino só fazia reproduzir em escala minúscula o que via em casa.

  Noutro "parágrafo verbal" foi o caso de uma adolescente de quinze anos que falava à psicóloga, com jeito de quem exibe um troféu, que fumava maconha, dava para todo mundo e até já tinha abortado, como se dissesse que isso a tornava uma mulher antenada e independente. Essa amiga deu a entender que quase disse "Pena que sua mãe não fez o mesmo". Quando foi falar com os genitores da criatura, foi fácil perceber que a revista Caras sabia mais da fedelha do que a própria mãe, muito mais preocupada em tirar selfies na academia e fiscalizar bunda alheia.

  Os pais estão cada dia mais despreparados, geando filhos ainda mais despreparados do que eles. Ninguém mais repassa aos rebentos suas experiências de vida e seus aprendizados, geralmente porque a maioria passa pela juventude focando apenas o próprio prazer a despeito do que possa custar a terceiros, e assim não aprende absolutamente nada. Quando criam, esperam que o bebê seja um bonequinho com botão de liga e desliga, especialmente para o choro. Quando o petiz aprende a andar, enfiam logo e o mais cedo possível em uma escola para esta cuidar de toda a sua formação. Quando há uma reunião de família ou algo parecido, tratam de se livrar da prole ao menor sinal de problemas, quase sempre com dinheiro ou bens.

  Apesar das poucas e pontuais discordâncias, as três concordavam que falta limites aos adolescentes. Mesmo sem saudosismos nem idealizações, eu as conheço e posso afirmar que elas não têm, afirmaram que essa geração não tem uma figura decente de referência para se espelhar. Para quem nunca lidou de verdade com adolescentes violentos, vou contar uma coisa rapidinho, eles gostam de agredir. Não tem absolutamente nada a ver com  classe social ou revolta seja pelo que for, eles gostam de intimidar e bancar os reis do pedaço. Especialmente quando estão em grupo, eles não dão a mínima para argumentos, só entendem a linguagem da demonstração consistente de poder, como é comum nos povos do oriente médio. Depois de intimidados, então sim eles aceitam raciocinar, antes disso vão te testar até saírem rindo do teu desespero. Falo por experiência própria, precisei ser o cara malvado para impor respeito.
  Adolescentes são naturalmente territorialistas, e se não tiverem limites podem acreditar que qualquer lugar em que estejam é seu território, inclusive a sua casa, caro leitor.

  Voltando à noite de ontem... Não são só os adolescentes que agem assim. Eles ficaram assim porque assim lhes foi permitido ser durante toda a infância, e na fase adulta eles tendem a permanecer assim. Eles vão brincar de ser homens sérios, brincar de trabalhar duro, brincar de ser cidadãos repeitáveis, mas na primeira oportunidade a brincadeira vai descambar para a agressão a algo ou alguém, seja uma coisa, um grupo, uma entidade ou uma pessoa; tanto melhor quanto mais indefesa parecer. Se houver um canalha se aproveitando da fé alheia para tacar lenha da fogueira, então eles se sentem no dever de fazer isso, mas como é uma brincadeira eles não sentirão o menor remorso pela dor e pela perda causadas.

  O ponto vicinal desse jorro de energias travosas, pela conclusão informal, é a vontade de se poupar de todo e qualquer desconforto a qualquer preço. Sentiu uma dorzinha mínima de cabeça? Larga tudo, atravessa a cidade se for necessário para tomar um analgésico, e compra logo uma caixa para beliscar ao longo do dia, porque vai que a dor só está escondida, é preciso prevenir e se isolar da mais remota possibilidade de contacto.

  Acontece, cari leitori, que a dor e a frustração, em doses moderadas, são pedras do alicerce da personalidade de um adulto MINIMAMENTE saudável. As pessoas estão aprendendo desde a mais tenra infância a boicotar desconfortos que lhes seriam úteis na vida adulta, apelando para todo tipo de fuga; drogas lícitas e ilícitas incluindo medicamentos tarjados, sexo sem critério, fanatismo religioso, violência gratuita, humilhação de terceiros e muitas outras. As pessoas estão fugindo de si mesmas para não terem que ver seus reflexos de mortais no espelho, quando esperam ver um integrante de elite do Olimpo. Basicamente é isso.

  Não foi só um, foram vários casos relatados de homens barbados que foram mimados por suas mães e esperavam que as esposas fizessem o mesmo. Eles sonhavam com famílias perfeitas e pediram divórcio porque a criança nasceu com autismo. Alguns só faltavam pedir que as esposas os amamentassem. É daí que nasce a figura da sogra megera, que estraga o rebento e acha que a nora o está deixando passar fome, frio e se esquecendo de trocar suas fraldas.

  Houve casos de adolescentes que pensavam ser homossexuais, simplesmente porque nasceram com algum problema na genital, seus pais JAMAIS aceitaram tocar no assunto e quando entraram na adolescência, acreditavam que aquele problema as tornava homossexuais. Umas sessões de psicologia, uma cirurgia e o equívoco era resolvido. Não, não se trata do adestramento que realmente é a tal "cura gay", se trata de gente que realmente sentiu falta da orientação familiar e precisou pagar por uma terapia para recebê-la. Só que os pais nunca assumem sua cota de responsabilidade.

  As pessoas estão se envergonhando de ver seus filhos, mesmo que ainda estejam na primeira infância, se comportarem como crianças. Se esquecem de que um corpo precoce não significa uma mentalidade precoce. Dar roupinhas de crianças, brinquedos fofos de crianças, lanches de crianças e um ambiente próprio para crianças, ajuda a evitar a erotização precoce, que é tão inútil quanto nociva à formação do indivíduo. A menina está com cinturinha, peitinho e bumbum bem marcados? Que lindo! Aproveite enquanto ela é uma criança e ensine a controlar essa máquina linda que ela veste, porque em breve ela vai precisar controlar os efeitos dos hormônios mais cedo do que vocês imaginam.

