09/12/2006

Serena

Ela nasceu tão frágil e pequena, mas também tão serena, quão feliz nós ficamos! Quase não chorava, também pouco sorria, mas o tempo se encarrega de devolver a alegria.
Passou o tempo e minha filha tão serena foi se tornando tão linda e tão educada. Mas pouco interagia com as crianças que chamavam para brincar, conversar, ela nunca ia.
Aos dois anos já falava com perfeição, seguindo os meus exemplos cuidadosos expressava um português maravilhoso, dizendo naturalmente versos dos mais primorosos.
Mas minha filha tão querida, se ao mundo encantava, dele parecia isolada, com a alegria perdida. Indiferente aos aniversários, indiferente aos esforços que fazíamos para agradá-la, sempre calma e compenetrada com seus olhares plácidos.
Por anos em terapia psicológica e médica, nem autismo, nem neuropatia ou qualquer anomalia que justificasse sua conduta tão métrica. Eu estava aflita, embora ela não.
Aos cinco anos já falava dezesseis idiomas, em todos alphabetizada. Começou a se corresponder com gente de fora, me deixando aliviada, mas permaneciam os sintomas. Seu sorriso era meigo, mas seu humor muito leigo.
Certa feita um espanhol veio para conhecê-la, se dizendo apaixonado pela dama tão nobresca que escrevia deste endereço. Chocou-se ao ver que a dama (rio ou choro?) de cultura nababesca era só uma criança que as fraldas mal havia deixado. Ele mostrou consternado as cartas tão bem escritas, de caligraphias tão bonitas, de conselhos tão sábios que o levaram a querer ouvir aquelas palavras de seus lábios. O pobre homem voltou desolado à Cataluña, nunca mais deu recado.
Serena crescia tão bela e inteligente, mas tão ingênua ao meu ver, parecia tristonha no que tinha a dizer, me perguntava onde teria sido negligente.
Na escola os amigos, tanto quanto os mestres aturdidos, se sentiam inibidos com o conteúdo de suas palavras que, para eles, tinham pouco sentido. A verdade é que Serena, em sua placidez, não travava diálogos com qualquer um mais jovem que seus pais, o que acentuava mais sua imensa lucidez. Mas saiu daquela escola que nada tinha a acrescentar, a aluna se tornara mestra dos que iam lhe procurar.
Uma noite, não me lembro qual, minha filha veio a mim no esplendor de seus doze anos perguntar qual era o meu mal. Me encontrara chorando sem poder disfarçar o meu rubror. Ela me olhou nos olhos e o que descrevo agora foi a mais poderosa experiência que já me abateu; Seus olhos castanhos luminesciam, quase me cegavam de tanta luz, mas também me prendiam, me obrigavam a ser sincera a despeito da vontade de preservar minha filha da aflição e receio que agora se calavam. O assombro era maior. O olhar sereno, penetrante, mas também calmante me deixou sem chão e contei. Ela sorriu como raramente faz e me falou "Eu? Eu triste? De onde tiraste tal disparate? Só porque não canto pela casa nem choro por garotos? Eu sou feliz". Tal afirmação me deu tremor, queria chorar e chorei, não sei se de alívio ou o que for, e ela continuou: "Eu sei que difiro, que a muitos assusto, mas é o que sou e não há recurso. Não penses que não tenho percebido tua tromba e tua preocupação, mas precisava te encontrar desarmada para ouvir não tua boca, mas teu coração, porque este não zomba se está ferido. De hoje em diante, vamos combinar, todas as noites vamos à varanda para conversar, desarmadas".
Na primeira noite eu não sabia o que falar, ela falou e me fez perceber que o problema que pensava estar em minha filha, na verdade era meu e não queria reconhecer. As tristezas que via nela eram minhas, meus sonhos frustrados, minhas flores secas, minhas ervas daninhas. Ainda assim não se poderia desmerecer o facto, Serena era diferente, e neste mundo quem é direfente tem primazia em sofrer.


Chegaram os quinze e Serena era quase uma mulher. Aceitou a festa, mas que fosse discreta, som baixo, sem um luxo sequer. Minha filha era austera e muito elegante, apareceu de toilleur branco e azul, com luvas e coque. Que choque. Os convidados babavam, mas por respeito ante a dama que se mostrava sem medo o seu jeito. Em pouco tempo, dos trinta que vieram, seis ficaram e souberam respeitar os recatos de meu rebento.
Meu marido trouxe um computador, instalou banda larga e entrávamos na era da internet. Menos de uma semana depois, Serena estava empregada, trabalhando pela rede. Trinta idiomas fluentes, mais dialetos diferentes, ligava Pequim à Nova Iorque, Munique à Moscou, Brasília à Berlim. Ganhava. Ninguém queria saber de sua idade, só de sua eficiência e disponibilidade. Mas nunca teve uma vida social de verdade, o que lhe confessei noutro fim de tarde, ela respondeu com serenidade "Mãe, não se preocupes com a transitoriedade. Esse trabalho é efêmero e logo começa o meu de verdade". Não compreendi o que ela quis dizer, mas antes de perguntar ela se pôs a esclarecer "Vocês dois não são muito religiosos, não sei se vais acreditar; sou tua avó, Batatinha. Estou na terra em missão e precisei reencarnar".
Não dormi naquela noite. Ninguém mais sabia do apelido que tinha quando muito criança, só minha avó me chamava de "batatinha", quando estávamos sozinhas. Procurei esquecer para não enlouquecer.

