29/04/2016

A crise dos blogs






  Eu tenho encontrado dificuldades para administrar meus blogs, não em razão deles mesmos, em si são fáceis de lidar, mas por questões externas e alheias à minha vontade. Além do Palavra de Nanael, ainda lido com o Talicoisa, que tenho conseguido manter minimamente vivo, com o À Bateria, o Vintage Way of Life e o Demônios Internos, além de colaborar esporadicamente com Alcatéia e Revista Wicca.


  Não faz muito tempo, eu dava conta de todos com os pés nas costas. Aos poucos as dificuldades cotidianas me cobraram mais atenção e precisei tirar um pé das costas, depois os dois estavam no chão, então os braços também perderam a folga e a coisa desandou. As postagens ficaram cada vez mais raras e cheguei ao sacrilégio, justo no Demônios Internos, de ficar mais de um ano sem acrescentar uma linha sequer.


  Não vou procurar culpados, até porque se houvesse eles não mexeriam um dedo para consertar o estrago feito. Vida de adulto poderia resumir o que tem acontecido, mas se isto for vida, meu Deus, o que será o inferno? Uma das causas, esta é uma palavra mais digna, é o cansaço. Eu não escrevo o que gostaria, escrevo o que se fizer necessário, e puxões de orelha foram muito necessários, vocês vão encontrar broncas em textos bem recentes. O que me cansou não foi tanto o desgaste pelas reprimendas, foi o efeito quase nulo que elas surtiram.


  Alguns dos que leram se deram conta do que acontecia, e ainda acontece, se mancaram e moderaram seus comportamentos, mas a maioria absoluta simplesmente ficou de mal e nunca mais deu as caras por cá. A queda de quase noventa por cento das visitas é prova disso.


  Entretanto, há um fator que tem vitimado praticamente todos os blogs, fruto da obsolescência natural de todo sistema que não para no tempo; as redes sociais. Eu hesitei em me inscrever em uma, mas está se mostrando uma ferramenta valiosa para disseminar minhas idéias com acento e, ao contrário do que tem feito nos outros blogs, tem ajudado a manter os meus com uma visitação mínima.


  Acontece que me tornei blogueiro em Agosto de 2006, quando abri este que vocês agora lêem com circunflexo, antes de analphabetos funcionais com títulos ilegítimos de doutores esculacharem com a ortografia, aproximando-a mais de sua completa ignorância e sua preguiça ortográfica. Na época, os blogs estavam no auge, pareciam ser a ferramenta midiática do futuro, pelo poder de democratizar a custos irrisórios a livre manifestação de pensamento; para o bem e para o mal. O que estragou tudo talvez tenha sido justo uma das maiores virtudes de um blog, seu efeito facilitador.


  As redes sociais colocaram os leitores bem perto do blogueiro, que tinha então um público mais acessível. O problema é que com o tempo e a evolução, as postagens curtas, fáceis de ler e praticamente descartáveis, começaram a tomar o lugar dos textos por vezes longos e complicados dos blogs. Não bastasse isso, veio o Tweeter, que não sei como os alemães conseguem utilizar, praticamente duas palavras e o limite de caracteres está esgotado. Sabe aquela coisa de trocar um “bom dia” e cumprimentos diários por “aí” e dar as costas? Foi mais ou menos o que aconteceu. Ficou fácil demais, algo extremamente tentador para uma espécie biologicamente programada para poupar energia a todo custo.


  Há alguns anos várias pesquisas afirmaram que 90% dos blogs são abandonados no primeiro ano, muitos nem comemoram aniversário. Alguns dos que marquei em minhas listagens, aliás, já saíram do ar e estão com seus domínios disponíveis. Posso então dizer que sou um sobrevivente, aliás, sou uma família de cinco blogs sobreviventes, contando os em que só eu trabalho, alguns deles ainda combalidos pela evasão. Eu sei que muitos dos meus textos são longos, não raro indigestos e difíceis de compreender, problema que redes sociais, especialmente as de leitura rápida não têm. Mas eu não estaria sendo honesto, não estaria sendo nem eu mesmo se subestimasse a capacidade de compreensão e a inteligência lógica dos leitores.


