21/03/2015

Herrar é um mano da Cohab

Cohab José Bonifácio, em Itaquera, ano 2003

  Herrar é um mano da Cohab. A vida de Herrar nunca foi fácil, se fosse difícil, estaria bom, mas varia do terrível para o desespero, mesmo assim ele resiste como um guerreiro. Não que não queira parar, mas não tem escolha, só lhe resta enfrentar a vida tirana, Herrar.

  Nasceu de mãe solteira, tinha apenas quinze anos quando o trouxe à luz, no meio de um apagão, bem debaixo da cruz da Santa Casa, bem ao lado de um velho que acabava de morrer. Não que Herrar quisesse nascer, mas para ele querer precisaria crescer e aprender, saber até onde iria sua liberdade, sua obrigação e a boçalidade de um país que sempre diz não, a quem quer viver honestamente e com dignidade.

  Herrar era seu nome desde que o avô, no cartório a lamentar dizia "Eu sempre tentei ensinar Ladisleyde a ser gente, mas em vez de aprender ela só fez errar! Erra! Errar! Errar!". O tabelião mamado, que voltava da farra sem nem ter passado em casa, só perguntou o sobrenome e assim ficou: Herrar da Silva Caio Rolando da Rocha.

  E Herrar rolou, logo ainda bebê, num alagamento em Higienópolis, Ladisleyde nadou desesperada atrás do rebento. O pequeno sacana foi encontrado rindo da desgraça, dentro de uma Kombi 73 abandonada, que depois da perda do barraco, tornou-se o lar de Ladisleyde e Herrar.

  Herrar cresceu sem nenhum conforto, com poucos amigos e uma cicatriz no rosto. Apanhou de bandido, apanhou de polícia, foi salvo pela polícia, e por isso de novo apanhou de bandido. Até que um dia conseguiu, um motor de roda gigante e algumas baterias. Então Ladisleyde e Herrar se mudaram para outro lugar, para perto da Cohab até acabar a carga e a Kombi parar.

  Lalisleyde conseguiu subemprego, agora era diarista, conseguiu mandar Herrar para a escola, nunca mais precisaria pedir esmola. Foi um tempo difícil, de muito trabalho e muita correria, mas muito melhor do que ser desabrigado e pensar, se durante o sono uma bala perdida os mataria.

  Herrar, que sempre sorriu, um dia chorou sangue, viu sua mãe vertendo sangue pela barriga, uma faca na mão do namorado ciumento que pensou que fosse lésbica, e o traía com a amiga. Uma semana agonizando e Ladisleyde morreu, sem um parente para velar, para consolar seu precioso Herrar.

  Pobre Herrar, pobre guerreiro, sempre foi filho e companheiro, agora estava só, na sua kombi. Parou de estudar, antes de terminar o segundo grau, não tinha cabeça para pensar, quanto mais memorizar lições tão abstratas, que não aplicava em sua vida, que de difícil se tornou o próprio umbral.

  Stallone disse uma vez, que ninguém bate mais forte do que a vida, Herrar estava cheio de hematomas, fraturas e no coração uma enorme ferida. passou mais de um ano se achando um vira-lata, comendo pão amanhecido com ovo, quase sem gastar o que ganhava, sem vontade de viver, nem a morte conseguiu querer.

  A vida não precisava ser moleza, facilidade era coisa que Herrar não conhecia, não precisava dela e às vezes nem queria, mas se considerou desrespeitado e traído. Não tinha que ser fácil, mas tampouco perversa. Herrar afundava a cada dia em sua amargura e solidão, mesmo à beira da festa.

  A vida, como que um mea-culpa, fez a Kombi de Herrar parar em uma blitz. Era toda irregular e foi recolhida para o pátio da prefeitura, onde tecnocratas a deixarão apodrecer, sem se importar se alguém vai ficar sem ganha-pão, ou mesmo ao relento abanando mão.

  Um policial encaminhou Herrar a um albergue, onde poderia pensar na vida, no que fazer doravante. Uma voluntária o reconheceu pela cicatriz, sem saber que por dentro ela ainda sangrava. Herrar, desnorteado começou a contar e ela se apresentou "Sou a Verinha, filha do Hiroshi do pastel, da feira" e ele se lembrou.

  Felicidade! Herrar voltava a sorrir! Voltou à Cohab e deu entrada em um apartamento, onde um ano depois foi morar com Verinha, casados de papel passado para o orgulho de Seu Hiroshi. A vida continuava difícil, mas Herrar agora estava feliz, voltou a estudar, arrematou sua Kombi de volta, montou em cima de um chassi e ela voltou a rodar com a gambiarra de motor e baterias.

  Ontem Herrar voltou das férias em Santos, só alegria, muita farofa, chorinho e selfie na praia. Verinha esperou ele se acalmar da empolgação e avisou, dentro de oito meses vai ter gente nova no apê, o primeiro bacuri está chegando. Herrar ficou feliz, não pôde se agüentar, correu sete milhas, pegou trem para voltar. A vida era dura como sempre foi, mas agora podia zombar dela.

