25/01/2008

Profissão: Dona de Casa


Esther troca receitas e figurinhas com as outras mães, enquanto espera pelo início da reunião de pais de alunos, quando chega a directora da escola. Sarada, antenada, bronzeada, liberada e outros "adas" saltam aos olhos. Calça de malha preta bem justa, camisão com a estampa "Girl Power", óculos escuros, tênis que custaram mais do que todo o restante da indumentária, enfim, parece dez anos mais jovem do que é. Esther, por sua vez, parece ter saído dos anos 1950; vestido xadrez sem mangas com cintura marcada e sandálias baixas, cabelos curtos e volumosos, falsas pérolas no cólo e uma cor bem mais discreta. A compleição falsamente frágil e o olhar sereno não denunciam seu poderio matriarcal, nem as agruras que suportou com a dignidade de uma rainha, durante os seis primeiros anos de casamento, que também já esteve por um fio. Dona Mirtes, de bermuda jeans e uma camiseta com a estampa de Chê Guevara, entrega a última receita trocada. Sempre comentou o quanto essa directora é eficiente, mas também que não gosta muito de donas de casa, não sabe o porquê.

Quadra cheia, todas sentadas, burburinhos encerrados, a directora começa a falar. Solta as saudações de praxe, dá o calendário de praxe, fala das dificuldades de praxe e praxeia como de praxe. Chega a hora dos tópicos mais aprazíveis, como os testes vocacionais. Esther se espanta com a quantidade de alunos que não fazem a mínima idéia do que querem fazer da vida, ao contrário de seus filhos. Ah, seus pimpolhos nunca tiveram moleza, mas os mimos maternos foram proporcionais à dureza imposta, Sarah quer ser ilustradora e Jacob arquiteto. Pensa que os dois poderão até trabalhar juntos, pois um terá a técnica e a outra o talento para promover a produção. A voz da locutora fica mais grave e os devaneios passam...

- Mas muito me preocupa a quantidade de meninas que não sabem o que querem fazer! Ao que me parece, elas não estão recebendo a orientação adequada em casa, porque é justo onde algumas delas querem ficar! Querem viver às custas de um homem, em vez de trabalhar!

Agora ela acertou no fígado. Esther é dona de casa por opção, vê isso como um sacerdócio que abraçou de boa vontade. Mirtes sai de fininho, quando vê no rosto da vizinha a sombra de seu gênio. É uma mãe exemplar, cuida das finanças da casa como se fosse mágica, seus filhos estão sempre bem arrumados, o marido sempre alinhado, ela mesma sempre impecável e a casa, esta sempre como se fosse um comercial de margarina. Mas a imagem de submissão passa longe dessa mulher. Ela mesma plantou uma muda de marmelo para ter bons correctivos para a família, manuseia rodo e vassoura com uma agilidade marcial, detendo eventuais fugas de seus rebentos antes que saiam do seu alcance, até o mastim Israel sabe pelos olhos quando é seguro se aproximar de sua senhora. Enfim, ela é a soberana de sua família e não se ouve contestação, enquanto as outras mães enfrentam o inferno da adolescência rebelde sem causa. Mas ela dá a contra partida, exige disciplina e dá o exemplo. É uma mulher bonita de encher os olhos, sabe andar com elegância, comer com classe, se levantar com dignidade de um tombo. Não xinga, age. Pois essa "directorazinha atrevida está pedindo e vai receber"...

- Não se ofendam as frustradas aqui presentes, mas aspirar prendas domésticas, é querer ser prostituta de um homem só...

Esther se levanta. Mirtes começa a rezar. Esther avança com a calma mais falsa e traiçoeira do mundo, a directora só a percebe quando ela sobe ao palco e, antes que peça para voltar ao seu lugar, recebe um gancho no maxilar que a desacorda...

- A tua mãe talvez tenha sido prostituta de um homem só, posto que não se preocupou em te ensinar o respeito ao próximo, mas aqui somos todas trabalhadoras.

Olha para as outras mães, toma o microphone e usa uma de suas armas, o tom de voz com o qual dá aos filhos o primeiro aviso...

- Amigas, lamento ter interrompido essa revoltinha fútil que vocês estavam absorvendo tão placidamente. A discussão é o futuro profissional de nossos filhos? Então vamos conversar de mãe para mães. Eu sou dona de casa, a maioria de vocês me conhece, às demais sou Esther Gutemann, mãe de Sarah e Jacob, os melhores amigos que seus filhos podem ter. Escolhi essa carreira de livre e espontânea vontade, sou pharmacêutica de formação. Trabalho vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trezentos e sessenta e cinco dias por ano, mais hora extra a cada quatro anos. E querem saber? Eu amo isso. Reconhecimento? Não, eu não espero. Férias? Eu sabia que não as teria quando Sarah me acordou pela primeira vez, às 02h43, para mamar. Salário? Eu já trabalhei fora, mas quando Joseph conseguiu o emprego que um homem de verdade como ele merece, decidi me concentrar nos meus filhos. Eu acordo cedo e não tenho hora para dormir, vejo no escuro um grão de poeira fora do lugar, sei de cor e salteado o que há e o que falta na despensa, sei de todas as visitas médicas e odontológicas de cada um de nós, inclusive do nosso cão ao veterinário, pelos próximos doze meses. É, eu sei que é uma vida dura, mas mais dura sou eu. Não pensem que mantenho este corpo e esta pele nas academias. Não, minhas amigas, esta forma física é fruto do trabalho doméstico. Só que eu preciso representar a minha família, sou a embaixadora e cartão de visitas da casa. Por isso mesmo tenho truques que vou dividir com vocês, para não estragarem as mãos e os cabelos durante a labuta. Como ia dizendo, ser mãe é um sacerdócio, não é para qualquer um. Por isso metade da população nasce homem, e a outra não atinge os cem por cento de adesão. Aprendi a ser dona de casa com minhas ancestrais e estou ensinando Sarah. É uma missão de suma importância, pois somos nós, mães, que educamos ou estragamos nossos filhos. Eu não vou deixar uma empregada ou a escola educar meus filhos, é função minha. Se eu falhar, eles também falham. Vocês estão enfrentando a tal crise da adolescência, não é? Pois eu não sei o que é isso. Há coisas que um bom psicólogo conserta, mas as outras precisam ser cultivadas, como a disciplina, o respeito pelos outros, a responsabilidade, o gosto pelo trabalho, a honestidade, a paciência e o amor à família. Por favor, sem hipocrisias. Não sou governista, militarista, direitista-esquerdista, terra-a-vista ou coisa que valha. Sou mãe, dona de casa, estou formando dois cidadãos de fazer inveja aos suecos, é isso que uma dona de casa faz. Não precisa ter a dedicação exclusiva que eu tenho, mas precisa se dedicar. Por melhor que esteja a novela, o drama da televisão não vai afetar a sua vida, o da sua filha vai; por mais colorido que esteja o shopping center, os problemas do seu filho podem acinzentá-lo se não forem cuidados. Para nós, adultos, os dramas dessas crianças podem parecer bobagem, mas para elas é muito importante. Isso desde que aprendem a falar, não só quando começam a procurar problemas.

Eu sei o quanto cada uma de vocês é desvalorizada. Eu sei o quanto os homens preferem o objectificado, até que levam um par de cornos e reclamam da sorte. Eu sei muito bem o quanto este mundo machista e degenerado desrespeita a nós mulheres. Mas acreditem, boa parte da culpa é nossa. Eu já disse que somos nós que educamos ou estragamos nossos filhos, pois não estragamos só pelos mimos, mas também pela omissão. Se vocês não os educam, o mundo insensível e materialista lá fora vai fazê-lo à sua maneira, sem se importar com os estragos. Outro erro crasso que muitas cometem é querer competir com os homens. Por Moisés, isso é ridículo! É um general receber ordens de um recruta novato. Algumas chegam ao extremo, como esta pessoa aqui deitada, e se tornam tão agressivas e masculinas quanto eles. Esta pessoa que agora ronca feito uma motosserra afogada, é um homem de vagina. Homens não sabem educar, com raríssimas exceções, nem a si mesmos. Imaginem um mundo educado por eles: materialismo, imediatismo, desconsideração para com o próximo, busca por prazer físico a qualquer custo. Viram isso tudo em alguma manchete de jornal? mendigos queimados, bad-boy-olas quebrando boates e miando fino nas delegacias, uma juventude que acha que ser sincero é ser rude, que despreza quem trata bem o tempo inteiro, chama de falso quem não tem o que maldizer de alguém. Jacob já foi expulso pelos colegas, durante a educação física, porque apazigua os ânimos nesta escola, foi um trabalho danado em casa. E quando tudo isso começou a se dar? Não estou ouvindo? Começou quando nós passamos a agir pela lógica masculina do cada-um-por-si-e-todos-contra-todos. Falta a mão da mulher na sociedade de hoje. Competir o tempo todo é patológico, minhas amigas, mas essa juventude de agora não aceita se não for assim.

Eu não sou uma cortesão em minha casa, sou a Senhora de minha casa. Eu mando, a família obedece, é assim que tem que ser. Não precisávamos ter abandonado isso para ter nossas conquistas, muito pelo contrário, somos perfeitamente capazes de trabalhar fora (como já fiz) e manter a glória de nossa feminilidade à pleno vapor. Vamos, repitam comigo: fe-mi-ni-li-da-de. Feminilidade não é fragilidade, da mesma forma que prendas domésticas não é um eufemismo para prostituição. Eu conversava até ontem com a Dona Mirtes, o quanto essas actrizes novas estão feias! Você olha para elas e vê uma agressividade, que aprece que têm medo de serem mulheres, né, Mirtes?

