Era um grupo
grande de bravos guerreiros, nem sempre ordeiros, mas entre suas diferenças
normais, permitiam florescer a motivação maior da peleja a que se atiravam,
contra o tirano voraz. Tinha o tirano um monstro de mil cabeças, nenhum cérebro
decerto, mas que sabia recitar em versos convenientes o que cada guerreiro
deixava de seus corações ir às mentes.
O monstro,
escondendo-se por detrás de seus cadáveres, parecia ser muitos, atacando por
todos os lados os valentes que se mantinham juntos. O tempo dedicado às
batalhas cotidianas, com a subjectividade inerente a cada ser humano, fazia
cada um crer que a cabeça que combatia era o monstro mais feroz, os outros
pareciam ser mais mansos, alguns até com bonecos de pano.
O monstro, guiado
por seu mestre, ciente da divisão que se avizinhava, fazia cada cabeça cantar o
que a cada um mais agradava. Enquanto dilacerava o companheiro, a outro soldado
fazia-se parecer ter intento nobre e verdadeiro. Cada um, indignado pela
agressão a criatura tão gentil e delicada, bradava aos outros para cessarem e
irem ajudar na luta contra a verdadeira fera amaldiçoada.
Uma guerreira
notava, porém, que cada cabeça ferida fazia com que as outras também sofressem,
como se aqueles aparentados de um réptil fossem membros de uma só hidra. Teste
feito em uma fera que sangrava, cravando a alabarda e decapitando o monstro,
viu as outras cabeças gemerem, cessando momentaneamente a cantoria malograda.
Foi detida,
repreendida pelos que defendiam aquela cabeça decepada, sem perceberem que
outra brotava do pescoço que não mais sangrava. Explicou ela, em uma pausa
perigosa, o que constactou com o feito e alertou, eram cabeças de um só
monstro, conforme observou em aventura exitosa. Riram dela. Cada um dizia o que
realmente teria acontecido, que observasse a história da batalha em curso, pois
estaria cega ou teria enlouquecido.
Enquanto paravam
para discutir, a discórdia crescia, o monstro se aproveitava para devorar os
distraídos, jogando os restos o monte dos há muito abatidos. Alguns voltaram à
luta, vendo a falta de companheiros, mas sempre tendo em mente que encantos em
versos eram verdadeiros.
A guerreira, abatida
pela incompreensão, já sem o crédito que tinha de início de seu batalhão,
jogou-se à luta cuidando para não ferir outros guerreiros. Tarefa difícil,
sempre aparecia um a defender sua cabeça de estimação, esta o mordia e
envenenava, recaindo a culpa sobre a guerreira que viram em ação.
Com o tempo e o
cansaço, delírios de verdades absolutas vinham às mentes dos que se deixaram
encantar, e a guerreira ficava cada vez mais só, com duas, três ou até mais
cabeças para enfrentar. Com desgosto via ela companheiros montarem em suas
cabeças preferidas e atacarem os companheiros, que agora eram traidores
covardes das boas intenções que cada um defendia. O tirano ria com prazer da
divisão que plantou com paciência e agora via crescer. Parou de controlar o
monstro e deixou que os próprios grupos de ex-amigos se matassem, ele apenas
assistiria até com o desfecho se regozijar.
A guerreira, agora
vista como canalha, ignorante, que não via a história da batalha e cada verdade
absoluta que cada um defendia no fio da navalha, estava cada vez mais só, com
poucos guerreiros ainda combatendo o monstro em vez dos companheiros de
batalha. Acontece que o cansaço também ilude, é a paixão do corpo pelo repouso
necessário. Vendo companheiros defenderem sua cabeça preferida, radicalizaram e
defenderam as próprias, eliminando o último apoio com que contava a guerreira
já combalida.
A dor da decepção
era maior do que as feridas, que já não cicatrizavam direito. Não tinha mais
esperanças de vencer o monstro, embora ainda lutasse e tentasse chegar ao corpo
escondido sob cadáveres e armaduras mastigadas, dando à ilusão mais efeito.
Cada um culpava as outras cabeças e aos ex-companheiros pela carnificina, pelas
mortes dos bravos que tombaram longe de seus leitos.
Mesmo os que tão
sábios pareciam, agora defendiam o monstro, guiando cada cabeça aos que n’outras
ora montavam, como se fossem os antigos companheiros o monstro contra o qual de
início se jogavam. As lágrimas da guerreira se misturavam ao sangue que
escorria em profusão, ela já exaurida da luta ingrata e desgastada pela dor no
coração. Sabia que morreria na boca de uma das cabeças, cedo ou tarde a morte
horrível a abateria e seria mais um cadáver no monte, mas não pararia de lutar
até que desfaleça.
O golpe veio. Guiada
por um companheiro cego de compaixão pelo monstro selvagem, uma cabeça mordeu
sua coxa e a levantou no ar, ela já sem forças para gritar, e outra veio ao seu
tronco, a cabeça abocanhada por outra, os braços então arrancados e, antes que
se dessem conta, não sobrou um osso sequer para acrescentar ao monte. Não fazia
mais diferença. O monstro saiu debaixo dos corpos em decomposição, os
guerreiros só se importavam com as outras cabeças, não viam o monstro caminhar
para a fossa sem fundo.
O tirano estava
feliz, conseguiu mais do que queria, estenderia seu reinado mordaz até onde a
morte natural lhe permitiria. Pra ela a morte, mesmo horrorosa, foi um alívio.
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