29/05/2023

Astolfo, o burocrata.

 

(Andy Mayo and Pansy The Horse  em um show de variedades dos anos 1940)

- Samira! Onde está a manteiga?

- Está na geladeira, onde mais estaria?

- Estou junto à geladeira e não estou vendo a manteiga!

- Como assim, não está vendo? Está no mesmíssimo lugar onde sempre colocamos! Na primeira prateleira, para ficar fácil de visualizar!

- Pois eu estou olhando dentro da geladeira a nível de primeira prateleira, mas não estou vendo nada enquanto manteiga!

- Misericórdia! terei que ir aí DE NOVO e esfregar a manteiga na sua cara, Astolfo?

- Pois venha e provarei que ela não está aqui! Você sempre negacionista! A manteiga não está no meu campo visual, portanto...

- Quer mesmo que eu largue meu afazeres para te mostrar o que está na sua frente?

- Não está na minha frente, ou eu a veria! Na minha frente está a geléia de carambola, de que eu não gosto e portanto quero a manteiga, que eu não estou vendo e portanto não está aqui, junto à geladeira a nível de resfriamento alimentar...

- Pronto, pateta! Aí está a manteiga, onde sempre esteve desde que chegou do supermercado!

- AAAAAHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!! SAMIRA! O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ!!!!

- Te mostrei a manteiga, seu histérico!

- Você tirou a geléia do lugar! A geléia estava no lugar estratégico para quem quer comer geléia a encontrar? E agora, como quem quer comer geléia enquanto passar no pão, vai encontrar a geléia...

- Fazendo o que você não fez, oh, intelectual de copia-e-cola! Virando um pouco os olhos e encontrando-a em questão de segundos!

- Mas você tirou a geléia do lugar! O lugar da geléia...

- O... lugar... da... geléia... agora... é... ESTE... Astolfo!

- Nossa, Samira... pra quê tudo isso? Não faça guerra, faça amor...

- Qual é o seu problema, estafermo, não consegue sair um milímetro da caixinha? Com diabos você conseguiu tirar a habilitação?

- Eu passei em todos os testes e procedimentos junto ao Detran, ao nível de exame comprobatório capacitivo enquanto postulante, portanto eu sei dirigir...

- E bate o carro toda semana.

- Eu estou certo! Os outros é que está errados! Eu não vou abrir mão dos meus direitos enquanto motorista para que um infrator negacionista das leis de trânsito...

- Então você prefere bater o carro a se prevenir com direção defensiva?

- O outro é que me agrediu, Samira! Eu tenho o direito de atravessar a esquina, parar no meio dela, olhar para os dois lados e só então engatar a primeira marcha e...

- Pelo amor de Deus, Astolfo, isso é regra para pedestre!

- Todo motorista também é pedestre! A nível de humanidade, todos nós saímos do carro e então voltamos a andar, então estamos novamente em situação de pedestria, logo as recomendações para pedestres também valem enquanto motorista...

- Você atrapalha o trânsito, idiota! Já levou mais de cem multas por isso!

- Recorri de todas enquanto cidadão de direitos...

- E perdeu todas!

- Não importa, o que importa é estar estando exercendo os meus direitos garantidos pelas regras constitucionais a nível de luta! Os outros é que infringem as regras de trânsito, os outros é que desrespeitam meus direitos e batem em mim!

- Aqueles postes também?

- Aqueles postes não deveriam estar estando lá, a nível de obstrução, infringindo meu direito de ir e vir, garantido pelas leis constitucionais e pelas regras de trânsito!

- Seu carro é 2020 e está caindo aos pedaços! O meu é 1978 e está como quando saiu da loja! Será que isso lhe diz alguma coisa?

- Sim, que você está promovendo a insegurança e o agravamento do efeito estufa! Carro sem 35 airbags e frenagem premonitória e reversor milagroso de gases do efeito estufa, nem deveria continuar a existir! Você não sabe que a humanidade está destruindo o planeta e portando deveria ser destruída? Quem agride é que deveria ser penalizado! Matamos o meio ambiente, então sem anistia para a raça humana a nível de...

- Dê o exemplo.

- Hein? Que exemplo?