- Nem me fala, menina, parece até homem capado! O meu sobrinho, o Nêgo, gritou que tavam mostrando uma actriz pelada e o Valti correu pra sala... e broxou. Falou que até a vassoura de palha do quintal é mais mulher, precisava ver. Umas não têm carne, outras é tudo empelotada, que horror!

- Ou seja, parecem homens. Mães, não tenham vergonha das prendas domésticas. Ninguém deve ser obrigado a assumir, mas quem assumir que o faça com amor. Três décadas sem essa profissão nos renderam pelo menos quatro gerações de pessoas egoístas, insensíveis, obcecadas pela beleza (é, deturparam a palavra) e juventude, vovôs que se recusam a envelhecer com dignidade e fazem plásticas como quem faz maquiagem. Essa "felicidade" artificial custa caro! E não resolve. Querem mesmo que seus filhos tenham um mínimo de chance na vida? Assumam-nos. Punir é desagradável, mas às vezes é necessário. Acordar às seis da manhã não é sacrifício coisa alguma. Menino deve saber cuidar da casa sim senhoras, ou não saberá dar valor ao que vocês fazem. Não perguntem aos seus maridos se eles querem jantar fora, simplesmente marquem e pronto, vocês têm o orçamento da casa e sabem o que podem gastar. Aprendam a diferenciar sensualidade, sexualidade e vulgaridade, porque as moças não estão sabendo, e os garotos... Bom, dois bilhões de neurônios a mais só servem de peso morto mesmo. Não, ninguém precisa se vestir como eu, isto aqui é um capricho meu e uma praticidade na hora de ir ao sanitário, mas não é isso que me torna uma dona de casa. Se vocês forem as donas de suas casas, ficará muito mais fácil serem mães de seus filhos, que saberão melhor o que querem ser na vida. É uma ocupação bonita, que precisa de pulso, mas não é um bicho de sete cabeças. E então, vamos às dicas? Mirtes, vamos deixar esta pessoa dormindo enquanto passamos nossas receitas de beleza. Nada de coisas caras, só truques domésticos...

10/01/2008

Quando vi o Titanic


Não se impressionem com o título, não sou tão velho assim. Me refiro ao famoso filme que consumiu uma jamanta de dinheiro para contar uma estória (o romance impossível) e uma história (o naufrágio mais famoso do mundo) em uma só película. A Melzinha pediu que eu escrevesse, para o quê convidei as professoras Fabiana e Lisa e professor o Fio para darem continuidade ao tema. Vamos lá.

Quando vi esse filme, estava na sala de casa, com a fita passando no video cassete... é, naquele tempo não tinha devedê para qualqer um, tinha que ser em fita magnética mesmo. A reconstituição de época foi o que mais me impressionou, e também foi o mínimo que poderiam ter feito pela fortuna gasta. Figurino virtualmente perfeito, a escandalosa separação de classes logo na entrada do navio, aquele carro (que não identifiquei) sendo içado à bordo, enfim, pelo menos um pouquinho de belas imagens eu vi que teria pela frente.

Um pouco de melodrama também era esperado, a bélle époque estava no auge que só seria quebrado pela Primeira Guerra Mundial. Bem... Bélle Époque para os europeus ricos, o resto do mundo estava um rebuliço só, que desembocou na revolução russa e tudo mais. Ainda assim a produção justificou seus custos, dando realismo à fantasia. Quando a nave se partiu, popa e proa afundaram separadamente (como é na vida real) e geraram turbulências no mar gelado (como é na vida real) que sugaram para o fundo quem estava por perto, mesmo os que tinham fôlego sucumbiram, pois estavam cercados por água gelada e não conseguiram reagir quando o turbilhão se desfez. Foi certamente o pontapé para Hollywood voltar a fazer filmes acima da linha do medíocre.

O texto poderia terminar por aqui, mas não seria o eu se asssim se desse. Um filme que valha à pena sempre me dá material para reflexão. Primeiro a arrogância: "Nem Deus afunda o Titanic". Não foi necessário, bastou um pedaço de gelo para isso. Foi encontrado na chapa do casco um teor de enxofre muito acima do normal; o enxofre, no aço, causa fragilidade quando o material está frio. Houve falha grave no controle de qualidade. Talvez a tragédia pudesse ter sido evitada se não fosse pela arrogância, esta que causou um descuido só tolerável se feito por leigos.