  Isso pode ser chocante, mas também falaram dos índices altíssimos de suicídio infanto juvenil que a imprensa simplesmente se recusa a divulgar. Seria um escândalo, jogaria nas caras das famílias o completo fracasso de suas formações. Jogaria na cara do poder público uma despesa que ele prefere que o público não conheça para não cobrar. Jogaria na cara de ideologistas a fraude que são suas teorias de deixar todo mundo fazer o que quiser do jeito que quiser. Jogaria na cara dos fiscais de moral alheia a inutilidade de querer limpar manchas que não sejam de sua própria personalidade. A realidade, meus caros, é mais baranga do que a photo no perfil sugere, ao vivo não tem photoshop.

  A desagregação familiar, explicaram, tem uma das bases a reprodução utilitária. A criança será gerada para um fim e poderá até ser descartada se esse fim não for atingido. Pode ser prender o homem, prender a mulher em casa, chantagear alguém, fazer o filho realizar os sonhos que os pais não conseguiram, enfim... Gente que ama o que gostaria que o filho fosse, a pessoa desse filho é apenas uma ferramenta para conseguir o objectivo. Parece até um curso intensivo de política brasileira!

  Da mesma forma, a criança cresce acreditando que as pessoas ao seu redor também são apenas meios para seus fins, e fazer-se de vítima é a forma mais eficaz se manipular alguém sem que esse alguém perceba a manipulação. é um círculo vicioso que poucas famílias conseguem evitar, menos ainda as que conseguem quebrar, mas elas existem, embora sejam estatisticamente insignificantes. A regra é as pessoas usarem de qualquer expediente para maquiar ou resolver pela metade o que lhes incomoda, o que inclui usar discursos politizados inflamados como aquela menina que abortou para não arcar com a conseqüência de ter se descuidado; incomodou, elimine-se! Sem essa de enfrentar as regras da realidade, que ela não convém.

  Eu poderia ficar aqui durante a noite inteira, discorrendo sobre o que foi conversado, mas preciso dormir e acordar cedo para trabalhar, então vou concluir este catatau...

  Um ponto interessante foi a narrativa de uma mãe e um pai indignados. Ela quase foi vítima de uma sucessão de mentiras da filha, na escola. Em um acto de desespero, na sala da psicologia, tirou seu chinelo do pé e encheu a menina com as marcas da estampa do solado. A fedelha não chorou, para fingir que não doeu, mas nunca mais fez aquilo. Foi uma cena desagradável para as três, mas quem tiver idéia melhor que a ponha em prática e depois me conte.

  O pai em questão foi denunciado pelo filho por ter lhe dado UMA cintada. O conselho tutelar foi tirar satisfações e o moleque já exibia um sorriso de triunfo, quando o homem o mandou pegar suas coisas e ir embora com eles. Os conselheiros tentaram passar a conversa mas foram calados, pois naquela casa era ele quem mandava, sustentava e dava as regras. Ele sabia o que o garoto tinha feito, se envolvido com marginais, então se não pudesse corrigí-lo que ficassem com a responsabilidade. Preciso dizer que o fedelho nunca mais repetiu a façanha e os bocós nunca mais entraram naquela casa?

  Disciplina, limites e hierarquia, meus queridos, existem até entre os animais. Onde há mais de um, as três precisam coexistir. Quem não quiser saber delas que se isole em uma caverna inacessível, porque vai sofrer muitas frustrações.

28/08/2014

Maria neurônio

  Não é de hoje, mas me surpreende e entristece que a figura da Maria chuteira seja tão
glamorizada pela imprensa desportiva, especialmente porque de desportivas elas não tem absolutamente nada. Já existem até manuais de como se tornar uma, porque algumas delas passaram a viver de serem Marias chuteiras, dando entrevistas e fazendo poses. Vou parecer politicamente incorrecto, sim, mas até segunda ordem, tenho o direito de opinião, e já arquei com ele uma pá de vezes. Após a segunda ordem, me mudo para os Estados Unidos e continuo escrevendo do mesmo jeito.

  Convido agora o leitor a imaginar um cenário diferente. Há uma face que a imprensa tem mostrado muito, mas o brasileiro se recusa a dar valor. Nossos acadêmicos estão ganhando prêmios aos borbotões lá fora, é claro, incluindo áreas desconfortáveis para a maioria, como astronomia e matemática; não dessa que o ensino médio mostra e depois avalia com provas de múltipla escolha, mas do tipo que tua calculadora sem sabe que existe.

  Imagine se a população, mesmo que paulatinamente, começar a tomar gosto por qualquer coisa que funcione acima do umbigo. Imagine campeões de competições científicas sendo recebidos como heróis, dando entrevistas em horários nobres, sendo disputados por programas de televisão e ganhando os tubos em comerciais feitos para seduzir seus fãs. Em pouco tempo, após a consolidação da tendência, apareceriam também as caçadoras de fama do nicho. Não, roupas curtas e justas não ficariam de fora, o corte, os tecidos, estampas e estilo das moças é que mudariam muito.

  Em primeiro lugar, por mais vaidoso que seja um cientista e por mais que ele queira para si as atenções, ele não suportaria a companhia de uma caricatura de loura burra, a moça precisaria ter um grau mínimo de conteúdo. Para esse pessoal, meus amigos, esse "mínimo" deixaria qualquer bacharéu decente encabulado. Para as cavalgaduras que se formam com notas máximas sem terem aprendido porcaria nenhuma, seria algo completamente fora da realidade.