  A verdade é que eu sou muito teimoso, minha cabeça é mais dura do que o diamante, eu decidi deixar meu cabedal para a posteridade e vou até o fim com isso. Por mais desgosto que a caixa de comentários vazia, motivo da evasão de muitos blogueiros menos perseverantes, me doa; e dói muito. Eu sei que o custo de publicar nesta plataforma é virtualmente zero, mas tenho tempo e pesquisa empregados no que escrevo, muita gente considera seu trabalho caro demais para receber zero comentário em troca. Eu também valorizo meu trabalho, não se iludam, mas meu foco é a posteridade, os arqueólogos que vão utilizar técnicas impensáveis para os dias correntes, e resgatar conteúdos como este, podendo então compreender o mundo como o vejo... Presunçoso, heim!


  Entretanto há os vitoriosos, aquele um em um milhão que conseguiu (sabe Deus a que custas) se dedicar com períodos curtos e confiáveis, conseguiu abrir caminho entre os fornecedores de dados e notícias, conseguiu o respeito da mídia oficial e sua cooperação, conseguiu se manter interessante e não ceder às tentações passageiras, conseguiu a fidelidade de um público considerável e, não menos importante, conseguiu ganhar dinheiro com seu blog. Eu escrevi “conseguiu” porque não foi golpe de sorte, a internet tem o poder nivelador só superado pelo da morte. Muitos blogs com estruturas faraônicas em espaços pagos, morreram às moscas, enquanto outros que começaram muito humildes em plataformas gratuitas, hoje pagam as contas de seus titulares.


  Não, eu não tenho a pretensão de viver dos meus blogs, mas não vou recusar a ajuda, se ela vier nos meus termos; posso alugar espaços, nunca vender minha credibilidade.


  Dificulta mais este blog, em especial, ser um espaço de manifestação pessoal, sem qualquer vínculo temático. Minhas antigas psicólogas que digam o quanto é difícil entender minha cabeça! Os outros, com temas fixos, mas não absolutamente rígidos, são tratados com o mesmo rigor aparentemente randômico que imprime os passos deste. Em verdade, meu estilo está mais para topológico, o que complica ainda mais para muita gente... Até para mim.



  O que machuca um pouco, com o abandono de outros blogs, é que eram canais valiosos de fluxo de idéias e informações. Alguns eram tocados com muito, mas muito carinho por pessoas que, depois descobri, muitas vezes eram pouco mais do que crianças ou idosos, que não tinham muito mais com quem e como conversar. Alguns só queriam colocar e compartilhar coisas bonitas na internet, na tentativa romântica de equilibrar o clima que os canais profissionais de notícias adoram estragar.


  Não, meus amigos, isto aqui não é um desabafo. É uma satisfação mínima de um blogueiro solitário, que já teve colaboradores em seus outros canais, mas agora se vê só, nu e com a mão no bolso. É também um apelo para os blogueiros que ainda resistem, para que não desistam só por causa da evasão de leitores, ou porque não conseguem mais publicar um artigo todos os dias úteis, ou porque estão sofrendo com dramas pessoais graves e sentem as forças se esvaírem, ou tudo junto e muito mais. É uma tarefa árdua e ingrata concorrer com meios de comunicação fáceis de usar e repletos de bobagens de leitura rápida, é como correr ladeira acima contra quem sobe de elevador. Às vezes parece que estou andando em uma estrada sem fim, sem absolutamente nada além da sombra a fazer companhia, às vezes nem ela, quando anoitece.


  Eu sei muito bem o que é tudo isso, tudo isso me acomete. É frustrante caprichar em um artigo, ir ao painel e ver que está tão frio quanto a caixa vazia de comentários. Aprendamos, porém, que a frustração é um dos elementos mais presentes na vida, não só a humana, mas nas de todos os seres vivos conhecidos. Alguém aí pensa mesmo que os leões conseguem acertar todos os ataques? Raramente o primeiro alvo se torna o almoço, quase nunca ele come com poucas tentativas, é muito freqüente com trema ele passar um dia ou dois sem comer. Faz parte. Se o rei das selvas precisa se acostumar a isso, que dirá um humano, com suas garras pífias e suas presas ridículas!


  Desistir, meus amigos, é a única condição para sair derrotado.

