25/11/2006

Guarde um pouco para o carnaval

Dezembro é reconhecidamente o mês em que os sentimentos de fraternidade mais afloram, e isso não é plágio de propaganda de tevê, as instituições filantrópicas atestam. Infelizmente elas também atestam que toda essa nobreza de espírito desaparece nos primeiros acordes do carnaval; as despensas esvaziam, os armários de remédios ficam às moscas e os assistidos caem com o choque de, sem mais nem menos, verem aquela fartura de doações e visitas desaparecerem como que por encanto.
Não estou fazendo campanha contra a diversão alheia, longe de mim, embora não participe da folia. Estou dizendo que a fraternidade não precisa estar presa a uma época, assim como a alegria não precisa estar presa às vésperas da quaresma. Não há lei que regule isso.
Notemos que as pessoas parecem ansiar por coisas que poderiam fazer no cotidiano, como dançar um pouco, depositar cinco reais na caixinha da igreja (chega daquelas notinhas de um real já cheias de remendos, pelo amor de qualquer coisa!), abrir mão de um happy hour para ir ver os filhos ainda acordados, dar um presente singelo sem a permissão da sociedade por não ser a época "adequada", abrir mão de um jogo para visitar uma creche. Tudo isso pode ser feito ao longo do ano, dando satisfação permanente, fazendo o capital girar permanentemente, diluindo o desejo de se entregar aos excessos, como se fosse a última oportunidade de abraçar alguém e cantar com ele.
Na época do carnaval a mendicância (constactação pessoal) cresce, as pessoas andam tão imersas em seus impulsos biológicos que se esquecem até do que estão fazendo daquele momento. Falta dinheiro para pagar os impostos à vista, mas surge do nada para encher a casa de garrafas de cerveja; Viaja-se longe para usufruir, com muito mais riscos, daquilo que muitas cidades oferecem em suas praças e lagos, praticamente de graça... Para não dizer de graaaaça, os petizes vão querer comer, mas com certeza será mais barato do que nos "points" badalados. Aliás, levar uma criança para um lugar onde ela vai se perder, se ferir ou coisa pior, é mesmo querer desocupar um cômodo em casa.
Os recursos aplicados na diversão e os aplicados na solidariedade fazem a economia girar do mesmo jeito, só que neste é com menos holofotes e menos criminalidade. Não estou vinculando as duas coisas, mas elas têm o mau hábito de se encontrarem em vias públicas. Pode-se organizar um baile no próprio bairro, que sairá ao gosto de quem vai, o que aproximaria em vez de afastar famílias. Não precisa esperar pelo natal para festejar com a sua gente, nem precisa encerrar por lá a convivência. Essa mesma convivência estimula olhar para além do umbigo, fazendo notar que as pessoas ajudadas em Dezembro não desapareceram com a virada do ano, elas ainda estão lá, um pouco menos famintas por enquanto, mas estão lá. Estão esperando alguém dizer que há vagas, mas enquanto isso não acontece, qualquer biscate já ajuda, muitos concordam em trabalhar por um prato de comida, se é o que pode oferecer pela capina ou por vigiar o carro. Estômago cheio inibe idéias arriscadas, como praticar um assalto, pois a fome (biológica ou não) é o primeiro vagão da criminalidade, que gosta de trens longos.
Sobra panettone na virada do ano, sobram brinquedos na virada do ano, sobra todo tipo de coisas que acabam sendo vendidas com descontos e vantagens. Não precisa abrir mão do chester e do champanhe, basta guardar um pouco, deixar a extravagância para o próximo natal (que será mais próspero, acredite e trabalhe nisso) e depositar em uma poupança ou porquinho o que foi economizado. Não só as finanças domésticas, mas também aquela carinha com uma janelinha no sorriso vai agradecer. Não só pelo novo presente, mas por não ter sido esquecida, por ter sido chamada pelo nome (ninguém se chama "psiu, coisinha") e por poder contar a mais alguém como foram o seu natal e o seu reveillón. Não quero ser piegas, mas estou compelido a sê-lo. Aquela carinha sapeca vai crescer e vai se lembrar do teu rosto, se te encontrar na rua. Elas sempre se lembram, nós é que damos pouca importância ao que fazemos por elas, acreditando que também vão se esquecer. O real dado àquela criança será restituido de uma forma ou de outra, e poderá ser a diferença entre a gargalhada de escárnio e o socorro que vai lhe prestar. Quem disse que dinheiro não conta? Se aplicado no autruismo, conta deveras.
Não fosse o bastante, é no povo que os políticos se espelham. Quanto mais egoístas somos, mas eles se sentem no direito de ser. Quanto mais equilibrados e autruístas formos, mais eles se verão na obrigação de ser, sob o risco de perder eleitorado. Não dependem deles as mudanças pelas quais esperamos, dependem de nós. É o povo e ninguém mais o guardião da liberdade e da democracia, que começam em casa, no cotidiano, em actos simples como não deixar a egrégora natalina perecer na virada do ano.

9 comentários:

Elizabeth disse...

"Melhor que dar o peixe é ensinar a pescar" é uma boa mensagem, mas ajudar alguém na hora em que este mais precisa também é importante. E é algo a ser feito todos os dias, não apenas no fim do ano. Parabéns pelo texto!!!!

Nanael Soubaim disse...

Há pessoas tão famintas e combalidas que não têm forças para segurar o caniço. Antes de ensinar leis e moral, aquietemos o estômago.
Volte sempre (O\_!_/O)

Ana Martins disse...

Ultimamente o Natal tem me irritado bastante. Pessoas que te ignoram o ano inteiro aparecem no Natal, do nada, falando o quão você é especial. E isso me irrita. Se eu realmente fosse especial, prestariam atenção em mim, e não só no Natal, e não só pra comentar o quanto eu ando relaxada e preguiçosa, por exemplo, criar alguma historinha tola e espalhar pra Deus e o mundo.

(Nossa, pareceu bem ressentido esse comentário, né. Mas não sou daquelas que estragam o Natal dos outros, não. Até porque eu já gostei bastante do Natal!)

Adorei o texto! Bjos!

Nanael Soubaim disse...

O espaço está aberto e ao teu dispôr, minha amiga.

Anônimo disse...

Solidariedade devia ser um hábito como escovar os dentes: automático. Pena que não nos damos conta disso (e me incluo nesse grupo).
Ainda bem que temos anjos como tu para nos lembrarmos de acolher corações e estômagos alheios.
Excelente texto.

Anônimo disse...

Eu queria assinar o post anterior mas não consegui (definitivamente não nasci pra internet!). Um beijo, Samanta

Anônimo disse...

continua escrevendo bem como sempre.
ah, pode deixar que não vou pilotar com roupa de Betty Boop não. rsrs
Meu namorado ia me matar. hehe
não quero causar acidentes.

Nanael Soubaim disse...

Se ele iria, tenho minha dúvidas,(talvez até aderisse ao gênero easy rider contigo) mas as peruas encruadas certamente pediriam tua cabeça 8)

Mymi disse...

As pessoas só deixam pra fazer "caridade" no Natal, talvez por isso estar intimamente ligado ao décimo terceiro salário.
Um saco isso!

Não li o texto todo, mas concordo com boa parte do que eu li. ;)