24/02/2015

Minha vida muito tosca


  Uma das coisas que aprendi em mais de doze anos de Vigilância Sanitária, é que não importa o quanto você saiba pouco, ou mesmo nada de legislação sanitária, o contabilista provavelmente sabe menos. Hoje mesmo foi um a quem precisamos ensinar a diferença entre fiscal de saúde e fiscal ambiental, porque na cabeça dele seriam a mesma coisa. Não que as regras sejam claras e concisas, mas o cidadão leigo costuma compreender melhor e mais rápido que Anvisa e Vigilância Sanitária são intimamente interligadas, mas são órgãos distintos. Mais ou menos como cérebro e intestino, mas os profissionais que deveriam orientar os clientes, confundem... Sim, vocês estão imaginando certo, temos que corrigir muita caca.

  Outra caca que eles costumam fazer, é mandar o coitado do estagiário arrumar algo, mas ensinando TUDO ERRADO! A vítima de hoje foi um jovem senhor de barba cerrada, que chegou à nossa sala com cara de quem não sabia o que estava fazendo lá, ele apresentou um papel e disse que queria "tirar a Anvisa". Ok, vamos por partes. Anvisa não é uma coisa que se tira de um lugar e se coloca em outro; também não é um documento, ninguém anda com uma Anvisa no bolso, nem a pendura na parede com uma moldura cafona; finalmente, também não é leite para o sujeito entrar no prédio de uma vigilância sanitária e pedir que tiremos para ele. Isso lhes parece compreensível? Não para o contador. O rapaz saiu de lá sabendo provavelmente, mais do que todo o restante do escritório.

  Ainda assim não é raro um contador indignado ir tirar satisfações, como se nós tivéssemos ensinado errado, então temos que esfregar toda a legislação na cara de pau dele. Isso quando não faz ameaças veladas, dizendo que joga futebol com os vereadores...

  A não mais do que meia hora para meu turno findar, liga uma cidadã. Eu logo identifico a autarquia, e mesmo assim ela pergunta se é da Vigilância Sanitária. Depois começa com "Deixa eu perguntar" e cinta toda a história da humanidade, para só então dizer que pagou uma guia COM ATRASO no Bradesco ainda no ano passado, e o pagamento ainda não caiu no sistema... Queria saber o que poderia ser feito... Pedi que fosse falar com o banco mesmo, estava fora na nossa alçada. Provavelmente terá que fazer um boletim de ocorrência...

  Minutos antes de eu ir embora, uma chuvinha fina reveza com o sol inclemente, até acertarem que o céu ficaria nublado e nada mais. Saí, já que não recebo hora extra. Fui serelepe e tranqüilo ladeira acima, até estar longe demais para voltar, mas ainda longe demais do ponto de ônibus, quando pingos grossos começam a cair. abro o guarda-chuva, e o toró cai de uma vez. Sem ter para onde correr, e ciente de que o ônibus não me esperaria se eu demorasse, segui, ensopado do joelho para baixo, atravessando enxurradas e tentando não ser ensopado do joelho para cima, pelos carros.

  A cada esquina o aguaceiro aumentava, com o vento ajudando a melhorar o quadro. A poucos metros do abrigo, um rapaz em um Porsche Boxter preto de capota vermelha (claro que estava fechada, Pedro Bó!) olhou para mim com alguma piedade, então o trânsito começou a fluir e ele foi junto, com civilidade suficiente para não dar banho de lama nos passantes, com o V8 ronronando logo atrás de si.

  E por falar em lama, ela formou praticamente um lago, por causa da obra faraônica e desnecessária na Praça Cívica, de onde escorria fartamente a correnteza suja, que logo adiante sobrepujava o passeio central, onde fica o abrigo do ponto de ônibus. Mesmo já sob o abrigo, mantive o guarda-chuva aberto por dois motivos; primeiro porque os ônibus e os outros carros não tinham a mesma civilidade daquele rapaz no Porsche e jogavam água com vontade no público, não preciso dizer que havia gente atrás de mim; segundo porque Paralda, sacana, alimentava o vento com uma paixão avassaladora. Fiquei naquela cena ridícula de mover o guarda-chuva toda hora, dependendo de quem molhava menos, a chuva ou os carros. Àquela altura do campeonato, eu já desistira de ficar seco, estava tentando manter a água do lado de fora do corpo.

