30/12/2011

Agora o tabalho começa!


Nicolau aterrisa, frustrado como em quase todos os últimos anos. Mas não tem tempo para transformar em doninha vesga, os larápios que descumpriram com o trato, depois confirma sua viagem só de ida para algum planeta pré-histórico. Quem disse que varrer o mundo em uma noite é trabalho árduo? Não, a simultâneidade é a parte mais fácil, penetrar na armadura dos adultos corrompidos é que são elas.

No momento desce do trenoporto para sua casa-fábrica, onde Nikole já adianta a estratégia para a próxima jornada. Há anos começou a estender sua jornada de trabalho. Na época de natal, tudo bem, todo mundo está mais acessível, todo mundo se emociona e fica fácil influenciar as pessoas. O problema vem logo depois da meia-noite do dia trinta e um, quando os hormônios egoísticos do baixo ventre sobem repentinamente, fazendo as pessoas pensarem só no próprio prazer. Deixam de se doar umas para as outras, para usarem umas as outras.

Neste meio tempo, as pessoas que vêem no fim do ano a única época em que são consideradas como gente, tendo o mínimo de suas necessidades básicas satisfeitas, passam a ser vistas como estorvos humanos, mais do que em todo o restante do ano.
Nikole conversou consigo por umas horas e, desde uns anos, Nikolau faz a silente e subconsciente campanha "Guarde um Pouco para o Carnaval". As pessoas que são assistidas e filmadas com pacotes de alimentos e presentes, não somem depois da pirotecnia de reveillón. Para isso se fez valer do mesmo meio que tantos desocupados usam para fazer o que não presta, o casal, todos os anões e renas, têm seus perfís em redes sociais, com cognomes ridículos, para se misturarem bem á turba de internautas, como "Sãopaulino Hétero", "Anão de Jardim", "Atrapalhador de Papai Noel", "Boneco de Neve Quente", "Nanael Soubaim" entre outros.

Como o mês de Janeiro é o único em que eles têm tempo para respirar, usam-no para traçar o plano de ação. Nestes poucos anos, os resultados têm sido expressivos, muitos voluntários têm se encorajado, à margem do apelo para que todos coloquem seu orgasmo acima de tudo... Mesmo apesar dos recentes e agressivos assédios, que atacam quem "reza em vez de curtir a vida"... como se fosse de suas contas.

Mesmo nos países baixos, conseguiram que pequenos grupos de não radicais começassem a se importar com o próximo, sem a necessidade de uma "causa válida e relevante" para isso. Verificam a situação de cada grupo já formado e estável, para verem o que poderão fazer por seu intermédio. Pelo egoísmo predominante na ápoca, os resultados animam.
Tudo acertado, agora distribuem as tarefas. Usarão os anões para pegarem as famílias em seus pontos-fracos, as crianças. Apesar do chororô inicial, elas rendem boas risadas, com os resultados de sua influência sobre os pais. Dos adolescentes cuidarão as renas, que sabem dar coices melhor do que eles, ou seja, se entendem bem. O casal Noel cuidará dos adultos e seus corações já endurecidos, tarefa para gente experiente e muito bem preparada, porque o terreno é repleto de armadilhas e áreas encrudecidas, já estéreis.

Um anão anuncia que, para este ano, depois do arranca-rabo que sempre há em reuniões de elementais, conseguiu a adesão dos outros três elementos, e também de alguns bruxos para a empreitada. Uma conquista comemorada.

Agora vai cada grupo planejar sua ação, em sincronia e sintonia com as dos outros. O casal vai até uma amiga, pedir mais uma vez sua colaboração. Sabem que ela tem feito tudo o que pôde, mas a sede de prazer a qualquer custo e apesar do próximo, dificulta tudo. Pedem com a humildade de um casal santo...

 - Morte, eu sei o quanto você tem se esforçado, mas precisamos novamente pedir sua colaboração. Passar o resto da vida preso a uma cadeira de rodas, é uma lição muito mais eficaz, para infrator e família relapsa, do que um luto.

 - Querido Nikolau, eu jamais rejeitaria um pedido seu. Lamento que o suicídio indirecto tenha se tornado uma causa forte e já banal de óbitos, mas asseguro que me apegarei a qualquer mínima chance para evitar levar alguém antes da hora. Qualquer vazinho que ainda conduza sangue, qualquer veia estancada por um músculo retesado ou um osso deslocado, qualquer coisa será utilizada para evitar lutos desnecessários, neste carnaval. O que estiver ao meu alcance, considere feito.

Levam-na, felizes, para um chá, na casa-fábrica.

23/12/2011

Uma criança


A criança corre serelepe ao redor da árvore. É uma árvore grande, não cabe sob um pé direito comum. A cerquinha branca é tudo o que impede a invasão. Muito baixa, mas é suficiente para demarcar o limite.

O contraste do verde escuro e envernizado, com os reflexos coloridos e deformados dos enfeites de polímero, não bastassem os pirilampos distribuídos por toda a estrutura, enchem seus olhos pueris. A alegria de estar vendo aquele espetáculo atrai outras crianças, mas àquela, ainda em tenra idade, o valor da novidade se soma ao da beleza que vê.