26/04/2016

A guerreira, o tirano e as mil cabeças do mal





    Era um grupo grande de bravos guerreiros, nem sempre ordeiros, mas entre suas diferenças normais, permitiam florescer a motivação maior da peleja a que se atiravam, contra o tirano voraz. Tinha o tirano um monstro de mil cabeças, nenhum cérebro decerto, mas que sabia recitar em versos convenientes o que cada guerreiro deixava de seus corações ir às mentes.



  O monstro, escondendo-se por detrás de seus cadáveres, parecia ser muitos, atacando por todos os lados os valentes que se mantinham juntos. O tempo dedicado às batalhas cotidianas, com a subjectividade inerente a cada ser humano, fazia cada um crer que a cabeça que combatia era o monstro mais feroz, os outros pareciam ser mais mansos, alguns até com bonecos de pano.



  O monstro, guiado por seu mestre, ciente da divisão que se avizinhava, fazia cada cabeça cantar o que a cada um mais agradava. Enquanto dilacerava o companheiro, a outro soldado fazia-se parecer ter intento nobre e verdadeiro. Cada um, indignado pela agressão a criatura tão gentil e delicada, bradava aos outros para cessarem e irem ajudar na luta contra a verdadeira fera amaldiçoada.



  Uma guerreira notava, porém, que cada cabeça ferida fazia com que as outras também sofressem, como se aqueles aparentados de um réptil fossem membros de uma só hidra. Teste feito em uma fera que sangrava, cravando a alabarda e decapitando o monstro, viu as outras cabeças gemerem, cessando momentaneamente a cantoria malograda.



  Foi detida, repreendida pelos que defendiam aquela cabeça decepada, sem perceberem que outra brotava do pescoço que não mais sangrava. Explicou ela, em uma pausa perigosa, o que constactou com o feito e alertou, eram cabeças de um só monstro, conforme observou em aventura exitosa. Riram dela. Cada um dizia o que realmente teria acontecido, que observasse a história da batalha em curso, pois estaria cega ou teria enlouquecido.



  Enquanto paravam para discutir, a discórdia crescia, o monstro se aproveitava para devorar os distraídos, jogando os restos o monte dos há muito abatidos. Alguns voltaram à luta, vendo a falta de companheiros, mas sempre tendo em mente que encantos em versos eram verdadeiros.



  A guerreira, abatida pela incompreensão, já sem o crédito que tinha de início de seu batalhão, jogou-se à luta cuidando para não ferir outros guerreiros. Tarefa difícil, sempre aparecia um a defender sua cabeça de estimação, esta o mordia e envenenava, recaindo a culpa sobre a guerreira que viram em ação.



  Com o tempo e o cansaço, delírios de verdades absolutas vinham às mentes dos que se deixaram encantar, e a guerreira ficava cada vez mais só, com duas, três ou até mais cabeças para enfrentar. Com desgosto via ela companheiros montarem em suas cabeças preferidas e atacarem os companheiros, que agora eram traidores covardes das boas intenções que cada um defendia. O tirano ria com prazer da divisão que plantou com paciência e agora via crescer. Parou de controlar o monstro e deixou que os próprios grupos de ex-amigos se matassem, ele apenas assistiria até com o desfecho se regozijar.



  A guerreira, agora vista como canalha, ignorante, que não via a história da batalha e cada verdade absoluta que cada um defendia no fio da navalha, estava cada vez mais só, com poucos guerreiros ainda combatendo o monstro em vez dos companheiros de batalha. Acontece que o cansaço também ilude, é a paixão do corpo pelo repouso necessário. Vendo companheiros defenderem sua cabeça preferida, radicalizaram e defenderam as próprias, eliminando o último apoio com que contava a guerreira já combalida.



  A dor da decepção era maior do que as feridas, que já não cicatrizavam direito. Não tinha mais esperanças de vencer o monstro, embora ainda lutasse e tentasse chegar ao corpo escondido sob cadáveres e armaduras mastigadas, dando à ilusão mais efeito. Cada um culpava as outras cabeças e aos ex-companheiros pela carnificina, pelas mortes dos bravos que tombaram longe de seus leitos.