Segundo: a inoperância dos sistemas de contenção. Seja qual for o motivo, as comportas não foram fechadas, o que permitiu à água invadir todo o gigantesco navio. Fechadas, permitiriam que flutuasse com segurança até Nova Iorque. Mas lembremos que era a Bélle Époque, o "suicídio por amor" estava muito em voga. Alguém queria se ver livre de seus problemas e viu no naufrágio uma chance, sem se importar com o destino dos outros. Se foi esse o caso, o capitão se tornou um suicita e um genocida ao mesmo tempo.

Terceiro: não foi o primeiro filme sobre o tema. No mesmo ano um filme alemão (O Último Baile, se não me engano) narrou muda e muito romanceadamente o naufrágio do Titanic. Os efeitos especiais eram meramente demonstrativos, coisa que qualquer um faz actualmente, mas o figurino de época é imbatível, até porque foi naquela época que tudo aconteceu. Muitos outros fizeram a mesma coisa, nenhum com o sucesso do filme tema deste texto. Mas prefiro os documentários.

Quarto: a diferença temporal. Naquele tempo as pessoas, se quisessem ter um pouco de liberdade, tinham que lutar mesmo, às vezes no sentido literal da palavra, pois a desobediência poderia custar-lhes suas vidas; ainda que o assasino fosse todos os domingos à igreja rezar. Dava-se muito valor a cada conquista pois cada uma custava caro. Acredito piamente que falta isso, hoje em dia. Falta uma pitada de dificuldade de verdade, não me refiro à injustiça, mas às dificuldades do dia-a-dia; girar uma manivela para descer o vidro do carro, se levantar para trocar de canal, mastigar um alimento mais consistente para se nutrir, caminhar um mísero quilômetro para ir a qualquer lugar em vez de esperar uma hora pelo ônibus, et cétera. Tudo ficou fácil demais. Até sexo ficou fácil demais; difícil é conseguir não ter tudo isso, pois te empurram goela abaixo, te fazendo se sentir um idiota se não quiseres. Resultado: nada mais satisfaz, as pessoas estão sempre insatisfeitas, o que é porta aberta para os vícios.

Quinto: em decorrência do anterior, as pessoas tinham mais paciência. Alguém que não esperasse uma semana para receber uma carta era afoito, hoje estranham se aceitamos esperar até o dia seguinte por um e-mail. Todos querem fazer tudo ao mesmo tempo, acabando por não fazer cousa alguma que preste. Andar a cem por hora em uma viagem é suplício, querem andar a duzentos para chegar em meia hora. Paisagem? Blé! Se quer é "curtição", aproveitar(?) tudo de uma só vez, mesmo sem saber realmente o porquê. Por que ficar meia hora ao pé do fogão se a pizza chega rápido? E já vem com pratos descartáveis que entupirão o aterro sanitário, que fica longe de casa, portanto não vejo, portanto não me importo. Ficamos muito mal acostumados, isso é porta aberta para conservadores radicais e perda paulatina da liberdade individual.

Quando aparecer um filme de época ou da época, preste atenção nos hábitos. Não nos tabús, nos hábitos cotidianos. Os antigos têm muito o que nos ensinar, eles não cometeram somente erros. Os vilões do filme eram e sempre foram minoria, ou os macacos já teriam tomado conta de tudo desde a Idade Média. Nós é que temos o mau hábito de dar mais crédito aos maus do que aos bons. Porque, se não aprendermos com os erros deles e também com seus acertos... Talvez já seja meio tarde, pois coisas bem piores que aquele naufrágio já acontecem diáriamente e já achamos normal. Ficamos mal acostumados. A infância precisa de um limite para terminar, mas ela é necessária até o fim.

Bien, os passageiros do Titanic sabiam que a carne que consumiram não era feita em máquinas de lanchonetes, que seus pratos vinham de ceramistas e metalúrgicas, que a lã que vestiam não dava em árvores. Sabiam que cada coisa tinha uma origem e, portanto, também um destino. Por isso mesmo tinham mais intimidade com o mundo e o aproveitavam muito melhor do que qualquer um de nós. Eu sei que usar aqueles vestidões de vários quilogramas é terrível, mas não foi disso que falei. Falei do valor a cada pequena coisa, do aprendizado que pequenas dificuldades oferecem de graça, da vida saudável que o excesso de ofertas já não nos permite ter sem que paguemos caro por ela, um tratar com cortesia como hábito arraigado e outras ranhetices típicas minhas. Nossos antepassados sabiam disso, só não poderiam prever que usaríamos tão mal o fruto de seu trabalho. Hoje pouco resta do navio verdadeiro, em menos de oitenta nos será só uma lembrança, espero que o mesmo não se dê com o que nossos avós queriam nos dar, pois isso não se compra no shopping center.