Os pacotes de presentes, ainda mais coloridos, enchem a base da árvore. Ela corre em volta para ver todos, ainda que a presença de tantas outras crianças, a disputar posições, dificulte. Ela corre, tropeça, cai, levanta e volta a correr. Seu riso se confunde com os tantos outros.

Se afasta e vê a estrela no topo, que passou-lhe desapercebida. Não imaginava haver tanta beleza no mundo. A música repetitiva de fundo não incomoda, embala. Crianças gostam de ser embaladas, não necessariamente de serem empacotadas.

Atenta á mudança da movimentação e olha para trás, um homem estranho de barba e roupa vermelha se aproxima. Não consegue discernir o que as outras falam, todas ao mesmo tempo, mas em tempos diferentes. Vai lá também.

Forma-se uma fila, organizada por assistentes. A primeira fila da vida daquela criança... a primeira de uma série, pobrezinha. Os assistentes lhe perguntam o que quer ganhar do Papai Noel, ela fica tímida, ri e não consegue responder. Vai chegando sua vez e ela fica exitada, vê outras crianças voltando com saquinhos de guloseimas.

Chega sua vez e ela fica encantada. A conversa segue em tom estranho ao que está acostumada, ele fala manso, pausadamente. Fazem pose para uma photographia, que será impressa e incluída no saquinho de doces. Ela promete ser uma boa menina, se comportar, ajudar a mamãe e tudo mais.

Volta com seu saquinho vermelho de bolinhas brancas à admiração. A árvore brilha e cintila de modo harmônico, de acordo com a música de fundo, que finalmente muda. Olha para trás, vendo aquele velhinho bondoso, que continua atendendo as crianças. É um mundo de sonho.

Seus pais chegam e ela mostra o que ganhou. É pega pela mãe e, pelo caminho, vai contando tudo o que viveu naqueles momentos, mostrando insistentemente o saquinho de doces. Mas é hora de irem embora, eles já conseguiram o que queriam. Têm uma cesta natalina para suprir as necessidades da família por alguns dias.

O mundo de sonhos fica para trás, cintilando nos olhos da criança. Colocam-na e a cesta no carrinho de papelão e puxam-no de volta para casa; um baú de caminhão, abandonado em um terreno baldio e adaptado ao uso. Neste natal, pelo menos neste, terão algo a comemorar.

18/12/2011

Natal do funcionário público

Acessem: http://professoroseias.blogspot.com/
Será uma maravilha! Oh, que glória de governador tem o Estado de Goiás. Oh, como o funcionalismo estadual é privilegiado! Ganhou de presente do governador, que concedeu espontâneamente, após levar uma série de sentadas da presidente por ter se negado a fazê-lo, e ela mostrado que ainda se lembra do treinamento de guerrilha, o aumento que manda a lei. Como? Simples;

Os que não tinham gratificações suficientes, receberam para que seu bruto constasse acima do piso que a lei manda, de modo que a governadoria pode retirar tudo quando quiser, como já o fez noutras vezes. Além de desonerar a previdência, já que gratificação não vira aposentadoria.

Os que já tinham, as têm agora incorporadas ao salário, para parecer que houve aumento, na prática quase nivelando os mais graduados aos que só têm licenciatura. E já que o salário consta como acima do piso, com este artifício maravilhosamente perverso, ninguém terá aumento de verdade, continuando a receber vencimentos defasados, que não cobrem os custos que um mestrado ou um doutorado demandam. Alguém aí já tentou importar um livro extremamente especializado, que só foi editado em alemão? O cartão de crédito chora.

Afinal, para quê estudar, né? A escola empurra e o governo dá cestas. Para quem não sabe, o modelo de bolsa família, cheio de falhas altamente vulneráveis, que permite que até deputados a recebam, saiu daqui. O governo não precisa de um povo pensante, precisa de eleitores ruminantes. Do tipo que esquece da época em que Goiânia começou a ter um transporte público decente com microônibus, devidamente organizado e legalizado, que foi sem nenhuma explicação abortado pelo então e actual governador, levando muitas famílias para a miséria, pelo endividamento, e alguns pais de família ao suicídio. Nunca ouviram falar? Claro que não! A imprensa não pode mostrar coisas feias! Não pode, não pode e não pode! Só agora é que começou a assanhar-se, com a popularização da internet livre. Ah, interneteiros maus! Muito maus!

Mas tudo bem, tudo o que a imprensa mostrar, as propagandas oficiais desmentem. Basta uma demão de tinta, uns pregos e avisar docemente às professorinhas que "Se não estiver absolutamente todo mundo sorrindo e feliz, você será transferida pra cidade mais distante e miserável de Goiás!" e a cena sai bonitinha. Afinal, ela recebeu um aumento (de carga horária) e tem que justificar a bondade impávida e colossal do governo estadual. Fica a palavra do governo contra os factos das reportagens, e contra a constatação do cidadão, e contra o Ministério Público...

O governo também acabou com a farra dos empréstimos consignados, que dilapidavam os vencimentos do funcionário público. Dane-se que para muitos era tudo o que mantinha suas contas em dia, dada a defasagem salarial, e seu nome de trabalhador honesto limpo. Não é para as financeiras que o salário do funcionário deve ir... Não para as financeiras...