  Mesmo os que tão sábios pareciam, agora defendiam o monstro, guiando cada cabeça aos que n’outras ora montavam, como se fossem os antigos companheiros o monstro contra o qual de início se jogavam. As lágrimas da guerreira se misturavam ao sangue que escorria em profusão, ela já exaurida da luta ingrata e desgastada pela dor no coração. Sabia que morreria na boca de uma das cabeças, cedo ou tarde a morte horrível a abateria e seria mais um cadáver no monte, mas não pararia de lutar até que desfaleça.



  O golpe veio. Guiada por um companheiro cego de compaixão pelo monstro selvagem, uma cabeça mordeu sua coxa e a levantou no ar, ela já sem forças para gritar, e outra veio ao seu tronco, a cabeça abocanhada por outra, os braços então arrancados e, antes que se dessem conta, não sobrou um osso sequer para acrescentar ao monte. Não fazia mais diferença. O monstro saiu debaixo dos corpos em decomposição, os guerreiros só se importavam com as outras cabeças, não viam o monstro caminhar para a fossa sem fundo.



  O tirano estava feliz, conseguiu mais do que queria, estenderia seu reinado mordaz até onde a morte natural lhe permitiria. Pra ela a morte, mesmo horrorosa, foi um alívio.

08/04/2016

A Terra gira e se move

 Hipótese 1

  Imaginem-se em um ônibus a 120km/h. A velocidade está estabilizada e as correntes de ar que entram, são suficiente apenas para ventilar e refrescar o interior. Não há curvas significativas, o piso é bem uniforme e os ventos laterais são desprezíveis. Lá dentro há entretenimento e o ambiente é agradável, a ponto de os passageiros se esquecerem que estão em movimento.

  Um desses passageiros deixa cair seu celular. O que vai acontecer? O celular vai se espatifar no fundo do ônibus? Não, o aparelho vai cair verticalmente. O facto de o ônibus estar em movimento, não significa que um corpo solto vá colidir a 120km/h com o fundo do veículo. A possibilidade de ir para trás existia até o momento em que ele estabilizou a velocidade, quando cessou a aceleração. A partir desse momento, tudo nele estava com velocidade relativa zero, portanto o celular não vai senão para baixo. Podem fazer o teste.

Hipótese 2

  Uma banhista na praia observa um navio cargueiro se afastar, indo para mar aberto. Ela está em uma pedra alta, o que elimina a obstrução da visão por pequenas embarcações. O mar está calmo, o dia ensolarado, há pouco vento e, sob um guarda sol, ela pode se concentrar em seu entretenimento, com sua câmera, para depois mostrar aos amigos.

  O navio fica menor a medida em que se afasta, mas até quando? Vai simplesmente encolher até desaparecer como um pontinho no oceano liso e plano? Não. Como todos os moradores de cidades portuárias sabem há milênios, o navio vai parecer subir ao horizonte até certo ponto, depois ele vai parecer submergir no mar. Isso acontece simplesmente porque a massa descomunal de água do mar, acompanha por gravidade a curvatura do planeta. Isso acontece em qualquer parte do mundo. Podem fazer o teste, e levem um bloqueador solar.

Hipótese 3

  O morador da cobertura de  um arranha céu, em uma metrópole no interior de um país de grande extensão territorial, observa e photographa os arredores com um bom telescópio acoplado a uma boa câmera. O dia está claro, poucas nuvens no céu, vento moderado, temperatura agradável e nenhum edifício obstrui a actividade do cidadão. Ele pode passar o tempo que quiser em seu hobby.

  Até onde ele vai enxergar? Com um aparelho suficientemente potente, ele enxergaria, da América, o Japão? Não, ele não enxergaria, não importa o quanto sua aparelhagem fosse potente e precisa. Ele enxergaria muito longe de uma cobertura muito alta e com uma aparelhagem muito boa, mas só até onde o horizonte terminasse. Por que? Por causa da curvatura da Terra. Qualquer um que tenha subido mais de cem metros já a viu. e não adiantaria argumentar que seria por causa da lente ou uma aberração causada pela altitude, porque os elementos da paisagem não são deformados só por se subir muito. Podem fazer o teste.

