31/01/2009

Geração despreparada

Ok, é proibido reprovar. Ainda que o sujeito erre o alvo, ao se atirar ao chão, ele tem que ser aprovado, senão fica com traumas retóricos politicamente incorrectos. E ai de quem der menos de cinco se ele só assinar a prova e entregá-la vazia.
Também tem que agüentar xingamento. O aluno precisa se expressar livre irrestritamente, ainda que que o professor saia da sala de aula com hematomas. E se o pivete te chamar para transar, a culpa é sua. Quem mandou usar saias acima da unha do pé e decote abaixo do queixo?

O trombadinha trouxe uma arma para dentro da sala? É tudo uma questão sócio cultural antropológica de um sistema injusto e segregador, que aliena as massas e desprotege o indivíduo, obrigando cada um a se virar como pode, então cala a boca senão leva chumbo.

Que foi, bem? Não gostou? Então vá trabalhar noutra profissão. Os demagogos que aprovaram as barbáries supra citadas precisam dos votos da juventude.

O que eu escrevi acima não é piada. A pretexto de gerar inclusão e poupar os alunos de frustrações, as escolas públicas (e muitas particulares) se transformaram em circos. Trabalhei em escolas, tenho parentes que trabalharam em escolas, sou amigos de professores e conheço a tragédia de perto.

Eu sou plenamente a favor de estimular e recompensar os alunos. Estímulo e recompensa é um factor básico para o aprendizado. Mas não é, ao contrário do que as propagandas oficiais tentam passar, o que está acontecendo.

Os alunos não estão recebendo estímulos, estão sendo carregados nas costas. Gente que mal sabe desenhar o próprio nome vai para a quinta série. Alguns deles mal abriram os livros ao longo de toda a vida escolar, certos de que serão recompensados assim mesmo. O professor lá na frente, tentando expor um mínimo de conteúdo, derrepente alguém lá atrás liga o som no último volume e faz ameaças a quem tentar interferir. Pronto, a sala de aula virou um baile funk, com toda a permissividade inerente.

Ei, isto não é uma situação hipotética. Isto está acontecendo nas escolas. Não hoje, sábado, mas está acontecendo de segunda à sexta.

Eu trabalhei por dois anos em um colégio estadual. Quando entrei, era o que descrevi acima, contando inclusive com tráfico de drogas; cocaína, maconha, cigarros, cedê de funk, de axé, revistas de fofoca e outras barras pesadas. Certa feita, a directora conseguiu alguma proteção policial e me autorizou a firmar o pulso. Nunca mais deixei ninguém entrar atrasado sem justificativa, ninguém ficava à entrada durante as aulas, eu dava bronca por mau comportamento sem dó, mas com critério. Resultado: a média que suava para se manter nos 4,5 passou para 6,5 sem empurrismos. Os alunos que ficaram tinham tranqüilidade para chegar no fim da tarde e começar a jornada de estudos, sair ao intervalo sem medo de briga de facas ou mesmo uma bala na testa.

Mas não foi um mar de rosas. Foi quando recebi minha primeira ameaça de morte, de um ex-aluno traficante. Ah, a primeira ameaça a gente nunca esquece, depois vai perdendo a graça e fica muito banal. Alunos que farreavam ao portão e não deixei entrar, chegaram a jogar pedras na escola. Algumas vezes se aproveitavam da vulnerabilidade da rede eléctrica pública, jogando barras de ferro nos fios e causando curtos, deixando o bairro inteiro (cheio de clínicas e hospitais) às escuras, obrigando ao encerramento precoce das aulas da noite. Foram dois anos de luta, de descaso dos pais, de pressão da secretaria sem educação para emburrecer os garotos. Mas enquanto a nossa equipe lá estava, aquilo era uma escola de verdade, com alunos, professores e funcionários já se respeitando na medida do razoável.

Não, eu nunca bati em alunos, não usei palmatória e não tranquei ninguém na solitária. Mas a experiência confirmou o que eu já acreditava, crianças precisam de limites, de pulso firme, de reconhecer a autoridade e a hierarquia, pois elas existem no mundo real e são implacáveis. Se um sujeito tratar o chefe como trata o professor, na primeira frase já leva o pé na bunda, é rua com justa causa. Pergunte aos teus avós se eles foram infelizes por não terem esfaqueado um professor, quem conhece e reconhece os próprios limites sabe aproveitá-los.