  Demorou para o Caio Apache Vip, que virou padrão dos paus-de-arara do transporte público goianiense, vir me tomar R$3,30. Pois foram de quinze a vinte segundos dentro do ônibus para a chuva parar... Lá fora a cena esperada e fatídica, grandes galhos caídos em profusão por praticamente todo o caminho, alguns carros apagados, alguns acidentes, incluindo uma Palio Weekend que encolheu a frente após afundar a traseira de um Logus. Me lembrei de pronto dos Fiat 147 e sua lendária vulnerabilidade a alagamentos. Andando eles até conseguiam atravessar algumas enxurradas, mas se parassem, as ondas cessariam e a água que elas afastam entraria rapidamente na distribuição do motor. E aquele anda-e-para deve ter feio várias vítimas pela cidade. Fora o folgado de um Versailles vermelho, que estacionou na diagonal , quase no meio da avenida, para desembarcar algo ou alguém. Estavam lá, os sacripantas, saracoteando com as portas abertas.

  Quase chegando ao ponto, a chuva recomeçou. Como sei a não elogiar algo que parece ir bem, e a não subestimar a lei de Murphy, o motorista fez o favor de parar no meio da rua, e eu novamente encharquei os pés... E ainda atravessei mais duas até chegar ao portão e entrar. Para quem acha pouco, acrescento o episódio que aconteceu às duas horas da manhã, quando o alarme disparou, demoramos a conseguir desligar o porqueira, e não consegui mais dormir. Descansar agora? Eu? Quem me dera!

17/02/2015

Seus medos?

  Quais são? Seja sincero consigo. Tens certeza? Há uma diferença sensível, mas muito efetiva entre o que acreditamos ter, e o que realmente temos. Com o medo não é diferente, ele recebe muitos eufemismos e muitas justificativas, tanto mais quando menos se quer assumir.

  É mais ou menos como ter em casa um velho caminhão Fargo 1948 e achar que ele vale, mesmo caindo aos pedaços, mais do que um Cargo 2429 zero quilômetro. Ou o contrário, pensar que por causa do estado de conservação, ele não vale nem seu peso como sucata, a distorção de avaliação é a mesma.

  Neste ponto todas pessoas quase sempre falham, não se considere um idiota por isso. Elas não avaliam direito os seus medos e por isso também não sabem avaliar as reais dimensões da ameaça, isso quando realmente há uma ameaça. Não que ameaças não existam realmente, existem e são muitas, mas pelo efeito manada, a reverberação do medo alheio funciona como um amplificador, fazendo um um passo no cascalho parecer uma avalanche; também o contrário, é claro.

  Nos últimos anos as pessoas têm ficado mais neuróticas do que na época da guerra fria, que aquele psicopata do Putin tenta ressuscitar a todo custo. A neurose é alimentada pela mídia, que não faz isso só porque é lucrativo, mas também porque jornalistas geralmente são neuróticos, faz parte da profissão. O problema vem quando a neurose toma conta da vida do cidadão e ele passa a ter medo de tudo, dando a reles marginaizinhos um poder que eles não têm. Eu os enfrentei, sei do que estou falando, não passam de moleques mal acostumados. Mas as pessoas pensam que qualquer um usando apenas calção abajur de quenga e óculos ridículos, é um mensageiro do inferno.

  Há casos de pessoas que têm tanto medo de serem demitidas, que se esse medo não se concretizar depois de anos, elas mesmas se demitem e depois lamentam pelo desemprego. Não necessariamente pedindo demissão, mas se comportando como se a demissão fosse inevitável e comprometendo suas funções, então a chefia não tem escolha. Ou até tem, mas o surgimento de uma vítima mais cômoda pode tê-lo tirado de um dilema.

  Sabem aquelas comédias de paspalhos que terminam o namoro com medo de serem traídos? Eu até riria delas, se fossem só comédias. Algumas pessoas, e num universo de mais de sete bilhões esse "algumas" pode render muitas dezenas de milhões, têm tanto medo reprimido ou camuflado de serem felizes, que cedo ou tarde fazem de tudo para sabotar um relacionamento sadio que está dando certo. São pessoas que só se sentem à vontade em relações doentias, repletas de ciúmes e desconfianças, que desgastam e causam danos perenes. Elas têm medo da felicidade, simplesmente porque têm medo de se acostumarem às nuvens e caírem delas de repente.

  Quem já não desejou passar por cima daquele bocó de mula, que trava o trânsito porque só tem coragem de atravessar quando não houver nenhum carro no horizonte? Não importa que aquela Mobilete com um condutor de duzentos quilos atravesse antes de o carro da transversal alcançar metade do caminho, mesmo que o cidadão em questão esteja em um Maverick 302, ele vai ficar travado ao menor reflexo de um para-brisas a um quilômetro de distância. O medo de arriscar e falhar pode ser maior do que o instinto de sobrevivência. As causas são inúmeras, duas pessoas com o mesmo sintoma podem ter condicionamentos ou traumas completamente diferentes.