Hipótese 4

  Um internauta manda por redes sociais, um belo e festivo "bom dia" para todos os contactos espalhados pelo mundo. Considerando aqui que todos estão ao computador, mesmo que só por uns instantes, que as velocidades de conexão em todos sejam bem próximas e todos recebam praticamente ao mesmo tempo a mensagem.

  Estão todos tendo um bom dia, mesmo que nenhum tenha passado por revezes significativos desde que acordou? Não, na verdade boa parte está tendo uma boa tarde e outra está em uma boa noite. Por que? Porque a Terra é mais ou menos redonda, o Sol não ilumina todos os lugares da mesma forma e ao mesmo tempo. É por isso que Sidney já almoça os restos da ceia, quando nós damos "feliz ano novo". Nem precisa ir para o outro lado do mundo, basta um americano se conectar com um europeu e as diferenças de fuso já serão muito claras. Podem fazer o teste.

Hipótese 5

  Um paulista sai do bairro Pinheiros e vai passar o natal com uma amiga em Rochester, no interior do Estado de Nova Iorque. Aqui é verão tórrido, com o termômetro, em alguns lugares, marcando os já comuns 50°C da alta estação. Nenhuma aberração climática seria considerada nesta viagem, as massas de ar se comportariam como em todos os anos e as temperaturas seriam previsíveis.

  Ele deve levar trajes de banho e roupas leves, para aproveitar a praia e passear por Manhattan, enquanto saboreia um sorvete? Não. Como qualquer viajante sabe, e os noticiários repetem todos os anos, as estações são invertidas nos hemisférios norte e sul. Enquanto nós somos cozidos no vapor, o povo do norte experimenta a prévia da próxima era glacial. Por que? Porque a Terra é arredondada e, não só isso, também oscila em seu eixo. Não é só girar e translar, ela expõe por três meses um dos hemisférios mais do que o outro ao sol. É por isso que ele, no decorrer do ano, muda seu caminho do nascente ao poente, e a sombra do meio-dia aponta sempre para onde é verão. Usem a internet, vejam por uma câmera de tempo real em outro hemisfério e verão o que digo. Podem fazer o teste.

Os comentários

  Por tudo isso um avião que saia de Teerã. não pode ficar parado no ar, esperando que Pequim gire até ele, pois decolou de uma mesma base em movimento que suporta seu destino. A não ser que uma nave vá para o espaço, fuja da gravidade terrestre e consiga se desvencilhar do movimento circular de onde partiu, a tripulação não verá Pequim passando diante de seus olhos. O que aqui está, como aqui se comporta. Nasceu em um mundo girante e com ele está girando, é este o estado de repouso de tudo o que nasce ou é construído na Terra.

  À margem da facilidade moderna, cada vez maior, em se conferir tudo o que eu disse, muita gente está se apegando a dogmas obsoletos e facilmente desmentíveis, só para não ferir sua fé. Foi-se o tempo em que era preciso ser rico para fazer uma viagem, e põe tempo nisso, há mais de um século se viaja a lazer. Mesmo assim, com as coisas acontecendo diante dos olhos, muita gente prefere ter certezas absolutas em cima de hipóteses que quem as formulou não tinha como provar.

  Sabem o "Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará"? Eles não. Têm medo de conhecer a verdade e ir para o inferno.

01/04/2016

A viagem bem aproveitada




  Um peregrino entrou em uma caverna, para um repouso no fim da tarde. Estava em viagem, uma longa viagem. Contrariando o que se aceitaria como lógico em pleno século XXI, saiu sem celular, sem GPS, sem carro, sem estradas, sem absolutamente nada que não fosse essencial. Desceu em Dublin, deixou seus amigos avisados e saiu pela Irlanda. Há três dias estava no caminho, não importa qual era, era um caminho, o que se abriu à sua frente no decorrer da caminhada.

  Trazia alguns Euros, para eventualidades, só o suficiente para emergências e subsistência, caso não encontrasse alimentos ou pousada. Até o momento, encontrou tudo de que precisa, tudo mesmo; frutas pelo caminho, um pequeno peixe que ainda supre suas necessidades proteicas, árvores, construções abandonadas e grutas em que se abrigou sempre que necessário.