Minha irmã apareceu para nos convidar para uma comemoração do centro que freqüentava. Foi dar um abraço na sobrinha que ao computador trabalhava "Você vem, não vem?", "Vou", respondeu de pronto "Só não se esqueça do quindim, guarde ao menos um para mim", "Gente, a sua bisavó adorava quindim! Vou fazer uma fornada só para você". Fiquei assustada.
No sábado em questão, estávamos lá, Serena nucleando toda a atenção. Moça alta, de beleza rara, modos finos e cultura vasta. Quase se esquecia de sua idade. Mas fui me enturmando, me divertindo, esquecendo que era mãe de minha avó. Até que Serena chamou a todos para uma prece, nada mais natural em uma comunidade religiosa, mas nós nunca tínhamos rezado em casa. Ela começou "Pai, faça deste espírito o instrumento de Vossa vontade. Faça destes olhos os faróis de Vossa luz ao mar bravio deste orbe. Faça desta voz o clarim possante de Vossos ensinamentos. Permita que o Vosso amor nos cubra com a luz mais pura, que nossas sombras sucumbam ao bom uso de nossos arbítrios, que a sabedoria sublime da humildade nos torne os reis e rainhas que já fomos um dia. Pai, se estamos aqui é por nossos erros. Permita-nos beber na fonte fecunda de Vossa verdade absoluta, permita que nossos inimigos encontrem a paz, que nossos filhos trilhem o caminho da verdade e do amor incondicional. Pai, não sou mais do que uma fagulha semi-apagada de Vossa criação. Acenda minha luz para que eu possa levá-la aos irmãos que dela carecem, permita que meu pão possa alimentar a todos os meus semelhantes, para que ninguém saia da minha presença sem estar melhor do que quando chegou. Não peço, Pai, senão que me auxilie na jornada efêmera que ora trilho no orbe terreno, para que não ceda aos encantos pérfidos que o mal nos oferece. Este corpo não me pertence, Pai, por isso me resigno à sua perda quando for de Vossa vontade, até quando cuidarei dele para devolvê-lo na melhor forma possível. Pai, afaste de mim a ilusão, deixe que o amor ocupe o lugar da paixão, que o vigor e a persistência tomem o lugar do entusiasmo, que o gosto pelo conteúdo ocupe o lugar do vazio que nos vendem. Não Vos peço mais do que as condições para lograr êxito em minha missão, porque compreendo que Vós e eu somos uno, pelo que a minha felicidade é a Vossa felicidade, a minha dor é a Vossa dor, que me maltratando maltratarei também a Vós e a todos os meus irmãos. Agradeço, Pai, por ter retornado e recebido mais uma chance de reparar as minhas faltas, e se tenho algum defeito é porque o que me falta me poria em desnecessária tentação, conforme disse nosso Mestre Jesus. Muito obrigada, Pai, por ser Vossa filha!". Não suportei ter ouvido aquilo sem chorar. Quando enxuguei as lágrimas vi que mais gente também chorou. Compreendi que ela não era minha avó que voltou. Pois nosso parentesco é apenas um papel que se encerra no acto funesto, mas os laços que douramos persistem. Para a maioria presente era difícil vincular a sabedoria exibida ao aspecto vigente: rosto delicado, corpo perfeito, estatura elevada, cintura fina e boas medidas de quadril e peito. A beleza personificada era minha filha alí nobrescamente apresentada.

Hoje sou avó, nem cinqüenta anos completei quando minha neta entrou para a escola. Serena não se abalou com a viuvez precoce, "Era a hora de ele descansar" me disse de uma vez só. Se ela não parecia uma criança comum, eu deveria ter percebido, é que não há criança comum. Meu medo de ela fugir ao padrão me fez sofrer, por mim mesma ainda que não quisesse adimitir. Padrão se aplica à manufatura, jamais a uma filha ainda mais tão doce e pura. Por não me preocupar com o que os outros vão pensar, estou hoje mais jovem do que na infância que pus a lembrar. Seu único homem foi o marido, mas algumas de suas amigas foram mães ainda solteiras, nem por isso as tratava diferente, formando com elas uma equipe de obreiras. Piscina e biquini, tardes de entretenimento, Serena faz de tudo, só não comete as faltas de que tem conhecimento.
Pai, permita que eu tenha aprendido uma fração do que essa menina me ensinou
.

Um comentário:

Anônimo disse...

Juro que fiquei arrepiada na parte da oração. Ótimo texto.
Bjos Samanta