Ipasgo tendo o mesmo destino da Caixego, a Celg prestes a ser tomada pela Eletrobras, a polícia se virando com viaturas (carrinhos populares) alugada$, as escolas vigiadas de perto e com mão de ferro. Mas é claro que precisa! Os professores é que influenciam as crianças! Eles não podem ter autoridade nenhuma em sala de aula, tudo o que dizem precisa ser milimetricamente censurado, eles devem passar metade do tempo saudando o governo; estufando o peito, esticando o braço e gritando "Heil!". E depois da aula, para não ficarem à toa, que façam eles mesmos o serviço que cabe ao pessoal administrativo, que já não existe, de organizar diários, provas e freqüências, ignorando o facto de que um professor precisa trabalhar em três escolas estaduais para ter direito ao piso, mais uma maravilha da merdocra... digo, me-ri-to-cra-cia-a que o Estado divulga como a oitava maravilha do mundo.

Logo, logo o Estado de Goiás não terá mais despesa alguma com autarquias gigantescas da época da ditadura, simplesmente porque não terá nenhuma. Perderemos todas, sucateadas e reincorporadas pela União, ou vendidas a preço de banana. Típico da tucanalha, que descobriu que o funcionalismo público é o único e verdadeiro culpado pelas mazelas fiscais do Brasil. Então que se destrua o aparelho estatal, ainda que pequenas comunidades não tenham demanda suficiente para justificar o investimento privado, para os serviços básicos.

Mas o que importa, tudo o que importa, é que o piso está sendo respeitado, a lei está sendo seguida (de perto, para não falar demais) e todos estão felizes. O governo de Goiás deu ao funcionalismo algo interessante para pensar, neste fim de ano, dando muito mais significado ao seu natal... O significado do ódio, do rancor, do desejo de vingança como jamais vi em meus conterrâneos. Ou pensam que o governador usa helicóptero só por causa do trânsito, e seu secretário sem educação foi execrado dos grupos virtuais de educadores só por ciberbulling?

Se cuidem, politipatas do Brasil. A massa crítica de insatisfeitos que vocês tanto temiam e se esmeravam em evitar formar, já existe e é maior do que o necessário.

16/12/2011

Guilhermino está morto


Guilhermino corre pela praça, com avós a observar, descobrindo entre os canteiros o mundo de cheiros e formas a se revelar. Seus sonhos são pueris, mas não menos dignos de investimentos, o menino não conhece tempo, só sonha em seus doces momentos.

Olhando uma joaninha em uma maria-sem-vergonha, imagina que seja um Fusquinha filhote, e dentro dele se sonha. Sonha seu mundo tão jovem, sem prazos para cumprir, sonha com passeios em família, todos juntos a sorrir.

Guilhermino aprendeu, no entanto, que coisas bonitas podem ferir, mesmo sem querer, e que mesmo pessoas bonitas e boas podem por-lhe em pranto. Os prantos do menino são breves e passam com o sono, onde mergulha em seu mundo maior, onde ainda consegue voar, sem tempo para chorar por uma sensação de abandono.

Guilhermino cresce sem perceber sua mudança de visão deste mundo, ainda é criança e não nota, as cores permanecem em tom sempre profundo. O menino sabe relevar, é boa companhia, tem sorriso pronto e olhar meio tristonho, parece estar sempre carente e gosta de abraçar.

À margem da aspereza dos que o cercam, o menino continua sonhando com o mundo que quer. Se distrai nos jardins da praça e nele mergulha sem ver o tempo passar. Guilhermino já entende o tempo e sabe das urgências que ele cobra, por isso hoje tem um relógio, só não tem mais desculpas para se atrasar; ainda se atrasa, de vez em quando.

À medida em que cresce, alguns começam a se decepcionar, ele não está se tornando o que querem que seja. O que ele quer ser, pouco importa, importa que as expectativas criadas sejam satisfeitas. Mas não perdem as esperanças de posar ao seu lado, com centenas de aduladores ao redor, para uma photographia de capa de revista. Guilhermino, pelo contrário, quer ganhar a vida na discrição, sem alarde e sem adulação. Não que não queira prosperar, longe disso, mas quer sair às ruas com a mesma tranqüilidade que tem agora, colocar esposa e filhos no carrinho para andar pela cidade. Não é por ser risonho que aprecia a notoriedade.

Já garoto, com afazeres de sua responsabilidade, Guilhermino se esforça em continuar sorrindo. O mundo não perdoa o crescimento, mas ele mantém vivos seus sonhos, sabe o que quer e traça o caminho que pretende seguir. Solícito, é sempre o primeiro a ser lembrado para um pagamento de última hora, uma compra em loja distante, um bom meio de poupar ida e volta de táxi, já que não se importa em andar de ônibus. Mas mudou, entretanto, a percepção de Guilhermino deste mundo ferino. À medida que cresce, mais gente se decepciona, se pergunta aonde foi parar aquela genialidade, a criatividade, e todos os talentos que demonstrava em tenra idade. Só não se lembram que já não tem tempo, que a convivência é cada vez mais escassa e que as responsabilidades o chamam a todo momento. Não que se importem.