  Mas o principal, o absolutamente importante: Trouxe a si mesmo para a viagem. O ego servindo de pedestal, em vez de busto, susteve até agora o sagrado silêncio que lhe permitiu ouvir os próprios pensamentos, distinguir os seus dos invasores, selecionar quais dos seus mereciam continuar e calar a todos quando não precisasse deles. Sem querer, do mesmo modo como iniciou a jornada, entrou em profundo estado meditativo, enquanto apreciava a riquíssima paisagem e se dava conta do próprio corpo.

  Aquela caverna veio, como tudo mais nesta aventura, no momento certo e no tamanho certo; nem mais, nem menos. Apreciando o silêncio e a escuridão em progresso, viu uma pequena lanterna acesa, no fundo da caverna. Não se pergunta como foi parar lá e nem por que não a notara antes. Uma lanterna de latão, quadrada, com vidros redondos verde, amarelo, azul e vermelho, incrustados nas lentes de cristal que, de tão transparentes, eram quase invisíveis.

  Ele pegou a fonte de luz e a colocou na pedra mais alta da caverna, isso iluminou tudo ao redor e produziu uma boa sombra à qual poderia dormir sem problemas. Desceu da lâmpada que, sabe-se lá que combustível mantinha acesa, tinha odores de relva fresca e flores campestres, um vapor perfumado de cor violeta. O vapor tomou a forma de uma dama seminua, de aspecto lânguido, coberta apenas no busto e na pélvis por um tecido dourado extremamente fino, mas opaco, caído sobre o ombro direito, dando a volta por trás, pela cintura e caindo na frente. Também não se perguntou como aquele tecido se mantinha preso ao corpo da figura. A dama ruiva láctea de feições delicadas se dirigiu a ele...

- Colocaste meu lar onde deveria estar, quando antes se encontrava esquecido no canto mais negligente deste abrigo.
- Luz escondida não ilumina.
- Como gratidão, te concedo três desejos.
- Por quê?
- Porque fizeste o que todos os outros deveriam ter feito.
- E o que fizeram?
- Tentaram levar a lanterna e guardá-la só para si, me obrigando a trazê-la de volta inúmeras vezes no decorrer de milênios.
- Eu não me preocupei em ter recompensas, o que fiz foi o que deveria ter sido feito.
- Mas eu preciso te conceder os desejos.
- Serás punida se não o fizeres?
- Sim, por minha consciência. É a minha razão de existir.
- E se eu não tiver desejos, senhorita...
- Nerthus. É como me evocam pelas cartas. Não precisa ser um desejo, basta uma ordem.

  Ele a observa de coração tranqüilo, já sem os pensamentos do mundo a atrapalhar suas conclusões. O aspecto de delicadeza, percebeu, era enganoso. Na ausência de desejos, mas sem querer causar mal, e evitar que ela voltasse a ter o trabalho de resgatar sua lanterna, pede apenas sua companhia nesta jornada...

- Só isso?
- Se é tua consciência que te impele a realizar desejos, então a minha acolhe teu desejo de ser útil. Se respeitares a necessidade de momentos de silêncio e meditação, me acompanhe até o fim da viagem.
- Te acompanharei até o fim de tua jornada. Até onde pretendes ir, por curiosidade?
- Até o fim. Onde ele está eu não sei, mas chegarei lá.
- Sim, claro – responde sorrido. O segundo desejo, meu senhor?
- Não sou senhor de minhas companhias, sou companheiro delas. Tento ser senhor de mim, mas só conseguirei com o tempo e ninguém pode fazer isso por mim.
- Posso ajudar-te – disse sorridente, já com uma túnica de seda sob a faixa dourada. Se precisares de luz, em tuas dúvidas, eu a lançarei.
- Só preciso do respeito que tenho aprendido a ter por mim mesmo. Se me respeitares, sem medo de me fazer uma pergunta que tiveres, a segunda vontade está concedida.

  A figura volita ascendendo lentamente, feliz, com as mãos juntas ao queixo, então voa rapidamente em evoluções complexas que, percebe o viajante, formam padrões típicos da cultura irlandesa. Ela não está simplesmente externando sua alegria, está construindo algo. Pousa suavemente, já em um longo vestido com busto à mostra e uma cinta dourada com uma faixa pendente. Cinta, bordas das mangas e gola em tons de dourado, com motivos irlandeses enfeitando toda a sua extensão...