Não sou a favor de castigos, punições, vexamentos nem qualquer gerador de traumas desnecessários. Me indigna ver gerações inteiras sendo enganadas por pedabobos biônicos, que só visam o lucro dos chefes ou seus vôos políticos. Gente com muita capacidade sendo legada ao ócio das conquistas fáceis e sem méritos, que assim passa a usar essa capacidade ociosa na busca de sensações cada vez mais intensas, mas totalmente sem significado, gerando o círculo vicioso da delinqüência mesmo em jovens abastados. Estes pensam que não têm o que temer, os mais carentes pensam que não têm o que perder. Mas têm. Não entrarei nos méritos da espiritualidade, me aterei ao mundo material. Eles só vêem que tinham o que perder ou temer, quando sentem a vida esvaindo e se desesperam à foice da morte iminente. Então papai e mamãe não podem mais ajudar.

Aliás, engana-se quem pensa que o problema é de escolas públicas. Uma amiga era professora de uma dessas "unimoney" da vida, na faculdade de pharmácia. A pressão da directoria sobre os professores é desumana, para qualquer situação dão razão ao matriculado, já que aluno mesmo a maioria não é. Certa feita, ela ameaçou suspender um filhinho de papai (idiota, que não terá a quem deixar as empresas) e ele respondeu "Então me dá logo duas semanas que eu viajo pra Europa". Se lixando, assim como as Secretarias sem Educação, para o aprendizado, a universidade deu razão ao turista que pagava as mensalidades. O salário era bom, mas não compensou o desgaste e os prejuízos que ela, pharmacêutica, prognosticou com precisão. Não sei vocês, mas me preocupa saber que esses retardados vão atender pacientes e fazer cirurgias.

Então entram em cena as escolas militares. Lá a pedabobice empurrista não entra, lá aluno não ofende nem agride professor, lá quem quer estudar consegue estudar. Propaganda? Não, absolutamente. Apenas afirmo o que minha experiência comprovou: a criança que aprende de seus limites, de respeito ao próximo, de disciplina, de noções de autoridade e hierarquia se desenvolvem muito melhor. Disciplina, Autoridade e Hierarquia são basais para qualquer civilização. E pasmem, marxistazinhos de boutique, os alunos dessas escolas são felizes, os pais fazem fila para tentar uma vaga ao menos para um de seus pimpolhos, e eles respeitam sim a legislação vigente para menores de idade. Digo o mesmíssimo para as escolas católicas. Não me alinho muito com o catolicismo, mas não existem escolas melhores do que os caros colégios católicos, como o Santa Clara, que ilustra o texto. Maria Cristina, de quem tanto falo, estudou em um colégio católico, nem por isso virou uma carola fanática e irascível. Pelo contrário, é mais alegre e jovial do que a maioria das adolescentes.

E onde entram os pais nesta muvuca? Entram na base. De pouco adianta ter excelentes professores, uma estrutura de primeiro mundo, horário integral e tudo mais, se os panacas simplesmente dizem "Vê o que cêis faiz pra nóis aí", quando são chamados a responder pelos filhos. Se os genitores não dão a mínima, mesmo o colégio mais completo e rigoroso pouco pode fazer, além de lamentar e tentar preparar o aluno para a deficiência que fatalmente enfrentará.

Aliás, internautas que sabem ler em português, deficiência é um elogio para o que eu conheço do sistema de educação de hoje. Dão a entender que estão se lixando se o mundo desmoronar em quinze anos, por falta de animais raciocinantes para sustentá-lo. Eu vejo sim é o surgimento de uma sociedade de castas: os pensantes e os ruminantes, estes a imensa maioria. Não uma separação meramente protocolar, mas simplesmente porque os dois grupos não vão conseguir se comunicar a contento, tampouco um conseguirá viver no ambiente do outro por mais que umas horas por dia. Isto, queridos alunos, já está acontecendo. Não é uma projeção sombria e pessimista, eu já vejo isto, em menor escala, no meu cotidiano. Gente que olha para as letras dos jornais e não consegue ler mais que umas poucas palavras mais familiares, para depois se prender às imagens para compreender o que se passa. Tevê, claro. Mas só entretenimento, tanto melhor quanto mais baixo o calão, que tentar compreender os motivos não faz parte da alçada. Eu, me perdoem que gosta, descobri ontem que não consigo mais ficar além de dois minutos seguidos diante daquele aparelho, salvo raras exceções. Sim, isto pode parecer pedante, que estou me colocando deliberadamente na casta dos pensantes, mas se assim não fosse eu não estaria levantando a questão.