Guilhermino, rapazote cada vez mais cobrado, atolado em responsabilidades. Mas ninguém acha que são muitas, sempre que cabe mais uma. Como só o notam quando está descansando, não acreditam que seu tempo seja tão tomado. Do pouco que ganha nos bicos que consegue, deixa metade em casa. Seus sorrisos não são mais os da infância, embora ainda sejam fáceis, mas seus sonhos estão firmes, os mantém em mente para quando puder pô-los em prática. Uns são sofisticados e demandarão anos de trabalho árduo, mas a absoluta maioria não passa de cousas simples, como ter seu próprio teto e decorar o lote com mistos de flores e ervas. Sonha, Guilhermino, se é o que mantém suas esperanças vivas, sem elas a morte em vida se anuncia.

Praticamente todos estão decepcionados com Guilhermino. Esperavam que já estivesse brilhando, fazendo o que gostariam que fizesse, trabalhando com o que gostariam que trabalhasse, sendo o que gostariam que fosse. Que importa o que ele quer? Nem isso ele conseguiu! Passam a cobrar, com ar de piedade, o sucesso que ainda não mostrou.

Guilhermino se afasta de muita gente, para evitar cobranças daquilo que não prometeu. Já é suficiente a dor de ver seus sonhos se desmanchando sem terem tido a chance de nascer, seus lutos se acumulando e perceber que só pode se apoiar sobre suas próprias pernas. Refaz o roteiro de sua vida para compreender onde falhou para tantos fracassos, aprendendo aos poucos que nem tudo depende só de sua ação. Sua luz se torna mais difusa e sua lente mais opaca, ele não atrai mais a admiração que tinha quando criança. Já é difícil manter um sonho aceso, as esperanças de obtê-los escasseiam com os dias passantes, sabe que não pode contar com absolutamente ninguém, pois vão cobrar-lhe o que já fez como se não tivesse tentado, mudança de rumos como se tantas vezes já não tivesse mudado, vão cobrar-lhe o sucesso que seus primos conseguiram e ele não, como se estivesse acomodado.

A idade já madura não perdoa Guilhermino. Nem pais mais tem, parentes há muito não vê, não conseguiu constituir família e todos os seus sonhos viu morrer. Não que não tenha lutado, feito o que estava ao seu alcance, mas as lutas ingratas foram as que cruzaram seu caminho. Guilhermino não sonha mais, não vê no horizonte mais do que uma névoa densa e escura, não enxergaria sua mão se esticasse um braço à frente. Ele trabalha para se manter e levar a vida até o fim, para não ser também acusado de covarde e desertor, de fracassado e mentiroso já o causam sempre que o encontram. Mas são encontros esporádicos e acidentais, que não delonga, os laços genéticos não têm força alguma quando a dignidade é atacada. A pouca dignidade que conseguiu preservar é tudo o que lhe resta. Não tem mais esperanças de melhorias, não alimenta mais os sonhos que mal nascem e já têm óbito, nem mesmo o choro consegue ter a contento.

Guilhermino faz o percurso diário, casa-trabalho-casa sem mudar a rotina. Perdeu o gosto por qualquer entretenimento, sente-se perdido em suas horas vagas. Os desenhos, que outrora fluíam em profusão, hoje estacionam na metade, sem linhas contínuas e sem qualquer acabamento, indo invariavelmente para o lixo. Só não perdeu ainda gosto pelas músicas antigas. Às vezes ouve algo melancólico, triste, para se assegurar que ainda não perdeu sua humanidade, é o que o mantém minimamente digno, ainda se importando com as pessoas e ainda não se importando em ser-lhes útil. Dorme cedo na solidão do casebre, acorda antes de o sol raiar.

Guilhermino dispensa protestos de piedade, dispensa adulação, dispensa até mesmo ofertas de ajuda para mudar de vida às custas de e perder sua dignidade. Ele não quer compaixão. Todas as manifestações de compaixão vinham acompanhadas de um "O que você fez de errado?". Na verdade já não tem certeza alguma do que quer, faz tempo que não constitui diferença alguma, só sabe o que não quer. Não quer ter o mesmo destino do garoto alegre e sorridente, porque este, pela sobrevivência de Guilhermino, está morto.

10/12/2011

Pixadores malditos!


Ele sai, ainda tonto pela 'balada' da noite anterior, rindo. Nota algo estranho na cor do muro e vai ver. Vê e fica possesso! Não sabe como aquilo foi feito tão rapidamente em uma só noite, nem como não chamou a atenção de ninguém, mas está lá. Seu muro está completamente tomado por tinta, traços, curvas e tudo mais.

O que mais o irrita, é saber que não adianta denunciar, que certamente o autor (ou autores) o conhece e fez aquilo em represália. Jura aos brados que se vinga, mas não sabe ao certo contra quem. A indignação de ter tido seu lar violado exalta seus ânimos, ainda mais que ainda está sob efeito etílico.

As pessoas começam a aparecer e confirmam que tinham ouvido falar. A notícia se espalhou rapidamente pelos bairros da região. Isso é óptimo! Além de ter tido seu muro enchido com cousas às quais odeia, contra sua vontade, agora terá também que agüentar ser alvo de olhares da comunidade. A pintura esquisita está lá, enorme, cobrindo todo o seu muro.