- Te acompanharei em teus termos, meu amigo. Aceitarei tua companhia como aceitaste a minha. Agora, então, qual o teu último pedido? A força para realizar tudo o que sonhas lhe será dada.
- Meus sonhos são minha responsabilidade, não posso te privar dos teus em prol deles. Seria te empurrar problemas que não lhe cabem, compreendes?
- Não sejas tão duro consigo estrangeiro. Vens do novo mundo, percebo pelo excesso de autocrítica. Vocês fazem pilhérias para parecerem felizes, apenas pela necessidade de adoçar o fardo que levam. Vamos, a misericórdia que pregam não funciona, meu amigo, porque vocês não se incluem nela. Peça, isso me fará feliz!
- Com essa personalidade agridoce e tamanho conhecimento do âmago humano, imagino que tenhas muita sabedoria.
- Sou mais antiga do que a humanidade, eu precedo as nações e toda a cultura. O que sou é resultado do que aprendi até vocês se exilarem neste mundo. Vamos, faça-me feliz, permita-me ajudar em tua jornada com o último pedido.
- Se desejas ajudar-me, então já fizeste por mim o meu último pedido, sábia Nerthus.
  Flores de todas as cores agora enfeitam seus cabelos e formam uma coroa na cabeça da figura. Está tão feliz que não cabe em si e o perfume floral vai além dos limites da caverna. Os pedidos egoístas, os desejos baixos e as vontades pueris deram lugar a uma noite de sensatez...
- Meu amigo, tu selaste teu destino. Vais ouvir minhas broncas, reprimendas e advertências pelo resto de tuas vidas. Não me quiseste como tua, agora sou contigo. Não quiseste algo para preencher teus vazios, agora te darei trabalho para tu mesmo o fazeres. Não aproveitaste o ensejo para um último porre, agora te manterei sóbrio pelo resto de tua jornada, que advirto, será mais longa do que os dias de teus passos. Não és dono de minha lanterna, mas te entrego-a como sinal de nossa aliança e início de nossa jornada conjunta. Agora acorde, tens sonhos a realizar e disseminar pelo mundo.

  Ele acorda na cama do hotel. Não se lembra de como chegou lá, lembra-se de ter entrado na caverna e adormecido, então o sonho e é só. Os amigos chegam, perguntando por si e a portaria informa. Eles sobem, gabam-se e o repreendem por ter se ausentado por uma semana sem dar notícias. Enumeram as diversões, os prazeres, os micos e os selfies de que ele não usufruiu. Ele ouve, observa, suspira e responde...

- Pois não era para aproveitar a vida à nossa maneira que viemos?
- Só! A gente curtiu, você não.
- Quem disse, falastrão? Acaso estavas ao meu lado, na jornada que empreendi?
- Véi, que jeito é esse de falar? Fumou o quê?
- Eu aproveitei a minha vida à minha maneira. Fico feliz por vocês, não me importo por terem levado metade dos mil Euros que eu trouxe, afinal vocês precisaram deles, eu não. Vamos comer, temos um vôo (com circunflexo) para o Rio de Janeiro à tarde.
- Valeu pela grana, mas que tu tá esquisitaço, tu tá!

  No hall, após acertarem a estadia, e o peregrino agradecer em gaélico pela acolhida, o gerente pede um favor. Há uma moça que vai para o Brasil, para seu doutorado em botânica, e o amigo lhe pareceu confiável. Os seis olham para uma jovem ruiva de vestido branco, fino, com um cinto dourado, sentada na poltrona, com uma lanterna estranha...

- Eu disse que não te deixaria mais. Pode ser nesta mesma forma?
- Decerto, minha amiga.
- Chame-me de Enya Nerthus. E já advirto que te trarei de volta à Irlanda, ao fim dos estudos.
- Por que – pergunta sorrindo.
- Porque sou tua companheira e quero o melhor para ti. Dá para nos casarmos antes do vôo.

Os cinco vêem incrédulos aquele monumento de mulher se agarrar, enquanto sussurra, ao amigo que teria perdido tudo o que vieram aproveitar na Irlanda. Agora notam que ninguém aproveitou mais do que ele, e sem gastar um centavo sequer.