  Para justificar seus medos, porque muita gente tem pavor de não sentir medo e ser pega desprevenida, um contingente cada vez maior se apega e dissemina teorias conspiratórias das mais diversas, tão sortidas quanto absurdas. Muitas têm até muito de verdade, mas é uma verdade tão fragmentada e dispersa pela explanação, que mesmo que fosse tudo verdade, uma pessoa culta e com o medo na medida saudável não levaria à sério. Infelizmente o medo de ficar de fora de um grupo tem ceifado bastante do afã literário, as pessoas temem ser esclarecidas porque isso as tornaria diferentes e ser diferente, neste mundo onde é obrigatório aderir a um rótulo idiota, vai contra a sociedade defensora da diversidade... Hello, meu nome é Ironia, a fina.

  Essas teorias conspiratórias modernas, que deixam muito a desejar às clássicas, tratam pessoas ou entidades como deuses. Alertam que o mundo está em perigo, que eles são terríveis, invencíveis, que nada pode detê-los, que sabem de tudo sobre todos e vão colocar suas conversas no whats upp no programa da Ophay. Ai, meu Deus, eles são onipotentes, ninguém é capaz de falar deles, muito menos de denunciá-los, por isso devemos nos unir para dar um basta, mas eles vão destruir o mundo e ninguém pode impedir, por isso temos agir e detê-los... Notaram a contradição? Os disseminadores desse medo mostram entidades humanas como supra divinas, cujo poder é irresistível, e mesmo assim se empenham em denunciar o que eles mesmos afirmam que é inútil denunciar, mas todo mundo tem que saber, nem que seja para borrar as calças a qualquer sombra que aparecer, mesmo a própria.

  Infelizmente pessoas mal intencionadas são hábeis em perceber o pânico potencial, e se aproveitam dele. Fazem as pessoas esquecerem quem sustenta a quem, aproveitam para disseminar factoides entre seus contactos na imprensa, apelando sempre para os temores mais básicos da população, esses factoides ganham força e passam a sobreviver sozinhos, puxando eles mesmos audiência e patrocínio, em um círculo vicioso.

  Sim, é verdade que disseminar versões escrachadas de informações sigilosas, é um bom meio de desacreditar uma denúncia, da mesma forma repetir com cara séria uma mentira é uma boa forma de essa mentira ganhar credibilidade. Principalmente se essa mentira tiver algum fundo de verdade, mais ainda se acompanhar teorias conspiratórias antigas sobre o mesmo tema. Sim, é verdade que a CIA avisou ao anencefálico do Bush sobre as conspirações da Al Qaeda, tão verdade quanto isso foi divulgado e ninguém impediu a divulgação.

  É o mesmo princípio usado no Brasil, onde direita e esquerda acusam a imprensa de ser servil ao outro lado, ambos negando e dizendo que não existe sua ideologia de verdade no país. Fica como uma lenda urbana, que ninguém prova que existe, mas ninguém prova que não existe, assim a dúvida acaba tendo o mesmo efeito do medo nas pessoas, que não sabem a quem se reportar e a quem encher de tapas. Aliás, é alimentando o medo coletivo que eles se mantém no poder, porque o cidadão comum se preocupa demais em se manter vivo, não tem disponibilidade para cortar a verba e começar a dar ordens.

  Os efeitos colaterais desse medo são conhecidos, mas é difícil relacioná-los, porque parecem nada terem a ver um com o outro. As pessoas ficam susceptíveis a vícios, qualquer coisa que propicie um escape da realidade, que não é essa realidade toda que a mídia divulga. O escape pode ser por drogas químicas, drogas televisivas, drogas musicais, pode ser a inversão de papéis, quando o indivíduo passa a flertar com comportamentos agressivos e perigosos, tornando-se então ele um gerador de medo.

  Certo, como resolver esse problema? Com conhecimento. Não simplesmente devorando uma enciclopédia e sair arrotando conteúdo. O maior problema é saber processar esse conteúdo, saber onde, quando, como e até que ponto aplicá-lo. Precisa-se desenvolver o raciocínio crítico, de preferência livrar-se de ideologias. Sei que este ponto pode colocar muita gente de cabelo em pé, mas quem abraça uma ideologia não percebe que está agindo como quem abraça um dogma, tende a vetar tudo o que vem do outro lado e exaltar tudo o que está do seu, sempre criando argumentação para sustentar o que diz.