Por que não respeitam o território alheio? Por que se dão ao trabalho de sair de suas casas, que devem ser distantes, só para descaracterizar um muro sem a autorização do proprietário? Ah, mas isso não fica assim! Ele vai chamar sua turma para tomar as devidas providências. Enquanto ele sai, o povo photographa, nunca tinha visto um quadro como aquele, na verdade a maioria deles tem acesso à internet, mas só para ver besteira e falar besteira em fóruns virtuais.

A turma chega e vê o estrago. Adjetivos dos mais depreciativos são soltos em profusão,  enquanto fazem lá mesmo o planejamento para o revide. Listam uma relação de residências e comércios que podem ser os alvos, elegem os prioritários (embora não saibam o que signifique a palavra) e vão à desforra.

Chegam à região pretendida e se surpreendem. Estiveram lá há poucos dias, mas está tudo muito diferente. Quase todos os muros foram substituídos por grades, e os que ficaram estão quase totalmente cobertos por trepadeiras florais, guarnecidas por estreitos gramados. E agora? O que hão de fazer?
Um cidadão aponta o dedo. Eles ensaiam uma afronta, mas logo outros fazem o mesmo e começam a gritar "Chamem os meninos, são aqueles pixadores malditos", "Ah, voltaram, vagabundos?" e eles percebem que estão em nítida desvantagem.

Não foi só o paisagismo que mudou, a comunidade local também está diferente, está unida. Eles cercam o grupo, que começa a evocar os direitos humanos, alegar inocência, pedir um advogado e tudo a que estão acostumados a fazer para se livrarem das conseqüências de seus actos. Todos começam a sacar photographias de seus antigos muros completamente pixados, repintura após repintura, eles soltam pequenos risos que despertam a ira dos mais exaltados, então começam a chorar. Vêem que agora os intelectuais que tanto defendem sua liberdade de expressão onde e como bem entenderem, mesmo que à revelia e recusa dos moradores, não podem ajudar agora.

Os meninos chegam na viatura, com a imprensa, e eles começam a se fazer de coitados por causa dos tapas que levaram, por terem rido de seu mal-feito. Mas em vez de adulá-los, desta vez os repórteres, que também já foram vítimas de pixações, lhes mostram vídeos de câmeras de segurança mostrando-os em flagrante delito. Infelizmente um deles é menor e não poderá nem mesmo ser obrigado a repintar muros, falta um mês para completar dezoito anos, embora sua reincidência contumaz vá lhe valer uma pena. Mas os outros seis, que sempre se valeram do número para intimidar as vítimas, estes poderão ser processados. A quantidade de latinhas de tinta preta em uma sacola serve de prova de suas intenções.

Na delegacia, aos olhos do conselho tutelar, o menor dispara a tagarelar, reclamando da invasão de território, do estrago que fizeram no seu muro, que é a vítima da sociedade, que é rebelde porque o mundo quis assim, porque nunca lhe trataram com amor, que queria ser como uma criança, cheio de esperança e feliz. O conselheiro lamenta, mas diz que desta vez perderam o apoio da sociedade, que já sabe que para fazer filhos ele é adulto suficiente, para assumí-los nem tanto; já são seis na fila, à espera da maioridade do sujeito, para entrar com processo de reconhecimento de paternidade.

Ele se revolta. Não admite, não tolera a menor hipótese de ter que arcar com seus actos, suas palavras e sua má conduta. Xinga seus pais, por não estarem lá para livrar sua cara, xinga o mundo por não ter lhe dado o que queria, quando queria e do jeito que queria, jura vingança e é logo alertado pelo delegado que "Tudo o que disser está sendo gravado e será usado para os devidos fins", então ele se cala.

Acusação contra o grupo? Em princípio, formação de quadrilha e corrupção de menor, mas encontrarão outras no decorrer das investigações. Um deles tem um utilitário esportivo com poucos anos de uso, incompatível com a situação econômica que alega. Ao perguntarem quem vai tirar "aquele lixo" pintado no muro, ouvem a mesma resposta que o delegado costumava dar aos moradores do bairro, mas agora com a boca cheia de satisfação:

 - Vocês. Alguém aí tem provas? Suspeitos? Tem? Então a Guernica de Picasso é de sua responsbilidade.

Os detidos são encaminhados às celas que lhes cabe, exceto o ainda menor, que fica preso às vistas de todo mundo por não poder ser encarcerado com maiores de idade. Ele tenta esconder o rosto, enquanto a reportagem faz seu serviço e grava depoimentos. À pergunta de como aquele quadro foi pintado tão depressa, um cidadão diz que se valeram das facilidades da tecnologia moderna, encomendaram um decalque gigante e o aplicaram em minutos, com a ajuda de uma dúzia de vizinhos. Agora, unidos, são vizinhos.

06/12/2011

Ornitorrinco da páscoa


Nicolau abre a primeira cartinha e estranha o nome do remetente: Coelho da Páscoa. Lê com urgência...

 - Querido Nicolau, desculpe incomodar, mas o assunto é sério. Eu quero um substituto. Eu sei, já apareceram vários desenhos animados idiotas sobre "o coelhinho que desiste da páscoa" e tudo mais, mas o meu caso é sério mesmo.