  Algum domínio do bom português e de um segundo idioma ela precisaria ter, porque "mim dá cento e duas gramas disso" seria um pé no traseiro por justa causa. Conhecer ao menos um livro de Jostein Gaarder seria quase obrigatório, além de assaz salutar ao intelecto. Não que um erro ou outro fosse encerrar o flerte, mas as atrocidades a que estamos perigosamente acostumados são repelentes para um cientista. Não confundir gente que tem recursos e desleixa, com gente que fala o melhor que seus parcos recursos lhe permitiram aprender.

  Um bom cientista quase sempre é fã de Star Wars e Star Trek, então conhece as artimanhas de gente que se faz de bem intencionada para alçar vôos ao poder. Subornar e dar para os seguranças para poder entrar no camarim é maquiavelismo primário, assim como os seguranças de celebridades intelectuais seriam de outro naipe e advertiriam seus chefes a respeito. Elas teriam que usar mais o cérebro do que os decotes, afinal quem não mede conseqüências para viver de fama não vai hesitar em abandonar o sujeito assim que aparecer outro mais prestigiado.

  Vestidinhos que precisam ser ajeitados a cada três passos não ajudariam tanto. Por mais curta que fosse a peça, ela não poderia passar a impressão de desconforto para alguém que queima phosphato e nervos ópticos para ganhar seu pão. Marias chuteiras não se importam com isso e querem todas as câmeras para si o tempo todo. Uma Maria neurônio saberia cultivar a relação priorizando a estrela de quem recebe o brilho, inclusive ajudando o cientista a ter a tranqüilidade necessária e cuidando da divulgação de suas pesquisas; claro, colocando seu lindo nome como fonte da informação.

  Não que funk carioca fosse proibido, mas falar e se portar como se estivesse SEMPRE em um baile funk não funciona com essas pessoas. O verdadeiro funk cai no gosto da maioria dos cientistas, mas música clássica e os dinossauros do rock, especialmente para os cientistas nerds assumidos, seriam quase que decisivos para o bote dar certo. Novamente a indumentária seria outra, mesmo que curta e justa, mas nunca centrando atenções nas partes marombadas e siliconadas. Mesmo os cientistas mais jovens gostam de elegância, respeitando a anatomia e valorizando o conjunto, inclusive o cérebro.
  Certo, vamos explicar esta passagem... Para vender apenas sex appeal, basta fazer os homens babarem, o que é muito fácil e a moda predominante dá quase tudo de bandeja, fora as "bem sucedidas" que dão dicas de como dar para dar e posar pelada depois. Não, o problema não é o fim, mas os meios utilizados para obtê-lo. A Maria neurônio se esmeraria em combinar peças, cores, estampas e tecido para cada ocasião, selecionando inclusive os assuntos e o tom de voz para cada uma. Ela saberia que uma mini saia até combina com uma noite outonal, mas precisa de uma meia-calça mais espessa e opaca, que acabaria convidando às estampas e estas não são para julgamentos destreinados.

  A Maria neurônio saberia que o frescor juvenil tem prazo de validade. Ela não apostaria suas fichas o tempo todo na estética, por isso mesmo trataria de aproveitar o prestígio do astro para cavar uma carreira duradoura e sólida, para isso cativaria o público dele, que tem aversão à futilidade. Ao contrário de sua contraparte, ela não teria problemas em falar à imprensa e não causaria dores de cabeça ao abrir a boca. Neste cenário ela também seria imitada pelas meninas e veríamos menos mini adultas pelas ruas, as confecções veriam um público mais intelectualizado disposto a pagar por peças bem feitas e bem modeladas, em vez de modelos únicos para adultos em tamanho infantil.

  A Maria neurônio seria algo como Holly Golightly, mesmo não se prostituindo. Ela não daria as costas para a academia de ginástica, mas daria muito mais atenção às academias universitárias e às bibliotecas. Nas entrevistas elas diriam o quando o mundo virtual está se parecendo com o livro 1984, não falando tanto da lipo de que ninguém ficou sabendo, provavelmente nem tocando no assunto se ninguém perguntasse. Aliás, programas que fazem esse tipo de pergunta dificilmente as teriam em sua grade, elas não estimulam o onanismo.

  Outra coisa, provavelmente a Maria neurônio seria um pouco retrô. É mais simples combinar os minis microscópicos dos anos sessenta do que os não tão curtos de hoje. Aqueles, mesmo mínimos, não a obrigariam a roçar coxas e puxar a barra para baixo. Corte, tecido e modelagem evitariam esses constrangimentos.

  Mas tudo isso é virtualmente uma utopia mesmo no horizonte de longo prazo, especialmente em um país no qual as raras Marias neurônio que existem são hostilizadas por adolescentes desocupados, em redes sociais.

13/08/2014

Nonsense, para relaxar


- Mário? Alô?
- Alô, pode falar, coisa horrorosa.
- Mário, você deixou alguém pra vigiar a chácara?
- Não! Por quê?
- Tô vendo um cara muito mau encarado por uma das janelas... e ele é me vigiando faz tempo!
- Putz que paralho! Fica calmo! Ele está armado?
- Só no meio das pernas, eu acho.
- Não brinca com isso!
- Tá legal... Vou olhar discretamente... Não, ele parece estar desarmado... Mas tem uma postura muito ameaçadora!
- Certo, menos mal... Fique junto ao telephone, não saia daí, vou ver se consigo ajuda!