- A humanidade não deve ser destruída? Então dê o exemplo! Mate-se!

- Samira! Que absurdo é esse? Você está promovendo discurso de ódio!!!!

- Dizer que a humanidade deveria ser destruída não é?

- Não, não é! É resgate a nível de reparação histórica enquanto preservação ambiental! Temos que preservar a natureza, não a humanidade!

- E a humanidade não faz parte da natureza?

- Não! Segundo pesquisas feitas por pós-doutorados financiados por governos, e portanto livres da pressão empresarial, a humanidade está destruindo a natureza, o clima e a diversidade! As autoridades afirmam com base em relatórios de acadêmicos prestigiados que precisamos mudar nosso modo de vida! Quem destrói não faz parte!

- Deus, dê-me paciência, porque se me deres força eu esfolo esse cara...

- Não mude de assunto! Não ponha religião no meio dessa discussão ampla, democrática e inclusiva! Estamos aqui decidindo o que faremos para salvar o mundo!

- Eu uso gasolina especial, às vezes até a sintética, abestado.

- Não é suficiente! Você tem que parar eté de respirar para não gerar mais...

- CALA ESSA BOCA!

- S... Samira... pra quê tamanha violência?

- Violência você vai ver se continuar me enchendo o saco! Agora passe essa porcaria de manteiga no pão e vá cuidar das suas obrigações!

- Mas eu estou sem carro... está na oficina...

- Que já lhe consumiu o valor de dois outros plastimóveis descartáveis de péssimo mau gosto como aquele! Chame o táxi ou alugue um, tem uma locadora logo ali.

- Me empresta o seu?

- Ficou louco??? Acha que vou colocar meu Opala SS 4100 placa preta nas suas mãos???? VOCÊ ESTÁ LOUCO!!!!! Quase tão louco quanto o reitor que te diplomou e o instrutor que te concedeu a habilitação!

- Mas eu passei em todos os testes e procedimentos...

- Sem saber porcaria alguma da vida real! SAI DESSA BOLHA, ASTOLFO! O universo não segue suas regras! Eu que dirijo com cuidado faço mais pela segurança de trânsito do que qualquer traquitana que anestesia o senso de perigo do motorista! As companhias aéreas que estão financiando combustíveis de carbono negativo, fazem amis pelo ar do que seus plastimóveis cafonas que precisam ser trocados todos os anos!

- Como? Em que artigo você leu isso?

- No mundo real, Astolfo! No... mundo... real!!! Agora pára de encher meu saco, tenho mais o que fazer!

09/04/2023

Escassez não é desculpa

 



            É creditado ao mexicano Rafael Rivera a semente que deu origem a tudo. Em 1829, quando o Brasil ainda tinha sete anos como país e muita gente nos rincões mais afastados nem sabia da proclamação da independência, um "imigrante" encontrou um vale com pradarias férteis no meio do deserto de Nevada e lá se estabeleceu. Chamavam aquilo simplesmente de "os prados", "las vegas" em espanhol, nome dado por Antonio Armijo e seu grupo, que só procuravam um lugar para tocar a vida. Muita coisa aconteceu até o povoado no condado de Clark se tornar uma vila ferroviária em 1905 e então uma cidade em 1911, o que a torna relativamente jovem nos Estados Unidos. Mas foi em 1931 que aquela cidade no deserto de Mojave ganhou importância, não por meios muito nobres, mas ganhou; os mafiosos se aproveitaram da legalização dos jogos e começaram a abrir cassinos, dando aos viajantes motivos extras para permanecer na cidade, além de ser uma parada segura em um vale desértico. O facto é que o negócio deu muito mais certo do que os mafiosos imaginaram e o que seria apenas para lavar dinheiro, tornou-se o negócio principal. Sim, tenha certeza de que a máfia ainda tem suas mãos nos cassinos, não em absolutamente todos eles, mas tem, como tem em todos os negócios em que pode legalizar seu dinheiro sujo. Digo que não em todos, porque existem assaltos aos cassinos, e nenhum bandido assaltaria a lavanderia de um mafioso, porque nenhum advogado conseguiria livrar sua pele. Uma curiosidade é que não existe UMA Las Legas, mas três cidades que a formam: Las Vegas, Henderson e North Las Vegas.