Quando D'us me conceder o direito à paternidade, que esperneiem os pedabobos alienados, mas educarei meus petizes em casa, com todo o rigor e todo o carinho de que necessita uma criança. Decerto que enfrentarão alguma impopularidade, mas não deixarei meus rebentos à mercê da estupidificação massificada em que se transformaram as escolas. Isto, lamento, provavelmente inclui a dos teus filhos.

24/01/2009

Eu não vi. Já acabou?

Eu não vi a última novela. Não que não tenha dado uma olhada para ver se valia a minha audiência, eu dei uma olhada e por isso decidi que não valia. Não vou entrar em pormenores, mas aquela trama da Clara com a Dounatelha me soou um grande engodo.
Eu não vi o bbb. O BB já me dá dores de cabeças que bastam, não preciso de mais um "b", nem de gente tentando me convencer de que eu preciso aumentar a conta telephônica para ouvir o que eles falam. As maledicências que eu leio aqui me dão uma idéia do que não estou perdendo, de um modo muito mais aprazível do que ter que assistir.

Eu não revi Pantanal, não vi nem quando era na Manchete. Bicho, eu acordo cedo, trabalho num lugar melindroso com uma responsabilidade muitas vezes maior do que o meu salário. Eu saio de casa às 06h, tenho que dormir cedo e acordar com a cuca fresca.

Também não vi a noveleca dos mutantes mutretas, nem programas onde famílias expõe seus podres para o mundo inteiro. Meus neurônios ameaçaram executar uma apoptose coletiva se eu o fizesse. Ainda se tivessem baseado a novela nos quadrinhos da Marvel.

Eu não vi as notícias do marido daquela actriz veterana, que foi suicidado. Da mesma forma como não vejo notícias de gente que tenta anunciar desesperadamente que fez uma lipo na semana passada, mas ninguém soube.

Eu não vi nenhum especial de natal de nenhuma rede. O fim de ano não foi bom para mim e quase tudo o que mostram eu sei de cór e salteado, só trocaram os artistas por canastrões famosos. Nem tem mais Zé Colméia ou a turma do Charlie Brown e Snoopy.

Eu não vi o último lata velha. Aliás, faz tempo que não vejo. Tudo ficou tão repetitivo e as transformações me parecem tão tolas (como portas com abertura canivete em um Del Rey) que não merece mais minha audiência. Mas sou minoria, eu não conto. Fala, injeção eletrônica e outras cousas úteis não poderiam entrar no cardápio?

Todo mundo comenta do casamento da Sandy, mas eu não quero saber, mas o povo insiste em me contar mesmo assim. Eu não vi, não me interessa. Disseram até que o noivo blogou em plena lua de mel, o que me arrancou risos, mas simplesmente não me interessa.

Algumas emissoras demitiram em massa, no último Dezembro. Disso fiquei sabendo, mas ninguém noticiou.

A General Motors do Brasil está, praticamente, sustentando a matriz. Disso fiquei sabendo, mas ninguém comenta, mesmo sabendo que o assunto me interessa.

Uma tradicional fábrica de desinfetantes em Goiás fechou, mas agora está fabricando clandestinamente, passou a perna nos funcionários e tudo mais. Eu trabalho em uma Vigilância Sanitária, sei disso, mas ninguém fala a respeito. Deve ser porque água sanitária não rebola na tevê.

Eu não quero ofender, mas às vezes é inevitável. Quem me conhece sabe o quanto eu sou alérgico a futilidades, principalmente futilidades vendidas agressivamente como essenciais. O simples facto de eu dizer que não gosto de ver um monte de gente à toa, dentro de um cenário, fingindo naturalidade e sendo chamada de heróis por um sujeito suspeito, já me rendeu reprimendas ríspidas, quase uma agressão física. A pessoa se sentiu ofendida. E o que é pior, essa pessoa é minha mãe.

Eu não vi o último jogo do brasileirão. Já começou, não começou? Não? Bah! Tenho preocupações reais numa vida real, com conseqüências reais para me ocupar.

Também não vi o desfile das escolas de samba. Ver camarote de celebridades? Vinhetas irritantes a interromper o desfile? Uma certa emissora condenando ao aninomato quem não se curva às suas vontades? Comentários que poderiam não ter sido feitos? Competição de agremiações? Uma mini série baseada nos velhos bailes me despertaria alguma atenção. Mas um evento que se transformou em uma reles vitrine de exibicionismo de famosos (não para mim) e de gente que quer posar pelada, eu passo. Como assim, ainda vai começar?

Eu estou ficando velho, rabugento, ranzinza. Mas eu conquistei o direito de ser rabugento e ranzinza, cuidando de assuntos que realmente me fazem a diferença. Como estudar bicicletas de bambu.

17/01/2009

Não sou ela; 3 de 3

O Responsável pelo albergue chega à casa dos Aldrin Foster. Quer falar com os três, mas principalmente com Audrey. Foco na garota de salopete xadrez e blusa branca. Entram e vão directo ao assunto, o albergue tem conseguido mais doações desde que ela saiu nas páginas dos jornais e na tevê. Ele é franco, avisa do mundo que é o das celebridades instantâneas, de toda a sujeira e da nojeira que ele mesmo viu pessoalmente, há mais de dez anos e trinta quilos atrás...

- É uma fogueira de vaidades como não existe em nenhum outro ramo, minha filha, a não ser na política. Mas graças à sua exposição, nossas despensas estão abarrotadas, nossas contas estão rigorosamente em dia, enfim. Seria muito bom para a nossa causa se você alçasse esse vôo.

- Eu compreendo, mas é que eu não tenho mesmo nenhuma queda pela fama. Não pense o senhor que eu fico presa à minha casa, eu estou aqui de livre arbítrio. Sou caseira, não gosto de baladas, de aparecer e de todas essas coisas que as pessoas se matam (literalmente) para fazer. Já pensei em ser freira, só mudei de idéia por causa do albergue...

Aos pais isso alivia, mas eles contam da conversa que tiveram com sua avó, sua preocupação com o futuro e tudo mais. A convencem a fazer uma sessão de photos para divulgar os trabalho do albergue. No dia seguinte ela está no estúdio improvisado, com pantalonas verde escuro e uma camisa curta de gola careca. Dão-lhe outras roupas para o trabalho. Ela consegue disfarçar o desconforto. Em uma semana está dando uma entrevista na tevê, em prol do albergue. Em um mês vira garota-propaganda da loja onde trabalha. Em um ano é uma celebridade que, ao contrário da imensa maioria, tem muito conteúdo a oferecer. Não gosta, mas tira de letra. Sempre ressalta, porém, que não é Audrey Hepburn e não faz questão de sair de Rochester, sua amada "Rochacha", como lhe disse uma Audrey brasileira. Esta, com cara de psicóloga e uma longa lista de micos pagos em público e em casa, costuma visitar a homônima para tricotar e lhe acalmar os ânimos, quando inventam alguma para vender revistas bobas. Mas o albergue está de vento em popa, até colaborando com creches e asilos. É o que motiva a moçoila. Se lhe perguntam por que ainda não tem uma filmagem acertada, responde...

- Eu não sou Audrey Hepburn. Estou neste ramo por causa do nosso albergue, não para estrelar um filme.

- É tão estranho ouvir isso! Quer dizer, você tem idéia da fila de artistas esperando por uma primeira chance? É muita gente quase implorando para ter um papel e você não se importa!

- Este é o sonho deles, não o meu.

Já não dá para levar a vida sossegada de antes, é pelos necessitados que expõe sua imagem. De um deles, abandonado pelos filhos, ajuda a cuidar e fazer curativos. Muitos não acreditam que ela seja tão certinha, acreditam que ninguém gosta de certinhos e a pose é um artifício para vender o peixe. Embora não saiba, câmeras a seguem o dia inteiro à espera de um deslize. Só passam raiva. A educação austera moldou toda a personalidade de Audrey. Plano geral. Ela ainda anda naquele Caprice 1980, que já ficou marcado, todos sabem que ela está chegando quando o vêem, embora já lhe tenham oferecido carros mais modernos.

Audrey vai morar com a avó. Após um mês em coma induzido, quando viu o edifício em que os pais estavam desabar. Ninguém sobreviveu. Agora precisa mais dos albergados do que eles de si. Por influência de Irvana, passa a aceitar convites para comerciais e se torna de facto uma estrela. A imprensa comemora intimamente as mortes de Kate e Orson, por conta disso. Também por sugestão da avó, se filia à fundação da diva, o que dá um fôlego grande ao albergue. Audrey trabalha às vezes dezessete horas por dia, encontra consolo e esperanças no trabalho. A avó a obriga a tirar uma semana de férias pelo menos uma vez por ano, longe dos holofotes, mas mesmo de férias se ocupa com algo, como cantar, compor, qualquer cousa que lhe acalente o coração. Reclusão não lhe passa pela cabeça, mas os motivos para sair ficaram menores, além do quê se empenha de corpo e alma naquilo a que se propôs. Cinco anos depois da tragédia, Audrey está sozinha. Se muda para um pequeno apartamento ao lado do albergue. O glamour que só público vê, não reflete a vida franciscana que passou a levar. Só tem aos albergados para cuidar, ganha dezenas de vezes mais do que precisa para se manter, não tem o mínimo interesse pelos excessos do americano típico. A imprensa explora esse estilo de vida, programas de auditório ganham fortunas com o patrocínio a debates televisionados sobre o tema.

Audrey atende à porta, usando um longo vestido azul claro de gola em "V". Vê aquele homem de pólo branca e calças pretas. Meio detrás da porta, olha para ele longamente, amolecendo aos poucos. Close no rosto, no brilho dos olhos, nos lábios reticentes em soltar algo. O presidente da fundação em que se transformou o albergue apresenta-lhe o filho, seu braço direito. Mas vê que precisa ficar calado até os dois saírem do transe. A moça pede que entrem, diz que há um bolo recém assado, biscoitos no armário, suco na geladeira, almofadas aos montes entre as poltronas. O que mais dizer? Se casam pouco antes do natal, no natal seguinte ela já amamenta uma menina. Não pretende lhe dar uma educação tão austera, acha que não cabe, mesmo assim será uma mãe austera. Leva a pequena tanto ao albergue quanto às filmagens dos comerciais. O apoio de um marido afim facilitou seu trabalho, adoçou as lembranças da família e a fez aceitar o primeiro papel no cinema. Os repórteres têm a coletiva que pediram de joelhos, literalmente...

- Então foi Edward quem a convenceu a ser actriz?

- Sim, foi. Ele me ajudou a planejar tudo de modo que não comprometa a minha vida lá fora.

- Seus pais apoiariam sua carreira?

- Pergunte a eles. Mas não teriam nada contra um trabalho honesto. A educação que me deram foi um excesso de zelo, não tinham ressalvas contra o cinema.

- Vai adoptar o sobrenome artístico Hepburn?

- Seria uma falta de respeito. De jeito nenhum. Podem me chamar de Audrey Foster.

A coletiva dura o tempo programado e nenhum segundo a mais. Agora ela vai ensaiar seu papel, para depois voltar para casa e se dedicar à família. Este sim, era e ainda é o seu sonho. Sabe que as comparações de agora em diante, com a fidalga, serão contínuas. Mas foram eles que pediram pelo seu ingresso no cinema.

10/01/2009

Não sou ela; 2 de 3

Os amigos riem quando Audrey diz que jamais entrou em um shopping center, foi estratégia dos pais para resistirem à cultura consumista de seu povo. Pois lá está um deles, logo à frente, se avolumando na moldura do para-brisas.

Plano geral no estacionamento, da esquerda o Caprice surge andando devagar e pára. Um Toyota Corona verde limão com um barbeiro à bordo está bloqueando a passagem. Quando ele sai, Audrey consegue estacionar.

Câmera acompanhando os quatro. Audrey usa um macacão de brim cru e uma camiseta branca bem folgados. Quem estava ao volante, passa a ser guiada. Kate acolhe a filha pelos ombros, aquela é a maior quebra de rotina que ela já sofreu. Quando entram, ela se deslumbra. Close no rosto, duas espinhas muito pequenas na bochecha esquerda são disfarçadas pela maquiagem muito leve. Ela balbucia exclamações de espanto. Na realidade, poucas vezes saiu de Rochester sem ser a trabalho. Nova Iorque a aterroriza, aquele shopping center é intimidador. Gosta de cidades pequenas, mas ironicamente é uma novaiorquina. Um detalhe que ela não conta, é que odeia refrigerante. Nas poucas vezes em que cedeu e tomou um gole, arrotou como se tivesse tomado um litro, uma grosseria pela qual não se perdoa.

Orson encontra de cara uma loja de moda jovem, mas não sabe se a filha vai gostar das aberrações que vendem. Ela torce a boca assim que entra. Uma placa enorme onde se lê "ATITUDE" em cima as peças que mais vendem, como calças com calcinhas fio-dental propositalmente costuradas meio para fora. Ela logo argumenta com a vendedora...

- Senhorita, eu tenho dezenove anos! Eu gosto de coisas mais simples, discretas... Entende?

A ladainha de que muitas artistas usam aquelas peças em seus shows não a convence. Peregrinam até encontrarem uma loja que lhe pareça aceitável, mas logo descobrem que peças de bom gosto são relativamente caras, pois não são cortadas às milhares de uma só vez. A moçoila se apaixona perdidamente pelas estampas xadrez. Cigarretes, corsários, vestidinhos, blusas, calças longas, saias até os joelhos e muito mais. Seu sorriso ilumina toda a loja, enquanto pais e avó conversam. Câmera atrás deles, com Audrey e a vendedora aparecendo alegremente a todo momento...

- Que menina incrível! Como é charmosa!

- Temos que admitir, ela precisava mesmo de roupas novas. será que ainda dá tempo de ela aproveitar a juventude?

- Não do jeito que poderia, Kate. Mas acredito que ela consegue ficar mais leve. A propósito, e a faculdade dela?

- Ela já mandou - diz Orson - cartas para algumas. Mas faz muito pouco tempo, ainda não responderam.

- Acho que não terá problemas, ela é bastante culta. Mas agora, mamãe, a senhora me deu uma preocupação. Ela realmente não saberia lidar com os colegas fora da sala de aula.

- Foi o que pensei. Vocês dois sabem bem da malícia e da promiscuidade que há em ambientes com muitos jovens, ela não tem disso...

São interrompidos por gritinhos de contentamento do tema de sua conversa. Ela se olha no espelho sem acreditar no que vê, e ama o que vê. O vestidinho médio de alças com estampa xadrez preto sobre fundo vermelho a encanta. A vendedora não hesita em dizer "Você é a cara de Audrey Hepburn!". De frente, até lembraria o filme "A princesa e o Plebeu", se tivesse visto algum filme da musa. Uma colega alta, loura, de minissaia e blusinha curta, aparece. Reconheceu-a de imediato...

- Audrey! Meu Deus, o mundo vai acabar! Você em um shopping!

- Anna? Nossa, quase não te reconheço sem o uniforme! Estou escolhendo roupas novas.

À cabeça da moça logo vem uma imagem de conservadorismo, que se desfaz ao se lembrar do trato que a colega tem com os integrantes de minorias, na loja. As duas, frente a frente, são um contraste gritante. É apresentada à família, conversam um pouco e se despedem. Saem com algumas sacolas e vão ao cinema. Vêem cinco filmes, dois de Audrey Hepburn.

Audrey dorme se lembrando dos filmes. Agora sabe que realmente e o quanto se parece com a estrela. Não quis ficar muito mais tempo, gosta de dormir cedo e aquela cidade realmente a oprime.

Audrey passa a ser vista, quando não de uniforme, com aquelas roupinhas de boa moça que ganhou. Passa a receber amigos em casa, eles constatam o fineza de seus modos, bem como a espontaneidade e a alegria que exala. Chega a ser cansativo ser comparada à actriz. Passa a ler sobre ela, aluga filmes sobre ela, descobre cousas muito boas a seu respeito, mas não é Audrey Hepburn. Nem mesmo tem vontade de ser actriz, gostava muito do anonimato que tinha há até poucos dias.

Orson descobre photos de Audrey na internet, publicadas sem autorização. Fazem comparações entre ela e a actriz, em algumas só mesmo o pai da moçoila sabe dizer qual é a sua filha. Felizmente não dão endereço, nome completo, nem e-mail. Mas um colega dela, pensando que está ajudando, fornece os dados. No dia seguinte o telephone fixo toca, um jornalista quer entrevistar Audrey. Kate, fica encantada, mas trata de filtrar...

- Olha, eu não sei quem deu nosso endereço e nosso número, mas não foi com nossa autorização. Audrey é uma moça ocupada, ela estuda e trabalha em tempo integral, não tem muito tempo livre.

Sem querer, passa dados preciosos para o jornalista, que deduz facilmente o perfil da garota. Com o que já sabia consegue escrever algumas laudas para a edição de amanhã, que cai nas mãos de amigos e da gerência da loja. Logo Audrey, a contragosto, adquire uma fama local. Tudo bem, consegue manter sua vidinha calma e pacata, mas se contém fora de casa. Dentro dos muros, porém, se solta, faz caretas, dança e canta. Quando vão ao albergue, há uma equipe filmando o local, a repórter a vê com suficiente antecedência para prevenir o câmera e aprontar uma surpresa. Filmam Audrey discretamente, enquanto ela ajuda a fazer curativos, dá banho em uma criança e ajuda a servir a sopa da noite. Está em um conjunto de saia branca com xadrez azul e blusa de mangas curtas. A meiguice em pessoa. Filmam o especial carinho que tem com as crianças, o beijo que dá em uma delas e assim por diante. Muito tocante, igualmente lucrativo. Audrey é uma voluntária valiosa. A repórter se anuncia e, por ter permissão prévia da administração, começa a fazer perguntas...

- Venho aqui desde criança.

Kate e Orson logo percebem a deficiência da filha, por falta de malícia diz tudo o que ela quer saber sem precisar falar muito. Eles vão ter com a repórter e conseguem que ela não escancare a intimidade da filha, mas logo de manhã o telejornal anuncia o "Novo Anjo das Crianças". As cenas são preparadas de modo tal, que ficam tão comovedoras, que para os fãs é como se Audrey Hepburn ainda estivesse viva sobre a Terra. No trabalho, Audrey é assediada pelos fornecedores, já que trabalha onde a clientela não tem acesso. Está assustada.

Continua.

03/01/2009

Não sou ela, 1 de 3

Close na mãozinha do bebê. Cena em branco e preto. É batizada Audrey Aldrin Foster. Os pais saem felizes com a criança ao Chevrolet Caprice recém comprado. Em dois anos é tudo o que lhes resta. A empresa vai à falência por fraude e toda a directoria fica marcada, inclusive os membros inocentes. O pai de Audrey é interrogado e solto em seguida, passam a viver do salário de professora de Kate, ele vira dono de casa.

Cena colorida. Audrey completa dez anos, magra como só ela, é educada pela própria mãe da maneira mais austera possível. Dois desempregos em menos de um ano fizeram dos Aldrin Foster muquiranas incorrigíveis, mas a educação da filha de modo algum é negligenciada...

- Audrey, preste atenção! Deixe para sonhar depois, agora é hora de executar.

Balé, música, philosophia, prendas domésticas, do-it-your-self, tudo o que pode preparar a menina para a vida lhe é ensinado em regime de quase internato. Passam a levá-la para albergues onde actuam como voluntários, para ela aprender o valor do pouco que tem. Três brinquedos simples são o que ela tem, mas lhe é dito sempre que há os que brincam com caixas de sapatos, lembram que os siberianos vivem no gelo, onde não se brinca.

Audrey com doze anos. Falsa magra. A vida dura lhe deu pernas e glúteos desenvolvidos, contrastando com a cintura fina. Jeans e camiseta solta, para não chamar atenção, ainda assim sofre um incidente, um mendigo a ataca. Estava a menina contra o sol e a luz desnudou-lhe a silhueta, sai do episódio com seios à vista, logo socorrida pelos pais e um policial. Desta vez não é reprimida pela mãe, mas recebe uma advertência carinhosa...

- Minha filha, ser bonita é muito ruim num mundo materialista. E você é muito bonita. Tome cuidado, eles não perdoam as pessoas belas. Vão te invejar, tentar se aproveitar de você, e se você não quiser fazer esse jogo, vão te tratar como inimiga. Não são só os mendigos, é todo mundo, Audrey.

Mãe e filha se entreolham, câmera parada, foco de luz nas duas. Audrey começa a chorar e é acolhida. Mas mesmo assim vão ao albergue nesta noite, os mendigos de lá não são maníacos sexuais, estes não suportam ambientes respeitosos. A garota vai de vestido jeans longuete bastante folgado. Alguns voluntários começam a comentar como ela está se parecendo com a diva do cinema. Kate e Orson temem que a filha se envaideça, traçam planos mais austeros para sua educação, embora a vontade seja lhe encher de presentes. Mas têm visto o quanto isso tem estragado as crianças, que se tornam tiranas dentro de casa. Teatro, entretanto, lhes parece um bom entretenimento para ela.

Debute? Audrey não tem tempo para pensar nisto. Trabalha no estoque de uma loja de auto peças, embora mãe e pai estejam empregados há dois anos e meio. Mas o padrão de vida da família permanece o mesmo, assim como o Caprice 1980 seis cilindros. Mesmo assim tem festinha surpresa, quando chega em casa. Pais, parentes e colegas de trabalho não a esqueceram. Embora não saibam se estão exagerando nos rigores, mesmo achando que às vezes exageram, esses mesmos rigores docilizaram e prontificaram a índole da unigênita. Cabelinho curto, para não atrapalhar e economizar com os cuidados, ela se torna cada vez mais parecida com Hepburn. Todos notam e comentam, enquanto comem o bolo cor de rosa e tomam suco de maçã ou uva. Álcool em casa, só vinho, em pequenas porções e poucas ocasiões. De tanto serem tão rigorosos com Audrey, eles se tornaram também consigo mesmos.

Audrey, sempre ocupada, consegue tirar a habilitação. Desenvolveu uma disciplina marcial ao longo da pouca vida que teve até agora. Paralelamente, as semelhanças com Audrey Hepburn já são inegáveis. Volta para casa com os pais no banco de trás. Dia claro, poucas e tênues nuvens no céu, ela dirige devagar.

A sogra. Irvana chama filha e genro para uma conversa séria. Luz dura apenas na saleta onde estão as poltronas de vime. A sexagenária fala com gravidade...

- Eu estudei em colégio interno durante dez anos. Nós tínhamos vida social, apesar de as pessoas acreditarem que não. Gostei muito de ver vocês dois tirando Audrey das ruas, das más companhias, et cétera - pausa para pensar. Mas eu acho que vocês estão exagerando muito. Irmã Dayse ainda é viva, contei à ela sobre nossa garota e ela me perguntou o que Audrey fez de errado. Só trabalho e estudo, trabalho e estudo, trabalho e estudo. Kate, eu tive vida social, eu tive namoros, eu tive férias e tudo mais. Vocês estão preparando minha neta não para a vida, para para a parte dura da vida. A vida tem outras partes, se ela não souber lidar com elas, vai fracassar. Como esperam que saiba lidar com amigos se só os vê no ambiente de trabalho, onde não há chances de ela ser a garota que ainda é? Ela sabe lidar com os homens? Quando ela foi ao cinema, pela última vez?

- Well... She... Never.

Irvana faz uma expressão dura, a luz acentua as sombras e explicita seu aborrecimento. Neste momento Audrey chega do trabalho, exausta. A luz fica mais suave e ilumina todo o cômodo. A avó nota o modo como ela anda, altiva, delicada, como se deslizasse sobre o piso de tacos. O uniforme, camisa azul com crachá e calças pretas, não esconde o estágio avançado de sua formação física. Apesar de tudo, a moçoila é carinhosa e receptiva com a avó, como é com os pobres do albergue. Após o banho a integram à conversa, onde decidem que qualquer que seja o rigor, não poderá privá-la da vida social que ela nunca teve. Amanhã, domingo, após o meio turno de trabalho, a levarão ao cinema...

- Wow... Cinema? Puxa...

A cara de surpresa e perplexidade provam que ela não tem idéia do que fazer em uma sala de projecção. Na verdade, sequer tem uma roupa propriamente de passeio...

- Que tal aproveitarmos, nós quatro, para comprar roupas de moça para você?

- Mas eu tenho muitas roupas. São mais de dez peças.

No dia seguinte, após o almoço, vão os quatro ao shopping. Audrey sabe dirigir mais economicamente, então ela os leva. O deslumbramento comprova que ela é estreante na vida fora das obrigações.

Continua.