Sabe, eu não me importo com uma criança pensar que eu sou ovíparo, aliás, um vegetal ovíparo, que bota ovos de chocolate. Tudo bem, a fantasia faz parte do amadurecimetno. Charges jocosas eu tiro de letra. Mas a cois não é por aí. A páscoa deixou de ser o que era, Nicolau. As crianças não se preocupam mais em esperar o domingo pascal, procurar o ovo pela casa e fazer aquela festa quando o encontram. Elas estão virando verdadeiras pipas, comendo quilos de chocolate ruim, cheio de gordura hidrogenada, se empanturrando tanto que nem dão bola para o dia, menos ainda para a mensagem que ele dá.

O pior é que isso vem dos adultos, eles não dão a mínima para o fator surpresa, para a expectativa, pra porcaria nenhuma! eles compram o ovo por causa do brinquedo horroroso, feito com mão-de-obra semi-escrava que o acompanha. A criança nem vê que está comendo aquela porcaria gordurosa com aroma de cacau, enquanto manipula a bujiganga. Resultado: come demais, passa mal e todo mundo culpa a páscoa, mais precisamente a minha pessoa.

Isso não bastassem os ataques directos. Eu estava vistoriando uma plantação de cacau, quando um cara me pegou e insistiu para que eu lhe desse um ovo. Aliás, ele queria me ver botando um ovo! como eu não o fiz, me colocou num galinheiro, pra ver se o galo me fertilizava. Fiquei três meses com marcas de esporões pelo corpo, já há uns dias o meu pelo voltou a ser o que era.

Doutra vez eu tive sorte de estar alerta e correr, porque um maluco queria enfiar um pegador de macarrão na minha "cloaca" pra tirar um ovo na marra! Ele queria me virar pelo avesso! Os únicos ovos que encontraria, ele não iria querer comer.

Isto é cousa que vem acontecendo há décadas, Nicolau. Eu estou cansado! Quero voltar a ser um coelho normal, ter uma morte digna nas presas de um predador natural, ou (de preerência) de velhice, na floresta. Não quero morrer estripado por um psicopata chocólatra. Para não dizer que eu estou abandonanco o barco ao léu, sugiro outro bicho para me substituir, o ornitorrinco. Pensa bem, ele é carismático, é raro, endêmico da Austrália, bota ovo de verdade, enfim, tem tudo para ser o bicho da páscoa perfeito! E por ser endêmico, ninguém vai procurar um ornitorrinco para ver se bota ovos de chocolate. E ele sabe se defender! Ele nada com maestria e se vê livre de caras como os que me perseguiram, numa boa.
Pensa com carinho, Nicolau. A gente se conhece desde que o Arquiteto começou a juntar poeira estrelar para formar este planeta, quando ainda éramos apenas idéias vagas de amor e fraternidade, para uma humanidade que estava longe de existir, e que ainda hoje não aprendeu a lição. Você sabe que eu não nego fogo no trabalho, mas já faz tempo que o meu perdeu o sentido.

Dada a ugência, Nicolau manda Rudolph buscar o amigo, para conversarem pessoalmente...

 - Coelho, você já conversou com o Perna-Longa?
 - Já, ele disse que eu não agüentaria um mês longe das minhas funções, mas não me deu maores detalhes.
 - Isso porque ele mesmo já tentou pendurar as chuteiras. Você não suportaria um mês longe dos preparativos para a páscoa, que não tardam a começar.

Dá-se uma pausa para reflexão e medição das palavras...

- Coelho, eu poderia atender o seu pedido, mas não devo. Esta missão é sua. Espere eu terminar, por favor. Faz umas décadas que eu pensei em desistir também. No começo eu mandava brinquedos para quem merecia, dando prioridade par as crianças mais pobres. Eu não dava porcarias que quebram com uma semana de uso, nem coisas que se podiam usar para tripudiar, exibir poder econômico, enfim. Os brinquedos serviam como argamassa para unir a familia em torno da criança; ajudar a edificar o lar, como dizem as pessoas. Mas há um século a revolução industrial mudou as coisas. Eu esperava que mais crianças pudessem ter acesso a bens de consumo, para suprir suas necesidades físicas e intelectuais, mas aconteceu o contrário, demitiram os pais das crianças para que elas fossem contractadas pela metade do salário, como aconteceu com as mulheres. Foi um desgosto imenso. Até a segunda guerra mundial, o quadro só piorava. Com o fim dos conflitos, parecia que tudo tomaria rumo, mas foi efêmero, logo as pessoas voltaram a se virar para seus umbigos, e as crianças voltaram a ser apenas peças de um quadro que queriam ver.

Quando Haddon Sundblom se usou como modelo para criar o 'Papai Noel' padrão de hoje, eu vi naquela doçura de traços um fio de esperança, mas insuficiente para apagar minha decepção. Ele fez a ilustração pensando na neta. Foi quando o Arquiteto me chamou para uma conversa, pelos idos de 1972. Ele me mostrou o sorriso das crianças pequenas, ao verem aquele vovô barrigudo, de bochechas rosadas e semblante doce, mesmo que só por um cartaz. Eu vou te repassar o que Ele me disse.