  Ele fica parado, olhando de lado aquela figura emborcada.  Foi muito providencial o corredor estar na penumbra, assim o elemento não pode ver direito o que ele faz, mas o inverso também é verdadeiro, lá fora está muito escuro. Mário liga de volta com más notícias...

- Maneo, cê vai ter que se segurar por um tempo, faltou energia na cidade e todas as viaturas da polícia estão atendendo ocorrências graves em andamento! E o cara?
- Tá parado, do outro lado da janela... Ainda bem que aqui tá meio escuro, ele não pode me ver direito.
- Beleza. Consegue dar uma descrição, para eu tentar ver se bate com algum foragido?
- Difícil... Ele é meio forte... Bochechudo... Tá segurando alguma coisa na mão esquerda, mas dá pra ver que não é arma.
- Forte e bochechudo... Essa descrição não me é estranha... Você trancou tudo?
- Tudo trancado! Levantei pra assaltar a geladeira, quando vi o vulto e me encolhi à mesinha do telephone!
- Fez bem... Sua irmã me mata se te acontecer alguma coisa... Mas você está bem?
- Cara, melhor só se a chácara fosse minha, por mim eu moraria aqui!
- Valeu, levo isso como elogio... Por qual janela você está vendo o invasor?
- Por essa bem em frente ao telephone.

  Ele fica encafifado. Faz uma careta engraçada, coça a cabeça, tenta se lembrar qual das oito janelas daquele corredor poderia ser. Solta um suspiro de paciência e volta a falar...

- Maneo, me diz uma coisa, com sinceridade... Esse sujeito parece te imitar?
- Parece, acho que é pra me intimidar.
- Essa janela tem algo de diferente das outras?
- Por quê?
- Só me diz.
- Tem, tem uma cortininha, aquela que minha avó deu pra Rita...
- Essa janela é a única que tem vidro inteiriço?
- Sim, é essa mesma!
- MANÉO, SUA ANTA! SAI DA FRENTE DESSE ESPELHO!

07/08/2014

Não alimente os heróis

   Nunca mesmo! Heróis não precisam ser alimentados e protegidos, é função deles fazer isso por nós. Tampouco brigue com alguém por causa de um herói, ele deve ser um agente agregador, pois um herói de verdade sabe que nenhuma operação de salvamento pode resguardar uma população desunida ou, pior, com rusgas internas. Ele, pelo contrário, fará o que estiver ao seu alcance para que o mundo dependa cada vez menos de si, se torne mais independente e, para tanto, fomentará sempre a união e o respeito mútuo por onde quer que passe.

  Um herói que mereça ser chamado assim, prefere agir na surdina a maior parte do tempo, para que as pessoas se enxerguem umas às outras e não somente a figura gloriosa de um salvador. Não que ele não possa ser uma, pelo contrário, o resplendor de um herói clássico é uma figura extremamente intimidadora para os mal intencionados. O problema vem quando as pessoas passam a enxergar nesta figura tudo de que precisam para serem felizes, com o tempo chegando a torná-lo um ídolo, quase uma divindade a ser cultuada com fervor sacro.

  Eu disse uma vez a uma amiga que um herói quase sempre o é em função das circunstâncias, e quase nunca veste a carapuça de herói, porque assim ele acabaria se tornando uma celebridade, a fama lhe subiria à cabeça e terminaria se tornando um tirano da pior espécie. Em suma, o herói é uma função, não uma pessoa, e a função muda de mãos ao sabor da necessidade. Qualquer um que aceite o rótulo de "herói", na realidade não passa de um deslumbrado que salva em prol de seu ego, não dos que serão salvos, e o ego pode facilmente se voltar contra os antigos protegidos ao menor sinal de contrariedade.

  Uma característica de um herói é que sua figura salvadora obscurece sua pessoa, dificultando o assédio e o florescimento de uma personalidade egocêntrica. Por isso os heróis da ficção costumam usar máscaras ou roupas extravagantes, para que suas identidades civís permaneçam sigilosas. Impostar a voz e fazer poses, faz parte do disfarce. Isso porque o herói que se preze se mantém por seus esforços, pedindo ajuda quando estão em dificuldades, como qualquer pessoa comum. Por isso mesmo não se deve alimentar heróis e ídolos, eles, se forem dignos de admiração, saberão se manter por si.

  Ele não faz questão de ser reconhecido, na verdade às vezes gosta de meditar em salutares e costumeiros momentos de solidão. Isso o faz ter uma visão bem clara do que está fazendo no mundo e no que o mundo está fazendo consigo, porque vida de herói é uma cobrança sem fim, mais dele mesmo do que do mundo, que por si já é um algoz formidável. A solidão que o herói busca, quando pode, pode ser considerado a essência mais pura do verdadeiro ócio criativo, pois o silêncio de que se cerca o faz ouvir a própria consciência com clareza. Advirto que o que para nós seria apenas um deslize, para o herói seria uma falta grave.

  O herói tem qualidades que muita gente até combate por considerar "castração" ou "fanatismo religioso". Ele é resignado com a missão que as circunstâncias (ou dêem o nome que quiserem) lhe impõe, vai até as últimas conseqüências para cumprí-la a contento e não admite que os dissabores dessa missão lhe tolham o amor que nutre pelos que protege; porque ele sabe que as pessoas têm tendências fortes e inatas à ingratidão, sabe que não pode contar com nada mas do que sua determinação em terminar o serviço e buscar ajuda para se refazer dos eventuais danos internos.

