24/05/2018

Esteja presente

   
A falta de recursos não é pior do que o Estado ausente, do que pais ausentes, do que parceiros ausentes, do que você ausente de si mesmo. Recursos se arranjam, com maior ou menor dificuldade, se improvisam, mas a ausência é, neste contexto, o vazio de um recipiente que deveria estar pleno, talvez até transbordando. Há de se lamentar a ausência de outrem, tanto mais quanto maior o compromisso feito, mas não se pode justificar a auto ausência naquilo que se dispuser a fazer.

    A maior carência de quem busca por momentos de prazer, nem sempre é o prazer. A pessoa vai ao lugar fazer algo, arca com os custos e riscos, então sai de lá (se vivo) sentindo-se mais vivo. Isso inclui a moda de esportes radicais, onde o risco de morte é o que atrai muita gente. A descarga de adrenalina, uma vez cessada, dá lugar à serotonina e a diferença de potencial resultante pode dar ao corpo a sensação de estar flutuando, a ponto de pequenos ferimentos nem serem considerados.

    É como estar em um campo de batalhas e sair vivo. Ninguém sobrevive se corpo e mente não estiverem lá, unidos, focados em fazer bem feito o que deve ser feito. Não se pensa na namorada, no desafeto, no programa de televisão, enfim, em nada que não seja concluir a contento aquilo que se foi fazer. O mesmo vale para cirurgiões, que precisam controlar até a respiração, esquecer-se da própria fadiga após oito horas contínuas com o paciente aberto. Em ambos os casos, a pessoa precisa estar presente no que faz para não causar uma tragédia.

    Não é raro uma notícia ou vídeo de motoristas que destruíram famílias inteiras, por se ausentarem momentaneamente da direção para mexer em alguma bobagem cibernética, mesmo que só para alterar o toque do smartphone. Parece ser algo banal, rápido, mas lembremos que qualquer veículo em baixa velocidade percorre uma quadra antes que a mudança de toque seja feita; uma quadra que o motorista não viu passar. Imagine um caminhão em uma rodovia, percorrendo mais de vinte metros a cada segundo! Qualquer distração pode significar de cinqüenta a cem metros de ausência das funções em andamento, se o indivíduo for rápido.

    Sejam quais forem a atividade e seus objectivos, o que quase todos querem na realidade é se sentirem mais vivos no final, fazendo todo o restante da semana valer à pena. Para se sentir mais vivo, o indivíduo precisa estar todo focado no momento que vive, relevando todo o restante; ele precisa estar presente consigo. Isso vale para tudo, inclusive para religiões.

    O que separa, basicamente, uma religião de uma mera superstição, é a presença do fiel durante os procedimentos, especialmente as preces. Memorizar e recitar uma oração complexa tem pouco valor, se a cabeça estiver em outras paragens, ou na malha colada da moça no banco da frente. Ok, o ambiente precisa de mais sobriedade, mas fixar-se e manter olhares no alvo é tua escolha. Não se trata de uma praia, não se está lá para apreciar a paisagem. Se tu não prestas atenção ao que está fazendo, então não acredita realmente no que está fazendo. Rezar pensando exclusivamente na prosperidade que espera conseguir com aquilo, também é ausência.

    A cultura de se ter tudo aqui e agora na potência máxima, é uma das grandes inimigas do compromisso para consigo. Entre os servos dessa inimiga, estão os "antenados" que querem que todos estejam plenamente cientes daquilo que consideram mais importante do que tudo, o que no Brasil tem se traduzido na figura do militante político/ideológico; infelizmente ele superou de longe o fanático religioso, que não tem a chancela da aparência de intelectualidade. O problema é que esses dois costumam ser carismáticos e demonstram sincera decepção para com os que não se alinham, alimentando a culpa e tirando a pessoa de si mesma para a carapuça apertada que querem que vista.

    Nem vou falar dos maníacos que tentam saber de tudo ao mesmo tempo e têm dezenas de abas abertas ao mesmo tempo no computador, e se consideram o suprassumo da inteligência. Bem, já falei, então serei breve, para não me perder de mim aqui. Há uma diferença sutil entre estar ciente de tudo o que nos cerca, e ter pleno conhecimento de tudo o que nos cerca; o primeiro é o salutar e necessário, o segundo é uma utopia insalubre que muita gente persegue. Perseguir uma utopia é correr de si mesmo a toda velocidade e depois se queixar da perda, culpando outros pela própria escolha.

    Aceitar se perder de si, muitas vezes significa abrir mão da própria personalidade, tornando-se mais um número a se parecer paulatinamente com todos os outros auto ausentes. Nem sempre parece, porque é gradual e nem todos escalam as graduações, mas os que o fazem tornam-se modelos para os outros e são tidos como corajosos, quando na verdade estão fugindo de si mesmos para não enfrentarem a própria ira, por terem traído o que mais acalentavam. E acabam destruindo aquilo que pretendiam, em princípio, proteger. Infelizmente esta é uma regra sem exceções, o radicalismo te toma de si mesmo e destrói as tuas bases mais caras, sem o quê a doutrinação e a lavagem cerebral não seriam possíveis; esta última a ausência total de si mesmo. É como usar palavras como drogas, o efeito é bem similar.

    E como fazer para não se ausentar de si mesmo?

    Prática. Prática contínua e persistente. Tentar ao máximo focar no que se estiver fazendo, deixar para depois o que pode ser deixado para depois, não olhar o gatinho que passa ali perto, não dar conversa para fofocas, não parar um minuto para ver o casamento do não sei quem com a nunca ouvi falar, não olhar as horas a cada cinco minutos; enfim, treinar estar presente naquilo que se estiver fazendo. Se algo realmente grave não acontecer, tente não se desviar. Não é fácil, ninguém diz que é, mas é necessário.

    Com o tempo, o teu compromisso para consigo mesmo aumenta, e passas a ter prazer e sentir-se vivo com as coisas mais banais e cotidianas, mesmo que só aconteçam uma ou duas por dia. Com o tempo não vais mais procurar prazeres todas as noites, porque já os tens ao teu alcance. Com o tempo, a culpa deixa de ter lugar na tua vida e ela cede lugar à responsabilidade, que é até parecida, mas não é histérica e violenta.

    Com o tempo e a prática, o resto do mundo pouco vai importar, porque não terá mais peso em tuas decisões e tuas opiniões, estas que não terás mais necessidade de mostrar todas a todo mundo. Vais descobrir eu uma hora sentado, tomando chá e meditando, muitas vezes é todo o prazer de que precisa na tua vida.