04/02/2015

vie noir

  Eu fui à sala vazia, onde jaz a memória d'outrora, onde a calma e o silêncio da mobília conversam com o televisor de 1977, que nunca mais foi ligado. Só a valsa lúgubre das cortinas à meia-luz da meia-noite se faz movimento, pelos sussurros melancólicos da brisa que chora em mono tom.

  Lá fora as flores sorriem tristes em seu leito sem questionar seu destino, que é servirem de cortesãs e logo murcharem. Imagem cálida do morno gélido de uma noite plácida, mas é uma placidez traiçoeira, vampira, que seduz à inércia para servir-se de quem repousar à sua sombra.

  A rua silente canta a última melodia, com o coro de cães desnorteados em suas casas gradeadas, por conta de uma ave ou um gato, um outro cão, talvez. À amiúde é só silêncio, à amiúde é só lembrança, à amiúde é o vazio cantando e eu o ouviria ainda que tivesse surdez absoluta.

  O velho toca discos de 1962 ainda repousa com o David Castle ainda na agulha, com sua capa ainda vazia ao lado do aparelho, todos inertes desde então, desde quando, desde enquanto, fundindo-se em uma só e triste imagem da alegria sepulcra onde a perda encontrou acalanto perpétuo.

  Ainda tenho na mente a última festa, a última dança, a última palavra, a última olhada, a última lavanda que exalava de sua roupa. Ainda tenho em casa as roupas do baile, as veria ainda que contraísse cegueira absoluta, me lembraria delas ainda que delas me esquecesse para sempre.

  Está tudo quieto, está tudo silente, está tudo como sempre esteve desde então, desde quando, desde tanto tempo, desde que terminou, desde que nem me lembro mais. O choque me imprimiu uma loucura que não é outra além da lucidez insana em que se apoia o que me resta de razão.

  As photos no aparador ainda contam suas histórias, ainda cobram por sua narração, ainda vivem o que mostram, ainda existem quando foram batidas. Todas em branco e preto, todas cheias de cor, as veria ainda que a escuridão completa se deitasse sobre a sala, tão densa que afundaria no sofá.

  Eu sei que acabou, eu sei que não há mais, eu sei que nunca mais, mas sei também que o fim é eterno como é sua companhia. O tempo que houve se estende em lapso com o tempo que ainda corre e escorre por entre os dedos, como escorreu, correu, afastou-se até sumir no horizonte que ainda zomba de mim.

  Ainda que tudo passe, ainda que eu me afaste, ainda que me achasse, ainda que finde a fase, ainda assim tudo continuará como está, como esteve desde quando, desde então, desde muito tempo até agora, até amanhã, até sempre, até nunca mais, até tudo se dissolver em si e mergulhar em seu próprio vazio.

  Acabou, eu sei. Acabou. Deveria ter saído, mas já estava de fora, já estava longe, já estava onde a vista não alcança mais. Mas a presença ainda estava lá, ainda está lá, ainda estará lá mesmo quando a ausência chegar e se somar, em vez de substituir, à sua sina de grumete da solidão.

  Acabou, tudo acabou... Inclusive eu.


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