10/07/2014

Não quero muito


  Uma rua para caminhar sem ter que tropeças nas pedras alheias, só nas minhas. Poder seguir essa rua até o seu fim, ou até ela se reencontrar em seu início e então recomeçar a jornada. Mas não seria a mesma rua, ao fim da jornada ela já teria mudado bastante, mudança que começaria assim que eu perdesse cada ponto de vista. Os brotos já seriam mudas, as mudas já seriam plantas altas, as plantas já seriam árvores, as árvores talvez já fossem madeira. Retomando essa rua, por conseqüência, eu retomaria minha própria vida em suas nuances mais singelas, vendo consciente que o que foi deixado para trás, agora estaria à minha frente, diferente, mas em essência a mesma coisa; bastariam o discernimento e a vista treinada que a maturidade decorrente da jornada terão me dado.

  Um jardim para encher meus dias de vida, e emprestar um pouco de vida aos que pensam já não tê-la. Não precisa ser grande, bastaria o tamanho suficiente para abrigar a maior diversidade que eu pudesse conseguir, de flores, pequenos frutos, árvores frutíferas ou não, ervas e passarinhos. Todos os dias, ao acordar, eu veria o mesmo jardim, que não seria mais o mesmo. Algumas pétalas teriam caído, algumas folhas estariam amarelas e outras brotando, alguns insetos teriam ido embora e outros chegado. Os odores seriam em essência os mesmos, mas jamais seriam aqueles de ontem. Um jardim para me mostrar sua severidade lúgubre invernal, quando a natureza se recolhesse e me pedisse para meditar acerca do que fiz no restante do ano. Renascer na primavera e me receber com sua explosão vital, como dizendo que sentiu saudades. Seria sempre o meu jardim, sempre à minha janela, mas meus olhos já treinados pela convivência, veriam que ele nunca seria o mesmo enquanto estivesse vivo, e eu iria querê-lo assim.

  Uma casa espaçosa, sem luxos, mas aconchegante e apta a receber os meus. cadeiras e mesas para todos se acomodarem bem e se olharem nos olhos, enquanto conversam. Uma cozinha ampla com um fogão e um forno bem feitos, uma mesa grande ao centro onde eu praticaria a alquimia da boa culinária. Pães e doces para servir às visitas e aos que me pedissem um reforço para sua própria viagem, após descansarem à sombra de uma figueira que ornaria a entrada. Uma construção sólida, para durar muitos anos sem desabar sobre minha cabeça, mas não eterna. Pediria reparos periódicos, receberia novas decorações de vez em quando, sempre respeitando sua integridade e identidade. Seria minha casa e estaria sempre lá, a me proteger e abrigar, a me aquecer com sua lareira no auge do inverno. Seria ela, mas nunca seria a mesma, refeita a cada necessidade como um organismo que se regenera de um ferimento. Meus olhos acostumados a todos os seus recantos a reconheceriam em cada um deles, mas também lembrariam que cada um estava diferente na primeira vez, como na segunda, na terceira e em todas as outras, e que por isso mesmo a casa continuaria de pé.

  Vasos bonitos para decorar minha morada, alegrar meus dias de reclusão e dar abrigo as provisões. Não precisariam ser rebuscados, mas teriam que ser bonitos. Pelo menos um em cada aposento, para que em todos eles eu reconhecesse aquele lugar como um lar. Também para me servirem de lição e exemplo, para que eu aprendesse a ter cuidado na lida com as pessoas, que como eles também têm uma sensibilidade inaparente. Quando um se quebrasse, eu tentaria consertar, talvez com sucesso, talvez sem. Mas saberia que mesmo um vaso quebrado poderia me dar proveito, como revestimento, como calçamento, como amparos no jardim. E cada vez que eu me ferisse por quebrar um deles, teria paciência, pois saberia que revidar causaria mais ferimentos, e assim eu aprenderia a lidar melhor com o coração alheio, que é o vaso mais frágil e precioso de todos. Eles estariam sempre lá, enquanto conseguisse preservá-los, mas seu conteúdo seria sempre renovado, pelo que nunca seriam os mesmos todos os dias, conciliando tradição e novidade.

  Um meio honesto de vida, que me permitisse acumular o necessário para minha velhice. Não faria questão de uma vida nababesca, apenas da generosidade para com a retribuição do suor derramado, do tempo empregado e da concentração requerida. Um trabalho que me ensinasse a cada dia a lição cotidiana e continuada que a vida entrega em capítulos. Que me ensinasse o equilíbrio entre a força e a delicadeza, para eu saber socorrer e aceitar socorro quando a dor batesse à porta. Seria o meu trabalho, sempre esperando o dia seguinte para receber a transformação por minhas mãos, e porque se transformaria nunca seria o mesmo. Como eu também nunca seria. E porque sempre seríamos nós, eu e meu labor, sem nunca sermos os mesmos, nos renovaríamos continuamente e continuamente renovaríamos nosso pacto de crescimento. Minhas mãos treinadas pela prática seriam cada vez mais hábeis, mas também mais sensíveis pela ação da idade, me obrigando a ter mais capricho com sua execução e mais cuidado para comigo. Eu, por conseqüência, seria sempre eu, mas jamais a mesma pessoa todos os dias, sempre reconhecido e renovado.

  É pedir muito?

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