15/03/2015

Um punk domou o sistema



  Era um garoto revoltado como outro qualquer. Queria o fim dos governos, o fim das empresas, o fim das instituições e em alguns casos o fim d humanidade. Acreditava que absolutamente nada tinha jeito, que tudo estava perdido; ninguém presta, ninguém vale nada, todo homem é gay, toda mulher é safada. Assim ele e seus amigos vararam praticamente uma década, se recusando a mudar o que queriam que fosse mudado, porque acreditavam que não haveria mudanças e, mesmo que houvesse, rapidamente o mundo voltaria a se corromper.

  Mas quanto mais se estica o elástico, mais rápido a pedra é atirada. Muitos dos que protestavam contra "tudo isso que aí está", são hoje os que mais querem que assim permaneça. Alguns nem tanto, aliviam a tensão quando percebem que as coisas não são exactamente como acreditavam, por vezes nem de longe se parecem. Aos poucos as turmas foram se desfazendo, embora contactos e alguns teimosos persistissem na senda de vagar em busca do apocalipse perdido.

  Um em especial mudou, mas não como pensavam seus próximos. Estudou, arranjou emprego, até constituiu família, parecia ter se rendido ao sistema. Só parecia. Por dentro ele continuava a querer colocar os sacanas de quatro e fazer com eles, o que faziam com gente inocente que não pode se defender. Mesmo de terno e gravata, o punk vivia e respirava com a facilidade de sempre. Só esperava pela oportunidade para dar o bote, e oportunidade era a especialidade do homem de negócios que então o vestia.

  Claro, os antigos amigos começaram a se afastar, alguns o consideraram um traidor, até ameaças de morte ele recebeu dos mais radicais, aqueles que esticaram tanto o elástico, que ele se soltou e deu-lhes na têmpora. Mas ele acreditava que quando os resultados aparecessem, quando vissem que tudo era só uma estratégia friamente maquinada pelo punk, todos entenderiam e talvez até seguissem seus exemplos. Punk esperançoso é como mulher apaixonada, que não enxerga o canalha com quem dorme.

  Um dia ele chegou lá. Tinha a confiança dos acionistas, era amigo e camarada dos colegas, sua capacidade técnica era indubitável, então foi só questão de persistência, coisa que os punks têm de sobra. Seriam excelentes feiticeiros. Ele percebeu no decorrer da jornada, que o capitalismo é um jogo de regras claras, mas um jogo, por isso mesmo atraía tantos trapaceiros e canalhas, mas por ser um jogo poderia ter a mesa virada.

  Quando o poder estava em suas mãos, em vez de se corromper como muitos outros, chutou o pau da barraca do modo mais capitalista possível. Passou a selecionar os fornecedores e prestadores de serviços não só pela relação custo/benefício, mas também pela humanidade com que trabalhavam, e usou isso nas campanhas da empresa, arregimentando a simpatia do consumidor, que no final das contas é o idiota que decide tudo sem perceber coisa nenhuma.

  Lá dentro passou a valorizar as pessoas, pagar melhor, eliminar as distorções de gênero e biotipo, manter na empresa o profissional que ela tinha formado, combateu a alta rotatividade que os panacas corporativos acham tão normal, mas alimenta muito a concorrência desleal e escravocrata dos chineses. Nenhum punk que se preze tolera escravocratas. Um dos resultados foi que a empresa passou com poucos danos pelas últimas crises.

  Estava tudo bem, mas tudo estava mal. Pela primeira vez o punk chorou, e o executivo precisou consolá-lo. Os antigos amigos não queriam saber de domar o sistema, de humanizar o capital, de expurgar os parasitas que deixavam a sociedade tão perversa. Eles queriam é destruir tudo, exterminar a civilização, não aceitavam a hipótese de ela ter conserto, mesmo vendo a prova bem diante de seus olhos.

  Até pensou em desistir de tudo, mas já estava comprometido demais com o sonho do punk, que estava materializado e precisava se alastrar pelo mundo. O punk viu exemplos de gente que antes rejeitava, se aproximar de seus ideais de igualdade e justiça. Viu o arreganha bilionário Bill Gates fazer pela saúde mundial o que a fraude da ONU jamais fez em toda a sua história; hoje ainda menos, influenciada por ditaduras. Um pouco de leitura e soube de gente que quase nunca é lembrada pela sua doação à humanidade; Audrey Hepburn, Grace de Mônaco, Hedy Lamarr e Paul Newman.

  Mais recentemente viu o esquisito Elon Musk abrir as patentes de seu maior sucesso comercial para qualquer um se valer delas. Não que ele não quisesse ser rico, como todos os outros, mas o que fizeram lhe deu a certeza de que não estava sozinho, tinha exemplos de sobra para se inspirar e seguir, mais um monte de patentes excelentes para beneficiar sua empresa e construir o sonho do punk. Na parte que lhe cabia, ele já tinha domado o sistema, e com tanta gente forte fazendo o mesmo, o jogo do capital estaria mesmo com os dias contados. Não para dar lugar a um sistema artificial que só gerou ditaduras sangrentas, o próximo sistema estava em gestação e só seria conhecido quando eclodisse. Nome é o que menos importa, importa que o punk está feliz, e agora ninguém mais o segura.

  Quanto aos ex-amigos... Paciência! Nem todos crescem. Hoje o punk pode cantar e gravar só o que quer, do jeito que quer e onde quer. Ele está pagando!