            O clima é muito parecido com o de Goiás, ou seja, desértico, só que com bem menos chuva, as temperaturas excedem os 40°C várias vezes por ano e respirar direito pode ser um desafio para quem não está acostumado. Pode-se pensar que existe uma pobreza pujante em uma cidade de pouco mais de 640 mil habitantes e com mais de 2 milhões em sua área metropolitana. Pobreza existe em praticamente todo lugar, inclusive se revelando explicitamente na romanceada Europa, mas pobreza crônica não é o caso aqui. A renda per capta passa de US$ 22.000 anuais, com uma casa podendo fácil ganhar mais de US$ 55 mil; uma renda boa em qualquer parte do mundo. A cidade do pecado, como ficara conhecida, é na verdade formada por famílias e nem todas têm relações directas com os cassinos, a iniciativa privada fala alto em Las Vegas, com pequenos e médios negócios fazendo a economia girar mais rápido. Embora alguns se considerem rudes, por conta da origem humilde e a falta de ancestralidade de que o velho mundo tanto se orgulha, a maioria dos gentílicos os considera até exageradamente educados, sempre se desculpando por praticamente tudo, o que pode até irritar alguns turistas estrangeiros.


            A infraestrutura está à altura da pujança de uma cidade que não se apegou aos cassinos e seus hotéis, que também se beneficiam da diversificação dos postos de trabalho. O comércio é muito forte e, talvez pela localização desfavorável da cidade, os locais são apaixonados por automóveis, e os clássicos têm especial vaga na garagem de seus corações, assim as oficinas de transformação e restauro faturam alto, bem como a indústria e o comércio de insumos para essa actividade. E como todo americano, eles amam comer, então a rede de alimentação é respeitável, contribuindo ainda mais para o sucesso da economia. De certa forma, as actividades secundárias, que eram dependentes dos cassinos, ganharam músculos e esse dependência tem se tornado paulatinamente mútua, porque os turistas não vão mais lá só para jogar. Tanto que a prestigiada Universidade do Colorado fica lá, e o transporte público deixaria qualquer brasileiro com inveja, o que não seria necessário se só hotéis-cassinos sustentassem tudo. Conta inclusive com o monotrilho, que lá leva pessoas de um lado para o outro, enquanto aqui só leva o erário para bolsos do alheio.


            Nisso a cultura também floresce, não só pela universidade, mas pelos museus, como o Museu do Neon, que mostra justamente a história dos cassinos. Sua própria tradição de chamar artistas de primeira linha para seus shows, Sinatra e Elvis eram dos mais assíduos, fixou na mentalidade da população que a cidade era muito mais do que jogos de azar e brigas de quadrilhas, dando ao glamour a alforria daqueles letreiros  ofuscantes, o que se comprova com o Las Vegas Arts District, que como os cassinos vive dos visitantes e ocupa a mão de obra local, bem como atrai artistas forasteiros, incluindo não só artes visuais, mas também artesanatos, pulgas e gastronomia; como eu disse, americanos amam comer, então o sucesso já estaria garantido só com a fauna nacional. As feirinhas, à moda das que infestam Goiânia, têm o charme frugal que deixa o turista muito amis à vontade, e disposto a gastar. Não obstante, eventos como o festival retrô Viva Las Vegas é um espetáculo de sucesso internacional, atraindo colecionadores, garotas pin-up e turistaas de todo o planeta, inclusive do Brasil. Com tudo isso não é de admirar que séries de realidade com negociantes locais sejam sucesso.