Coelho, nosso trabalho não é consertar o mundo, não é acabar com as guerras, não é dar oportunidades de trabalho digno para todos, não é promover o entendimento entre as nações. O nosso trabalho é o que já fazemos. Nós somos apenas ferramentas, peças para fazer tudo funcionar. Pacificar o mundo, dar justiça social, unir os povo é trabalho para os homens. Se você for embora, as coisas não só não melhoram, como tendem a piorar, porque a frieza calculista que muitos teimam em chamar de intelectualidade tenderá a dominar o mundo, e você sabe que ser frio e calculista é atributo de todo psicopata. Você não quer que todas as crianças se tornem adultos psicóticos. Os arquétipos surgidos de criaturas como nós, embora usadas de modo leviano e irresposável pelo comércio, são de suma importância para a cultura ocidental, e hoje para boa parte do oriente também. Nossas imagens são a única referência de bondade e caridade que muita gente tem. Sim, é uma referência calçada no estereótipo de uma fantasia, mas é tudo o que eles têm. Até a extinta União Soviética permitia a divulgação de nossas figuras! À moda deles, mas permitia. Sem nós, muita gente perde tudo o que tem, tudo o que lhes dava uma razão para continuar vivendo.

Essa conversa de que as crianças se desesperariam se algum chateu ou um dogmopata declarasse que estamos mortos, não é mito. Muitas crianças ainda crescem acreditando que sendo boas e se esforçando, receberão sua recompensa. Mesmo com o choque da adolescência, essa base pode moldar um adulto saudável, sem muitos apegos ao passado e sem muitos rancores do mundo. Infelizmente muitos adultos se negam a assumir seus papéis de pais e trocam a convivência por dinheiro. Lamento, mas não faz parte de nossas atribuiçõs interferir, já somos muito ocupados em manter focos de civilidade e fraternidade. Às vezes aparece alguém que entende realmente o que fazemos e nos utiliza para os fins devidos, então podemos agir um pouquinho, mas é só. Se você acha que o mundo comercial é tão ruim, é porque não teve tempo para ver como são tratadas as crianças presas em ditaduras que se dizem populares. Aqui, pelo menos, nossas figuras estão vivas e podem suscitar algo de bom. Nosso sumiço não vai melhorar absolutamente nada, Coelho. Deixe o comércio de lado, ele não é de nossa alçada, nem dependemos dele para viver; já existíamos como folclore séculos antes. Mas ele, sem nós...

 - Desaparece. Vai à falência. Quebra.

 - Um dia as pessoas verão quem realmente depende de quem nessa história. Até lá, continue na sua seara, que há muito mais em risco do que os adultóides metidos a intelectuais acreditam. Além do mais, quem é que vai querer cantar "ornitorrinco da páscoa, que trazes pra mim...". Coelho, ornitorrinco não dá pulinhos! Se ele carregar os ovos, vai lambrecar tudo, porque ele anda mais rápido nadando debaixo d'água. Vou providenciar a segurança para você fazer seu serviço em paz, mas esquece essa história de abandonar a páscoa.

O coelho pensa, balança um pouco as orelhas e concorda. Vai embora, que os preparativos apra a páscoa começam antes do ano novo.

02/12/2011

Difícil de entender

Como assim, não está entendendo?

Faz não mais do que dois meses, lembrei-me hoje de um episódio que presenciei dentro do ônibus.

Dois cidadãos estavam conversando, deu para entender que moravam ambos na cidade, quando um perguntou se o ônibus passava em certo lugar. O outro não entendeu. Ele insistiu, talvez na tentativa de ser mais didático, mas foi em vão. O que pude ouvir con clareza é que um perguntou de o "oimbu" ia até certo ponto, enquanto o outro 'achava' que ele tinha entrado no "ombz" errado.

Embora em nenhum momento tenha havido animosidade, a frustração de ambos era patente, por não conseguirem se entender. Um deles desceu sem que tivessem entrado em um acordo, e sem que nenhum dos dois tivesse dito 'ônibus', entre outras expressões que os fazia parecer serem de países diferentes. Mais ou menos como se um brasileiro aprendesse um pontunhol mal arranhado e tentasse conversar com um argentino; mas eles moram na mesma cidade. Imaginem se a discussão fosse sobre mulheres, não duvido que um interpretasse que o outro estivesse se insinuando para a sua.

Não muito tempo depois, indo para um dos encontros interclubes de veículos antigos (todo último domingo de cada mês, exceto em Dezembro, das 09h às 13h, no mercado coberto da Paranaíba; prestigiem) presenciei novamente a cena, duas mulheres, aparentemente jovens, entre vinte e sete e trinta anos, eu diria. Ambas com novas e bizarras variantes da palavra 'ônibus' que ninguém mais entendia, além delas mesmas. Novamente não se entenderam.

Para não dizerem que é só nos hospícios sobre rodas que isso acontece, já ouvi na rua, do meu quarto, uma discussão acalorada entre dois indivíduos que não se entenderam, e no final perceberam que estavam dando nomes diferentes ás mesmas cousas. Pararam de discutir a um passo de se agredirem.

Não pensem, os mais jovens, que 'antigamente' não havia gírias e bordões de grupos restritos, havia, mas ninguém se esquecia do vocabulário básico da língua oficial do país, assim até mesmo o diálogo entre um gaúcho e um amapaense tornava-se possível, com pequenos esclarecimentos no decorrer da conversa.

Não é de hoje que o relaxamento com a língua vem acontecendo, mas é recente o apoio oficial. Aliás, está do jeito que a politipatia brasiliense gosta. A deforma ortographica não foi aprovada à toa.