  Acreditar que um criminoso pode se recuperar soa muito como ingenuidade, beirando a idiotice, mas ele tem fé (mesmo que seja ateu) na capacidade humana de se erguer da lama em que se enfiou e buscar uma vida nova; Hey, eu já vi isso acontecer, não é abobrinha de auto ajuda de banca de revista, mas o elemento precisa querer, até lá o herói não terá pena dela.

  Pautar seu cotidiano pela lisura, honradez e pela cordialidade às vezes rente a pecha de "chato" ao herói. Acontece que um bom comportamento muito evidente, acaba expondo os nossos maus comportamentos, e isso dói muito. O herói não pensa duas vezes antes de cortar a própria carne, por mais profunda e perene que a ferida se torne, e por mais que isso revolte os que lhe são próximos. Se comportou-se mal, terá que arcar com conseqüências do mau comportamento, mesmo que ele ajude o infrator a corrigir seu erro, mas que vai arcar com ele, ah, isso vai mesmo!

  O herói por excelência não ignora as virtudes de seus inimigos, tampouco as próprias falhas. Ele é ocupado demais para falar mal de alguém e colocar as pessoas umas contra as outras, pois precisa se manter e manter-se em condições de ajudar quando for necessário. É mais um ponto a ser considerado, aquele rapaz que malha duro só para depois fazer selfies em poses forçadas, para conseguir "likes" em redes sociais, muito provavelmente NÃO É E NÃO SERÁ um herói. O herói até pode ser escultural, mas não é um exibicionista, ele se torna forte para ser mais útil, ainda que seja para empurrar com mais facilidade um carro que pifou no meio da rua.

  O herói não interfere na vida pessoal dos protegidos, se não forem muito íntimos, ele só o faz quando as besteiras que o cidadão comete estiverem saindo de suas fronteiras e prestes a prejudicar terceiros; o que infelizmente virou quase que uma regra, com essa onda de "avida é minha e faço o que quiser", que muitas vezes inclui desprezar potenciais prejuízos a quem nada tem a ver com a farofa. Quando precisa corrigir a quem pode, o herói pode ser muito duro, até um pouco rude, mas jamais será grosseiro e nunca usará termos de baixo calão. Mais do que isso, sua conduta será o avalista de tudo o que disser.

  Pelo exposto, queridos, concluo: Político, jogador, artista e bandido bonzinho NÃO SÃO HERÓIS. Não desfaçam amizades e não se indisponham com ninguém por causa deles, porque geralmente são vilões disfarçados pelo carisma de sua própria propaganda.

01/08/2014

Rafaela está apaixonada

Dita Von Teese no dia a dia

Ninguém a reconheceu de pronto, ela estava completamente diferente do que se acostumaram a vê-la. A jovialidade, a leveza e o frescor que exalava eram quase constrangedores. Rafaela entra no shopping e vai directo à loja preferida do marido, depois à sua loja preferida. Sai, entra em sua Fiat Elba Weekend velha de guerra e vai comprar algo para uma refeição digna de um rei. É um carro de estimação, foi o primeiro que ela comprou na vida. As amigas já foram alertadas a respeito, mas ela evita a maioria delas, na verdade não quer mais saber de uma parcela considerável. Encontra sua irmã no mercado central...

- Podemos conversar?
A leva para uma lanchonete, onde divide um empadão com ela. Espera que coma, que tome o suco de acerola, que suspire três vezes seguidas e tasca a pergunta...
- É outro?
- Hein?
- Você arranjou outro?
- Milena, que juízo é esse a meu respeito??
- Eu é que pergunto, cadê a irmã rabugenta, apagada e grossa que eu tinha até ontem? Não que eu sinta falta dela, já foi tarde.
- Oh, isso...

Os olhos  dela voltam a brilhar como na adolescência. Ela conta em regime de confidência, para não atiçar a sanha das invejosas. Ontem Ronaldo chegou bêbado, quase à meia-noite e foi recebido com a rispidez de sempre, mas daquela vez ela estava muito cansada para bater e xingar, então simplesmente o ajudou a ir para a cama, jurando que na manhã seguinte ele passearia de ambulância. Ele começou a protestar, quando sapatos e paletó foram tirados, sem que ela discernisse o que lhe dizia, até que afrouxou o cinto, desabotoou as calças e ele, em um esforço heroico, conseguiu balbuciar entre soluços "Moça, por favor, não faz isso... Eu sou casado, minha mulher tá me esperando"... Ela conta que de início ficou chocada, pois sabia que todos os amigos dele, maridos de suas amigas, traíam suas esposas com alguma regularidade, era tão regular que quase descaracterizava traição, era quase uma concessão matrimonial para evitar brigas. Ele, que andava com aquela turma desde menino, acabou levando a mesma fama, mas ela não era do tipo que engolia isso e as brigas começaram cedo, até quase chegar ao divórcio, até aquela noite...

- Eu o deitei do jeito de estava, o cobri para não sentir frio e fiquei observando até ele dormir...
- Putz, cara! Mas vem cá... Não tinha mancha, perfume... Nada?
- Não... Só vestígios, porque aquele bar, você sabe... Quando ele dormiu, eu me deitei ao lado dele... Que sonho maravilhoso! Meu Deus, eu acho que desde a adolescência que não sonhava assim!

Conta do desjejum que preparou para ele, da arrumação que fez na casa, dos filhos estranhando tudo aquilo, dos passarinhos verdes cantando ópera. Se arrumou pela primeira vez em seis anos, e caprichou, inspirada na diva Dita Von Teese. Apesar de ser dois anos mais velha e muito mais maltratada pela vida, agora ela parece ser filha da irmã. Concluiu de uma tacada só que as fofoqueiras com quem conversava têm é muita inveja de ele jamais ter sido flagrado com outra, e não o foi simplesmente porque não acredita que a tenha traído, e dane-se quem não acreditar nisso, ela acredita e está irreversivelmente apaixonada pelo marido.