  Ao analisar uma notícia, esqueça sua opinião e adopte parâmetros. Pergunte-se sempre os porquês de sua conclusão, lembrando-se de que confirmar um temor pode ser um modo de manter-se na zona de conforto; masoquista, mas um conforto. Pergunte-se, por exemplo, como aquela notícia foi veiculada se alegam que o denunciado é tão poderoso, ele teria sido capaz de abafar tudo em tempo, provavelmente o editor não teria permitido a veiculação, porque ele pode fazer isso e faz muito, para garantir patrocínio. Muitas vezes a nossa própria preguiça de ler, e nosso medo de nos decepcionarmos com nossos heróis, nos pregam essa peça.

  O mesmo vale para obras de cunho científico, tudo deve passar pelo crivo do senso crítico, que sem parâmetros não tem onde se apegar para crescer. Como um bougainville, que precisa de um suporte para exibir todo o seu potencial ornamental. Procure saber de onde nasceu aquela idéia, que suporte ela tem, como o autor chegou a ela, o que fez com que chegasse àquele resultado, uma seqüência de "por quê" capaz de fazer muitos intelectuais arraigados se decepcionarem com suas próprias idéias, como aconteceu comigo há cerca de vinte e poucos anos. É desconfortável, mas uma vez instalado o raciocínio lógico, não o pensamento da tua lógica, o medo se recolhe ao seu lugar e para de atrapalhar tanto.

  Queridos, ninguém é invencível, ninguém é onipotente, ninguém é eterno, nem seus medos.

04/02/2015

vie noir

  Eu fui à sala vazia, onde jaz a memória d'outrora, onde a calma e o silêncio da mobília conversam com o televisor de 1977, que nunca mais foi ligado. Só a valsa lúgubre das cortinas à meia-luz da meia-noite se faz movimento, pelos sussurros melancólicos da brisa que chora em mono tom.

  Lá fora as flores sorriem tristes em seu leito sem questionar seu destino, que é servirem de cortesãs e logo murcharem. Imagem cálida do morno gélido de uma noite plácida, mas é uma placidez traiçoeira, vampira, que seduz à inércia para servir-se de quem repousar à sua sombra.

  A rua silente canta a última melodia, com o coro de cães desnorteados em suas casas gradeadas, por conta de uma ave ou um gato, um outro cão, talvez. À amiúde é só silêncio, à amiúde é só lembrança, à amiúde é o vazio cantando e eu o ouviria ainda que tivesse surdez absoluta.

  O velho toca discos de 1962 ainda repousa com o David Castle ainda na agulha, com sua capa ainda vazia ao lado do aparelho, todos inertes desde então, desde quando, desde enquanto, fundindo-se em uma só e triste imagem da alegria sepulcra onde a perda encontrou acalanto perpétuo.

  Ainda tenho na mente a última festa, a última dança, a última palavra, a última olhada, a última lavanda que exalava de sua roupa. Ainda tenho em casa as roupas do baile, as veria ainda que contraísse cegueira absoluta, me lembraria delas ainda que delas me esquecesse para sempre.

  Está tudo quieto, está tudo silente, está tudo como sempre esteve desde então, desde quando, desde tanto tempo, desde que terminou, desde que nem me lembro mais. O choque me imprimiu uma loucura que não é outra além da lucidez insana em que se apoia o que me resta de razão.

  As photos no aparador ainda contam suas histórias, ainda cobram por sua narração, ainda vivem o que mostram, ainda existem quando foram batidas. Todas em branco e preto, todas cheias de cor, as veria ainda que a escuridão completa se deitasse sobre a sala, tão densa que afundaria no sofá.

  Eu sei que acabou, eu sei que não há mais, eu sei que nunca mais, mas sei também que o fim é eterno como é sua companhia. O tempo que houve se estende em lapso com o tempo que ainda corre e escorre por entre os dedos, como escorreu, correu, afastou-se até sumir no horizonte que ainda zomba de mim.

  Ainda que tudo passe, ainda que eu me afaste, ainda que me achasse, ainda que finde a fase, ainda assim tudo continuará como está, como esteve desde quando, desde então, desde muito tempo até agora, até amanhã, até sempre, até nunca mais, até tudo se dissolver em si e mergulhar em seu próprio vazio.

  Acabou, eu sei. Acabou. Deveria ter saído, mas já estava de fora, já estava longe, já estava onde a vista não alcança mais. Mas a presença ainda estava lá, ainda está lá, ainda estará lá mesmo quando a ausência chegar e se somar, em vez de substituir, à sua sina de grumete da solidão.

  Acabou, tudo acabou... Inclusive eu.