Há uns dez anos, uma senhora, dentro de um dos famigerados terminais de ônibus, me preguntou se "esse oimbus vai pro framboã" (sic) apontando para um que estava parado. Compreendi que ela quis dizer 'Flamboyant', o shopping center, mas só porque tinha apontado para o ônibus. Na pressa cotidiana, eu dificilmente teria podido ajudar, não haveria tempo para analisar o contexto.

Contextualizar é um exercício que pratico desde muito cedo, porque desde meninote eu philosopho a respeito da compreensão alheia. Eu não tinha certeza de que a interpretação que meu cérebro lesado faz de uma bola (por exemplo) é a mesma que os outros fazem, não sou clarividente para saber disso. Ainda que tomógrafos consigam detectar reações electroquímicas, ele não diz o que a pessoa está vendo, cabe muita interpretação ao neurologista... Se ele for experiente. Sei que o que sai de minha boca é mais ou menos o que qualquer um compreende, porque provavelmente há um mecanismo de correção para isso.

Mas nenhuma artimanha cerebral, mental, animal, philosophal consegue driblar um idioma desconhecido. Piora se este idioma não for catalogado. Esculhamba tudo se for um idioma criado pela indolência verbal, porque então só o grupinho ao qual o sujeito pertence o compreende. O mais interessante é haver gente achando lindo tudo isso. Eu gosto de ver sotaque e expressões regionais colorindo e enriquecendo a Língua, mas não é este o caso. Expressões regionais são resultantes de épocas em que não havia telecomunicação que não fossem carta e telégrapho, mas a maioria das pessoas era totalmente analphabeta, então tinham que inventar elas mesmas os nomes para o que fazia parte de seu mundo. Esses nomes, por meio de viajantes e escritores, viajavam pelo país. Não só isso, são nomes que uma região inteira compartilhava, não um grupo de um bairro.

Há uma diferença considerável entre criar uma neologia, que demanda um certo grau de intimidade com o idioma, e começar a falar de qualquer jeito por preguiça. O primeiro sabe o que está fazendo e o faz pela necessidade de comunicar com mais precisão o que o vocábulo comum falha. Por saber o que fez, sabe explicar o que é e não se esquece da relação palavra/significado padrão do país. O segundo simplesmente se acomoda, quase sempre não lê o que não o apraz e fica restrito ao seu círculo pessoal. Com o tempo deixa de usar as palavras da Língua e até se esquece delas.

Não, eu não estou teorizando, eu acompanho os acontecimentos há uns vinte anos ou mais, dar nomes aos bois seria falar também de conhecidos, amigos e parentes. Coincidentemente, com o desleixo para com a expressão, veio também o do entretenimento, passaram a tolerar mais facilmente o mundo-bunda e o mundo-cão da televisão, bem como aqueles 'sertanejos universitários' com refrões mais machistas do que os antigos e legítimos sertanejos; que já os estavam abandonando. Os jornais impressos (e depois online) não demoraram a ter os mesmos relaxamentos, abusando de erros crassos de ortografia, de conjugação, de coerência entre duas orações do mesmo texto, muitas vezes demonstrando que apenas copiaram e colaram uma tradução porca, sem se darem o trabalho de ler e escrever algo a partir do material recolhido, que daria até mesmo um texto mais enxuto e interessante, em vez de um atestado de fuga do mobral.

Antes de qualquer reação contrária, esclareço o que significa a palavra mais deturpada da história recente: hipocrisia. Hipocrisia é o fingimento social para ser aceitável em um grupo, não é 'pensar diferente do que eu penso' ou 'não fazer o que eu faria mesmo contra a lei'. Fui franco em cada linha que escrevi, como o sou em todos os meus textos, quem não acreditar faça-se o favor de procurar um blog que o agrade e não retornar, porque não serei hipócrita para ser bem aceito na patrulha do (esta sim, um ninho de hipócritas) politicamente correcto, dizendo que tudo o que sai da boca do cidadão é livre expressão de pensamento. Muitas vezes o que sai é o resultado da completa falta de raciocínio daquilo que se diz, por falta de hábito e visão de causa-conseqüência; aqueles não conhecem o cidadão, não saem de seus discursos e teorias.

Nosso povo está ficando preguiçoso, viciado em facilidades nocivas, o relaxamento verbal é só um reflexo disso. Como conseqüência, está tamém ficando obeso, com doenças normalmente relacionadas à idade avançada acometendo crianças, além de jovens aparentemente saudáveis. A preguiça está presente até na hora de comer, quando a maioria seria incapaz de detectar a troca do sal de cozinha pelo de amoníaco, até que começasse a queimar a laringe, porque mastigou mal, depressa e com a boca aberta, o que limita muito o trabalho do paladar.

Existem meios educados, civilizados à nobresca, de mostrar ao condidadão que ele cometeu uma gafe, eu me valho desses meios e quase sempre sou compreendido. Respondo, por exempo "Ah, o ônibus para o Flamboyant? É este aí mesmo". Eu não sou obrigado a deteriorar meu vocabulário, mas preciso ser cortez com a pessoa, porque ela não percebe que é massa de manobra nas mãos de demagogos. É dando exemplo que eu consigo a cooperação de que necessito. Cada um tem seu jeito de falar, mas o idioma que temos é um só.