A irmã a acompanha às compras para o jantar. É inevitável, todo mundo a conhece e todo mundo nota a diferença gritante, mal acreditando que seja a mesma Rafaela de ontem. Ela anda em passos leves, circulares, se equilibrando magistralmente nos saltos que não usava há anos, espalhando seu perfume floral pelos corredores entre as bancas. Está jovial, feminina, com jeito de jovem que acabou de conhecer o primeiro amor. Mostra discretamente à irmã, que amarga a inversão se sentindo feia perto dela, a gravata com micro estampas douradas do logo da Chevrolet no fundo preto, noutra sacola a lingerie para logo mais à noite.

De longe, as que ainda não sabem ser ex-amigas a observam, se remoendo de inveja, se perguntando quem será o amante hiper dotado que ela arranjou para acordar assim. Ela está absolutamente linda, com o frescor facial que todas perderam ainda na adolescência. Acham um absurdo que alguém seja tão feliz. Mas ela está e quer distância delas. O sorriso emoldurado naquele batom a faz parecer tudo, menos uma mãe de família a caminho do jubileu de ouro. E não é um sorriso de mulher calejada, é sorriso de garota apaixonada, displicente e cheia de esperanças para o porvir. Parece ser filha de si mesma, provavelmente sua filha vai se constranger em andar com uma mãe tão linda e radiante, mas terá que se acostumar.

Conversam dentro do carro, com a irmã notando seu tom de voz completamente mudado. Vê flores em cada palavra. Em dado momento ela não segura o "Mi, eu estou apaixonada!". Agora ela também começa a ter um pouco de inveja da irmã mais velha. Quando chegam, lá está ele, estupefato após o filho ter lhe dito o que aconteceu naquela casa, que era a antessala do umbral e agora está às portas do sétimo céu. Ele a vê se saindo do carro, com um olhar malicioso, decidida a seduzi-lo, a caminhar com a classe de uma dama e a leveza de uma menina, em passos semicirculares, requebrando suavemente. Ele baba, fica mole, está hipnotizado. Se lembra de ter vivido algo parecido, mas foi há muitos e muitos anos, quando ainda tinha esperanças de ter uma vida adulta feliz e bem resolvida; a esperança acabou de voltar. Ela limpa a baba que escorria, o agarra pelo pescoço, junta narizes e testas, solta um "Eu te amo" com uma voz sedosa e em volume só percebido por ele, então dá o bote. O beija como jamais até então. Agora é tarde. A presa acaba de ser abatida.

Mudam-se em menos de um mês, para não terem mais que ver aquela vizinhança amarga, mas especialmente das cobras que envenenaram suas cabeças, só dando o novo endereço a quem realmente interessa que saiba. O casamento de comercial de margarina com que sonhavam na juventude, agora é realidade.

21/07/2014

Deveria ser uma farra

BOOO! Eu sou o inimigo de suas convicções e vou te comer! (Na photo, Lana Turner)

  Mas está se tornando um porre! Estão fazendo com o Facebook praticamente o mesmo que fizeram com o Orkut e que acabou matando-o. As pessoas estão se desumanizando, levando à sério a única coisa no universo que jamais deveria ser levada; elas mesmas.

  As antigas e divertidas trocas de farpas estão dando lugar a agressões explícitas com indirectas agressivas e absolutamente bizarras. Não é mais seguro simplesmente dizer que não se gosta de algo ou de alguém, porque sempre tem um sensível que vai te acusar SERIAMENTE de ser preconceituoso, discriminador, inimigo da família, reacionário, recalcado, invejoso e tudo mais. Não se sabe mais diferenciar um "Não gosto disso" de um "Eu te odeio". Isso muitas vezes chega aos formulários de reclamações formais do Facebook!

  Os "politizados" figuram no topo, porque se dizem abertos e quase sempre "democráticos", desde que a abertura e democracia sejam em favor de sua ideologia. Entre os muitos bordões, estão os da família do "Não é por não gostar, é por gostar por motivos de que não gosto", que quase sempre implica sim em a antipatia ser por não gostar, ou seja qual for o verbo conjugado. Porque os eufemismos patologicamente aplicados fazem parte dessa deterioração interpessoal, como se os membros da rede social tentassem atenuar as ofensas dirigidas ao outro. Algo como "Não importa o que eu disse, se sai de mim não tem más intenções, mas se sair de você, terá".

  Os conceitos de "democracia" e "liberdades individuais" foram tão deturpados, que praticamente qualquer coisa que convenha pode receber ou perder os termos. Alguns chegam a entrar em rodas de um assunto de que não gostam, falam asneiras, mandam os outros se calarem e acham ruim se forem repreendidos. Em seus perfis ou grupos, fazem exactamente o que acusam os outros de terem feito, com requintes de crueldade, se achando não só os mais lúcidos do mundo, como também os maiores perseguidos por dizerem "a verdade" em público.

  Muitos levam tão a sério suas opiniões, que tecem longos, prolixos e enfadonhos discursos até em balões de diálogos de quadrinhos, um tipo de comunicação que geralmente deveria ser curta, directa e ágil. Não raro, é um discurso que dá vontade de perguntar quem seria o público, porque só lê até o fim e concorda quem já é simpatizante daquelas idéias, quase como uma doutrinação religiosa, em que o cidadão é colocado para ler trechos de seu livro sagrado até memorizar tudo, e sem raciocinar muito, para ver algo mágico em trechos absolutamente descritivos e se viciar em reler e repetir indefinidamente, até para a própria sombra.

