26/04/2016

A guerreira, o tirano e as mil cabeças do mal





    Era um grupo grande de bravos guerreiros, nem sempre ordeiros, mas entre suas diferenças normais, permitiam florescer a motivação maior da peleja a que se atiravam, contra o tirano voraz. Tinha o tirano um monstro de mil cabeças, nenhum cérebro decerto, mas que sabia recitar em versos convenientes o que cada guerreiro deixava de seus corações ir às mentes.



  O monstro, escondendo-se por detrás de seus cadáveres, parecia ser muitos, atacando por todos os lados os valentes que se mantinham juntos. O tempo dedicado às batalhas cotidianas, com a subjectividade inerente a cada ser humano, fazia cada um crer que a cabeça que combatia era o monstro mais feroz, os outros pareciam ser mais mansos, alguns até com bonecos de pano.



  O monstro, guiado por seu mestre, ciente da divisão que se avizinhava, fazia cada cabeça cantar o que a cada um mais agradava. Enquanto dilacerava o companheiro, a outro soldado fazia-se parecer ter intento nobre e verdadeiro. Cada um, indignado pela agressão a criatura tão gentil e delicada, bradava aos outros para cessarem e irem ajudar na luta contra a verdadeira fera amaldiçoada.



  Uma guerreira notava, porém, que cada cabeça ferida fazia com que as outras também sofressem, como se aqueles aparentados de um réptil fossem membros de uma só hidra. Teste feito em uma fera que sangrava, cravando a alabarda e decapitando o monstro, viu as outras cabeças gemerem, cessando momentaneamente a cantoria malograda.



  Foi detida, repreendida pelos que defendiam aquela cabeça decepada, sem perceberem que outra brotava do pescoço que não mais sangrava. Explicou ela, em uma pausa perigosa, o que constactou com o feito e alertou, eram cabeças de um só monstro, conforme observou em aventura exitosa. Riram dela. Cada um dizia o que realmente teria acontecido, que observasse a história da batalha em curso, pois estaria cega ou teria enlouquecido.



  Enquanto paravam para discutir, a discórdia crescia, o monstro se aproveitava para devorar os distraídos, jogando os restos o monte dos há muito abatidos. Alguns voltaram à luta, vendo a falta de companheiros, mas sempre tendo em mente que encantos em versos eram verdadeiros.



  A guerreira, abatida pela incompreensão, já sem o crédito que tinha de início de seu batalhão, jogou-se à luta cuidando para não ferir outros guerreiros. Tarefa difícil, sempre aparecia um a defender sua cabeça de estimação, esta o mordia e envenenava, recaindo a culpa sobre a guerreira que viram em ação.



  Com o tempo e o cansaço, delírios de verdades absolutas vinham às mentes dos que se deixaram encantar, e a guerreira ficava cada vez mais só, com duas, três ou até mais cabeças para enfrentar. Com desgosto via ela companheiros montarem em suas cabeças preferidas e atacarem os companheiros, que agora eram traidores covardes das boas intenções que cada um defendia. O tirano ria com prazer da divisão que plantou com paciência e agora via crescer. Parou de controlar o monstro e deixou que os próprios grupos de ex-amigos se matassem, ele apenas assistiria até com o desfecho se regozijar.



  A guerreira, agora vista como canalha, ignorante, que não via a história da batalha e cada verdade absoluta que cada um defendia no fio da navalha, estava cada vez mais só, com poucos guerreiros ainda combatendo o monstro em vez dos companheiros de batalha. Acontece que o cansaço também ilude, é a paixão do corpo pelo repouso necessário. Vendo companheiros defenderem sua cabeça preferida, radicalizaram e defenderam as próprias, eliminando o último apoio com que contava a guerreira já combalida.



  A dor da decepção era maior do que as feridas, que já não cicatrizavam direito. Não tinha mais esperanças de vencer o monstro, embora ainda lutasse e tentasse chegar ao corpo escondido sob cadáveres e armaduras mastigadas, dando à ilusão mais efeito. Cada um culpava as outras cabeças e aos ex-companheiros pela carnificina, pelas mortes dos bravos que tombaram longe de seus leitos.



  Mesmo os que tão sábios pareciam, agora defendiam o monstro, guiando cada cabeça aos que n’outras ora montavam, como se fossem os antigos companheiros o monstro contra o qual de início se jogavam. As lágrimas da guerreira se misturavam ao sangue que escorria em profusão, ela já exaurida da luta ingrata e desgastada pela dor no coração. Sabia que morreria na boca de uma das cabeças, cedo ou tarde a morte horrível a abateria e seria mais um cadáver no monte, mas não pararia de lutar até que desfaleça.



  O golpe veio. Guiada por um companheiro cego de compaixão pelo monstro selvagem, uma cabeça mordeu sua coxa e a levantou no ar, ela já sem forças para gritar, e outra veio ao seu tronco, a cabeça abocanhada por outra, os braços então arrancados e, antes que se dessem conta, não sobrou um osso sequer para acrescentar ao monte. Não fazia mais diferença. O monstro saiu debaixo dos corpos em decomposição, os guerreiros só se importavam com as outras cabeças, não viam o monstro caminhar para a fossa sem fundo.



  O tirano estava feliz, conseguiu mais do que queria, estenderia seu reinado mordaz até onde a morte natural lhe permitiria. Pra ela a morte, mesmo horrorosa, foi um alívio.

Nenhum comentário: