18/12/2013

Mais divagações - Uma parábola


É como viajar por uma longa estrada. Por mais atento que seja o viajante, ele não vai conseguir notar todas as nuances da viagem. Na realidade, nenhum conseguiria perceber todos os pontos marcantes do caminho percorrido, aqueles que caracterizam cada trecho que o distinguem dos demais. Para conseguir uma coleta considerável de dados, seria necessário dedicar a vida inteira à pesquisa, para deixar à posteridade a tarefa de estudar e tirar conclusões. Ainda assim  não se conseguiria ver todos os gradientes.

Há o agravante de que, mesmo que dois viajantes sigam juntos e observem os mesmos ítens, eles não chegariam às mesmas conclusões. Concluir uma linha de raciocínio depende do arcabouço com que o indivíduo pode contar, o que inclui sua história, sua personalidade, seu aprendizado e a maneira como se relaciona com tudo isso e com o mundo. Nem mesmo gêmeos univitelinos nascem com a mesmíssima história pré-natal.

Disto nascem as discordâncias. O modo como se viajou seria o ponto de vista, que é a maneira como o indivíduo consolidou sua maneira de compreender o mundo e a si mesmo. Por isso duas pessoas que passam pela mesmíssima situação, podem e geralmente têm pontos importantes em que divergem , tanto das causas quanto do desenrolar e das conseqüências daquilo pelo que passaram.

A forma mais simples de entender isso, é observando uma das leis mais elementares da física: Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no tempo e no espaço. Com isso, uma viagem a dois, por exemplo, pode terminar com um contando detalhes de que o outro não se apercebeu, e talvez até duvide que estejam pelo caminho.

Por exemplo, uma família que viaja em seu carro conversível. Adultos na frente, acriança atrás. O motorista estará atento à estrada, sua conservação, suas curvas, os carros pelos quais passa, a possibilidade de chuva e o cair da tarde, além de monitorar a sinalização, o painel e o funcionamento do veículo. Sobra-lhe pouco tempo para apreciar a paisagem, e ele só poderá fazê-lo muito rapidamente, o que significa que só atentaria para o que o carona lhe alertasse ou o que lhe tivesse muita afinidade.

O carona, mais livre, não teria tanta atenção à sinalização e ao veículo, não no tocante ao seu funcionamento; até porque o posto de motorista é imprescindível para ter plena ciência de tudo isso. Mas estaria livre para dar atenção aos detalhes do interior do carro, seus odores, texturas e acabamento, assim como poderia apreciar a paisagem e ainda ficar de olho nas crianças. A presença física do motorista, porém, lhe tolheria boa parte da visibilidade do lado oposto, pelo simples facto de ele estar lá. Não se poderia culpá-lo, é necessário que ele esteja lá.

As crianças teriam ainda mais liberdade do que no carona, ainda assim a presença de um limitaria a do outro. Um não poderia dizer se um lado do banco é mais macio ou está melhor conservado, porque o outro está lá, assim como a partir de certa estatura, a cabeça do outro o impediria de apreciar todos os elementos da paisagem. Sendo crianças, a facilidade com que se dispersam faria qualquer coisa pelo caminho lhes tirar a atenção do que estavam vendo, fazendo-os perder alterações de nuances, como uma revoada por exemplo.

Um elemento extra pode ser inserido, o indivíduo que muitas vezes mora em algum lugar do caminho. Bem, para ele aquele ponto não é o caminho, é a chegada. Ele conhece como ninguém a parte em que habita, mas não pode dizer absolutamente nada a respeito daquele carro que passa e de seus ocupantes, provavelmente nem do lugar de onde saíram e aquele para onde vão. Suas conclusões a respeito, provavelmente, seriam meras especulações.

Diante disso, vamos imaginar que um dos viajantes, algum dia, leve em seu carro outros passageiros pela mesma estrada, que suponhamos que ele tenha percorrido várias vezes. Ele a conhece bem, até certo ponto. Bem a ponto de não se perder, porque talvez jamais saiba da existência de moradores ao longo de sua extensão. Digamos também que ele consiga um motorista baixo o suficiente para não comprometer sua perspectiva do lado oposto, assim podendo explicar a todos o que sabe a respeito de ambos os lados da estrada, que por pouco que tenha mudado, mudou inexoravelmente com o tempo.

Do que já não mais estiver na paisagem, o veterano terá que buscar impressões de sua memória, que estará subordinada ao seu julgamento. Os outros, até conhecerem bem a estrada, não terão alternativa a não ser acreditar nele. Daquilo que cada um observar, porém, cada um poderá tirar suas própria conclusões, embasadas em seus próprios históricos e personalidades. Não se trata de simplesmente contestar pelo prazer do exercício da contestação, não é o que trato neste texto, mas a conclusão diferenciada pelo facto de que a experiência individual, ainda que compartilhada, jamais é idêntica a de qualquer outro.

Digamos agora, que tenhamos três passageiros no banco de trás, todos com mais de uma viagem naquela estrada e cada um com algumas conclusões próprias. Um deles dará atenção aos relatos do veterano, e as comparará com a paisagem que se lhe apresenta pelo caminho. O outro prestará atenção unicamente à paisagem, talvez focando o que lhe for mais aprazível ou urgente. O terceiro talvez tenha picos que o façam olhar mais para o dedo do veterano do que se concentrar em suas palavras, e talvez quase nada na paisagem.

Ainda que todos prestassem atenção à paisagem, à explanação ou ao dedo, cada um teria suas próprias conclusões, porque cada um estaria em um ponto do carro e ouviria de uma forma diferente, além das influências pré existentes. Mas digamos que cada um tenha se atido a um aspecto dessa viagem.

O que prestou atenção ao conjunto não terá certeza de tudo o que foi dito, nem de tudo o que poderia ter sido visto. Detalhes como entonação e algumas flores, lhe terão passado desapercebidos, provavelmente seria taxado de alienado e louco pelos outros. Ele não poderá contestar pontos que os outros dois vierem a colocar, mas poderá comparar com suas observações mais amplas e decidir se elas fazem sentido ou não.

O que observou tão somente a estrada, tenderá a contestar grande parte do que o veterano disser, porque coisas que ele viu já não estariam mais lá, também porque talvez ele tenha visto a casinha escondida entre as árvores, e concluído que lá mora alguém. O veterano vai contestar, dizendo que jamais viu casinha alguma e uma guerra poderá começar.

O outro, que se concentrou mais no veterano do que em tudo mais, talvez só nele e em nada mais, tenderá a crer cegamente no que ele disser. Saberá de cor e salteado cada palavra, cada nota, cada intervalo e cada momento de reflexão, que poderá usar como arma para desmentir os outros dois. Dependendo do grau de confiança, poderá negar até mesmo o que ele mesmo observar e até mesmo suas próprias conclusões, porque o veterano conhece a estrada e suas viagens sempre deram certo, então não aceita que o contestem.

O que há em comum com os dois últimos, é que eles tendem a se considerar lúcidos, e aos outros, cegos e alienados. Eles te darão argumentações contundentes, talvez acompanhadas de discursos apaixonados, afirmando que seus pontos de vistas são verdades, e que quem não chegar às mesmas conclusões, é inimigo de suas ideias mais caras. Aquele que fez as observações mais amplas e poderia ser a ponte entre os dois, poderá ser taxado de alienado e mancomunado com o lado oposto.

Também há, claro, a hipótese de que o viajante veterano em questão seja menos orgulhoso e aceite ouvir cada um, raciocinar a respeito e unir os três naquilo que lhe seria o mais plausível. Então os três novatos poderiam pesar suas conclusões sobre a estrada e fazer uma história útil, ainda que pequenas divergências permanecessem, porque permaneceriam. Mas viajantes assim são raros, os do parágrafo anterior é que povoam o mundo.

06/12/2013

Um canto de natal

Image from Sacred Mundane
Aconteceu há muitos e muitos anos, durante o rigoroso inverno americano, quando a nevasca já tinha feito o estrago que tinha a fazer.

Um figurão do show business e seu amigo andavam no início da noite, conversando sobre seus dramas e seus planos para o ano que se anunciava.

Homens bem sucedidos, o sucesso conseguido trouxera também problemas da mesma envergadura, muitas vezes oriundos do próprio seio familiar. Ninguém parecia satisfeito com o que ganhava, tudo o que lhes era oferecido parecia pouco, era como jogar cimento em um buraco negro, ele ficava mais faminto quanto mais matéria recebia.

No decorrer da conversa, viram uma cena estranha, dois garotos despontavam no cenário glacial, sem a companhia de qualquer adulto. Via-se, pelas roupas, que eram crianças pobres. O mais inusitado é que um deles estava carregando o outro, visivelmente cansado.

A cena fez os dois homens esquecerem seus problemas, naquele momento. Bem agasalhados e bem alimentados, interpelaram o menino que carregava . Queriam saber por que estavam àquela hora naquele lugar, sem seus pais...

- Estamos indo para casa, senhor.
- Mas é muito tarde para vocês estarem na rua, sozinhos.
- Esse menino está bem?
- Sim, senhor, obrigado. Ele só está cansado, por isso eu o estou carregando.
- Não está muito pesado?
- Ele não é pesado, ele é meu irmão. Eu sou forte o bastante para carregá-lo.

Os homens ficaram atônitos, porque os dois não se pareciam em absolutamente nada. Talvez fossem filhos de mãe solteira, talvez alguém os tenha acolhido porque não tinham mais ninguém, e acabaram se adoptando como irmãos.

Talvez não tivessem realmente para onde voltar,  talvez nem mesmo para quem voltar. O certo é que o menino não reclamava de ter que carregá-lo, embora seu corpo protestasse visivelmente, parecia que já tinha caminhado muito e talvez não tivesse tido uma refeição decente.

Só tinham certeza de que aquele garotinho faria tudo o que estivesse ao seu alcance, para que o outro estivesse bem. E longe de qualquer amargura, ele dizia sorrindo "É meu irmão". E eles se lembraram de mensagens já esquecidas, soterradas pelo consumismo egoístico e pela animosidade mútua, que diziam reiterada e repetidas vezes que seu irmão é o seu próximo.

O garoto que levava o outro foi se despedindo, disse que ainda havia um bom pedaço a ser percorrido e não queriam chegar tarde demais, até porque o avançar da noite derrubaria a temperatura, comprometendo a sobrevivência dos dois. Ele desejou feliz natal aos dois e seguiu. Os dois homens ficaram paralisados, quase que envergonhados pelos problemas de que reclamavam.

Alguns dizem que eles observaram os dois se afastando até desaparecerem na paisagem, como que observando um mestre saindo da sala, após uma aula. Outros que lhes ofereceram carona, temendo que se ferissem ou se perdessem naquela noite. O certo é que os dois homens não voltaram a dar aos seus problemas o poder que davam até então.

A história, cercada de muitos folclores, é real. Dela nasceu uma das canções mais belas e mais cultuadas do século XX, e faz as pessoas meditarem ainda hoje. Gravada por The Hollies nos anos sessenta, e depois por Bill Medley nos anos oitenta, em ambas as ocasiões a canção foi um estouro nas paradas de sucesso. Como disse o menino "He ain't heavy, he's my brother.