  Quando eles se cansam do assunto, ou acham que venceram a discussão, que quase sempre só existe em suas cabecinhas ocas, encerram o tópico, viram as costas e vão falar de outra coisa. Isso, claro, depois de terem tentado enfiar pontos de vista e convicções políticas goela abaixo dos outros, em uma situação na qual só eles podem se manifestar, quem pensa diferente não pode e nem deveria ter direito ao voto, quanto mais de manifestação.

  A proximidade das eleições piorou tudo, com a famigerada copa, à qual eu sempre fui contrário, servindo de palanque ideológico. Há pouco espaço para o equilíbrio transitar no corredor ente as salas do "O governo roubou tudo sozinho" e do "Os empresários roubaram tudo sozinhos". Piadas contra a copa passaram a ser piadas contra a honra pessoal, porque o inimigo pode e deve ser ridicularizado, mas seus ídolos, deuses e heróis precisam ser reverenciados liturgicamente.

  Paralelo a isso tem a guerra de informações. Algumas tão grotescas, e vindo de todas as partes, não só de um grupo ideopático, que surpreende que pessoas com diploma universitário as levem à sério, mesmo que elas tenham saído de páginas e sites de humor. Isso sem contar as montagens photográphicas, que mesmo quando dizem a verdade e com boas intenções, fazem parecer mentira pelo grau de amadorismo e o radicalismo embutido. E mesmo assim as pessoas levam à sério, mesmo assim caçam briga por causa delas, mesmo assim se esquecem que o país deveria ser uma nação e não um monte de tribos inimigas que se aturam na marra. Os parasitas eleitorais estão achando o máximo, claro!

  Não adianta mostrar parâmetros e casos confirmados em que a sua palavra teve valia. Se eu disser, por exemplo, que foi firmando o pulso e expulsando a psicopedabobagia do coitadinho que o colégio onde trabalhei conseguiu rapidamente se destacar dos outros, e que os alunos estavam efetivamente felizes, e se dando bem até com os policiais da Rotam, e que conseguimos até consertar um monte de marginais que aterrorizavam outrora a região, sou caçado até no inferno. Aparece rapidamente um grupo me acusando de ser nazista e querer retroceder nas conquistas da infância e juventude enquanto cidadãos em situação de menor idade, e outro me acusando de ser comunista e me mandando levar bandido para casa. Neste momento, tudo o que eu disser será mentira, ainda que consiga uma máquina do tempo e volte com áudio o vídeo de todo o período, de todos os alunos e os publique para livre acesso.

  Eles não vêem. Ainda que assistam, se contrariar suas convicções, eles não vêem, se limitam a procurar erros que confirmem suas neuroses e se não encontrarem, atacam assim mesmo, acusando de ser um traidor de suas causas ou um discriminador de sua comunidade/turma/gleba/raça(?) e entopem a caixa de reclamações do site com denúncias. Não é brincadeira, várias páginas saíram do ar assim, sem explicações, porque os moderadores são humanos, eles não têm tempo para ver caso por caso como deveria ser. Até se provar que focinho de porco não é tomada, os transtornos já se instalaram e a convivência nunca volta aos parâmetros de então, sempre fica no ar a desconfiança de que algum imbecil vai anotar em seu caderninho cada palavra do que escreverem, para levar ao censor de sua turminha heroica e engajada.

  Praticamente todos elegeram seus coitadinhos e seus verdugos, atacando fervorosamente estes não importa o que tenham feito de bom, para proteger com afinco aqueles, mesmo que tenham comemorado o estupro de uma repórter só porque sua ideologia mandava. Há sempre uma mensagem politizada, engajada, idealizada para curar o dodói de um, alfinetando com agulha enferrujada o outro. Mesmo que o outro seja um filantropo e dedique sua vida ao próximo, não importa, se acreditar em algo diferente é e será tratado como inimigo da humanidade.

  Ideologia, o ópio dos intelectuais. Um dogma impiedoso travestido de intelectualidade.

  As pessoas já não estão mais deixando tantas postagens abertas ao público, na verdade algumas já se fecharam quase que totalmente, permitindo quase que só o acesso de seus contactos mais próximos. Se isso tem algum problema? Sim, tem muito problema, porque a função de uma rede social é aproximar as pessoas e os idiotas que se levam à seriedade de mártires, estão dessocializando uma rede que há bem pouco tempo era uma ferramenta de convívio entre diferenças, agora elas só são toleradas se não forem expostas, formando um marasmo de opiniões que tanto tentam ser neutras, que perder seu caráter opinativo. E o fechamento das publicações empobrece uma das maiores virtudes da internet, que é a troca de arquivos e o intercâmbio entre povos. Mas tudo isso é secundário se seus dodóis não forem tratados sem jamais serem tocados.

  As pessoas estão ficando chatas! Muito chatas! Tão chatas que levam à sério a sua chatice! Repetem seus bordões como se estivessem em um palanque eleitoral, tentando convencer o eleitor de que aquela imagem de assassinato foi uma montagem de inimigos. E quanto mais cultas, mais chatas e irascíveis ficam, porque se acham a última reserva intelectual do mundo. E quem não é, reclama dos que escrevem direito, porque se acham a única turma de perseguidos do mundo. Um bando de albatrozes querendo voar com uma asa só, porque a outra representa tudo aquilo contra o qual lutam... Só que sem a outra asa, só fazem se debater na praia, às vezes caindo dos penhascos, transformando em um show de horrores o que deveria ser um dos mais belos espetáculos do mundo.

  Quem quiser me excluir por causa deste texto, fique à vontade, não levarei como ofensa. Afinal eu posso muito bem, a julgar pelo que publico, ser um agente da CIA infiltrado, agindo em nome dos inimigos da causa e conseqüência.
E quem garante que eu realmente não seja? Ninguém acreditaria mesmo se eu dissesse!

BOOO!

10/07/2014

Não quero muito


  Uma rua para caminhar sem ter que tropeças nas pedras alheias, só nas minhas. Poder seguir essa rua até o seu fim, ou até ela se reencontrar em seu início e então recomeçar a jornada. Mas não seria a mesma rua, ao fim da jornada ela já teria mudado bastante, mudança que começaria assim que eu perdesse cada ponto de vista. Os brotos já seriam mudas, as mudas já seriam plantas altas, as plantas já seriam árvores, as árvores talvez já fossem madeira. Retomando essa rua, por conseqüência, eu retomaria minha própria vida em suas nuances mais singelas, vendo consciente que o que foi deixado para trás, agora estaria à minha frente, diferente, mas em essência a mesma coisa; bastariam o discernimento e a vista treinada que a maturidade decorrente da jornada terão me dado.

  Um jardim para encher meus dias de vida, e emprestar um pouco de vida aos que pensam já não tê-la. Não precisa ser grande, bastaria o tamanho suficiente para abrigar a maior diversidade que eu pudesse conseguir, de flores, pequenos frutos, árvores frutíferas ou não, ervas e passarinhos. Todos os dias, ao acordar, eu veria o mesmo jardim, que não seria mais o mesmo. Algumas pétalas teriam caído, algumas folhas estariam amarelas e outras brotando, alguns insetos teriam ido embora e outros chegado. Os odores seriam em essência os mesmos, mas jamais seriam aqueles de ontem. Um jardim para me mostrar sua severidade lúgubre invernal, quando a natureza se recolhesse e me pedisse para meditar acerca do que fiz no restante do ano. Renascer na primavera e me receber com sua explosão vital, como dizendo que sentiu saudades. Seria sempre o meu jardim, sempre à minha janela, mas meus olhos já treinados pela convivência, veriam que ele nunca seria o mesmo enquanto estivesse vivo, e eu iria querê-lo assim.

  Uma casa espaçosa, sem luxos, mas aconchegante e apta a receber os meus. cadeiras e mesas para todos se acomodarem bem e se olharem nos olhos, enquanto conversam. Uma cozinha ampla com um fogão e um forno bem feitos, uma mesa grande ao centro onde eu praticaria a alquimia da boa culinária. Pães e doces para servir às visitas e aos que me pedissem um reforço para sua própria viagem, após descansarem à sombra de uma figueira que ornaria a entrada. Uma construção sólida, para durar muitos anos sem desabar sobre minha cabeça, mas não eterna. Pediria reparos periódicos, receberia novas decorações de vez em quando, sempre respeitando sua integridade e identidade. Seria minha casa e estaria sempre lá, a me proteger e abrigar, a me aquecer com sua lareira no auge do inverno. Seria ela, mas nunca seria a mesma, refeita a cada necessidade como um organismo que se regenera de um ferimento. Meus olhos acostumados a todos os seus recantos a reconheceriam em cada um deles, mas também lembrariam que cada um estava diferente na primeira vez, como na segunda, na terceira e em todas as outras, e que por isso mesmo a casa continuaria de pé.

  Vasos bonitos para decorar minha morada, alegrar meus dias de reclusão e dar abrigo as provisões. Não precisariam ser rebuscados, mas teriam que ser bonitos. Pelo menos um em cada aposento, para que em todos eles eu reconhecesse aquele lugar como um lar. Também para me servirem de lição e exemplo, para que eu aprendesse a ter cuidado na lida com as pessoas, que como eles também têm uma sensibilidade inaparente. Quando um se quebrasse, eu tentaria consertar, talvez com sucesso, talvez sem. Mas saberia que mesmo um vaso quebrado poderia me dar proveito, como revestimento, como calçamento, como amparos no jardim. E cada vez que eu me ferisse por quebrar um deles, teria paciência, pois saberia que revidar causaria mais ferimentos, e assim eu aprenderia a lidar melhor com o coração alheio, que é o vaso mais frágil e precioso de todos. Eles estariam sempre lá, enquanto conseguisse preservá-los, mas seu conteúdo seria sempre renovado, pelo que nunca seriam os mesmos todos os dias, conciliando tradição e novidade.

  Um meio honesto de vida, que me permitisse acumular o necessário para minha velhice. Não faria questão de uma vida nababesca, apenas da generosidade para com a retribuição do suor derramado, do tempo empregado e da concentração requerida. Um trabalho que me ensinasse a cada dia a lição cotidiana e continuada que a vida entrega em capítulos. Que me ensinasse o equilíbrio entre a força e a delicadeza, para eu saber socorrer e aceitar socorro quando a dor batesse à porta. Seria o meu trabalho, sempre esperando o dia seguinte para receber a transformação por minhas mãos, e porque se transformaria nunca seria o mesmo. Como eu também nunca seria. E porque sempre seríamos nós, eu e meu labor, sem nunca sermos os mesmos, nos renovaríamos continuamente e continuamente renovaríamos nosso pacto de crescimento. Minhas mãos treinadas pela prática seriam cada vez mais hábeis, mas também mais sensíveis pela ação da idade, me obrigando a ter mais capricho com sua execução e mais cuidado para comigo. Eu, por conseqüência, seria sempre eu, mas jamais a mesma pessoa todos os dias, sempre reconhecido e renovado.

  É pedir muito?