            Um dos segredos é deixar o povo trabalhar e não abusar do assistencialismo, por mais dividendos eleitorais que isso pudesse gerar. As regras são claras e todo mundo sabe em que cumbuca não deve meter a mão, e a cidade oferece o que outras não; adivinha para onde tem sido a última onde de migração? Sim, as pessoas estão saindo de cidades litorâneas com seus governos bonzinhos para o árido Meio-Oeste americano, onde a liberdade e as responsabilidades individuais estão ao alcance de todos. Eu ainda poderia citar Mônaco, que não passa de um enclave no Mediterrâneo, no sul da França, menor do que o bairro onde eu moro, mas cuja fama é inegável; ou ainda Cingapura, que é tão desprovida de recursos naturais, que nem água potável tem, precisa importar tudo o que seus cidadãos bebem. Três lugares, um deles uma cidade-estado, que provam que aridez e escassez de recursos locais não são desculpas para atraso e pobreza. O sertão nordestino, que é passagem da luxuriante fartura amazônica para os portos mais orientais das Américas, não deveria ser sinônimo de miséria e migração, mas ao contrário de Las Vegas, lá só acontece o que o Estado deixa... e nosso Estado é dos piores do mundo.




Mais aqui, aqui, aqui aqui e aqui.

11/03/2023

O explorador tem feições humildes


COMPRA DE MIM, FREAGUÊS, EU SOU IGUAL A VOCÊ


             Uma moça no ônibus conversava com o motorista acerca dos vendedores de comida (alimento é outra coisa) e de seu oportunismo. Ouvi dela de salgados e pão de queijo vendidos a R$ 7,00 à porta do Hospital do Câncer, no Setor Universitário. Não se tratam de quitandas e salgados de qualidade premium, tampouco apresentados em embalagens bonitas e bem pensadas, são vendidos amontoados em vasilhas plásticas e apanhados com um pegador comum directo para a mão do comprador. Para vocês se situarem nos preços de Goiânia, ainda é possível comer uma boa coxinha por R$ 2,00. Ela salientava sua indignação acrescentando que os pacientes daquele hospital são pessoas de poucos recursos, que não podem empenhar em dois pães de queijo o dinheiro de uma refeição, mas os tais vendedores sabem que para pessoas do interior é muito difícil encontrar um bom restaurante em Goiânia. O Hospital do Câncer não é o único do gênero na cidade e não é só nesse tipo que esses espertalhões aparecem. Decerto que para um indivíduo os custos são mais altos, o que justificaria preços maiores, mas não a esse ponto.


            Decerto que nem todos fazem isso, a maioria cobra o preço que remunera seu trabalho, mas os citados pela moça do ônibus têm sua capacidade de sedução, às vezes fazendo o acompanhante humilde do paciente se sentir na obrigação de comprar dele. Parecer-se com o potencial freguês e ao mesmo tempo intimidá-lo, é uma das estratégias; o cidadão olha para os outros, mais bonitinhos e bem arrumados, sente-se deslocado e achando-se não merecedor, vai para as garras do explorador. É como algumas aranhas, que se disfarçam no ambiente para que a presa não hesite em se aproximar dela, só percebendo o perigo quando é tarde demais, às vezes até morrendo sem perceber o bote. Assim o coitado deixa nos bolsos do explorador o dinheiro de uma ou duas boas refeições, levando apenas algumas quitandas. A rigor, nada do que ele fez é ilegal, é como um parlamentar que aumenta o próprio salário; é antiético, e muito, mas não é ilegal.


            É como acontece nas rodoviárias, especialmente nas grandes, que aproveitam-se do temor do passageiro que não per perder o ônibus e prefere arcar com os custos de comer o mais próximo possível, para haver tempo hábil para correr se perder a hora e o ônibus chegar. E convenhamos, a fama dos salgadinhos de rodoviárias nunca foi das melhores. Também por conta dos aluguéis, isso migrou para os aeroportos, que ainda se apoiam na obsoleta imagem de passageiro rico da clientela para pagar numa empadinha todo o fardo de farinha. Eu já fui obrigado a recorrer a isso, e nem era das melhores empadas, mas eu não tinha escolha. Se o Brasil tivesse uma indústria ferroviária de respeito, dela também teríamos histórias assim, algo como salgados assados na fornalha da maria-fumaça e vendidos a preço de bistrô.


            Isso fez-me lembrar de um sujeito, no início dos anos 1990, que tinha uma verduraria no Vera Cruz. Por algum tempo ele era dos poucos no bairro, então se dava o luxo de algumas coisas que para o bom senso cruza a fronteira do absurdo. É comum um estabelecimento dar descontos para alimentos que estão próximos da data de validade, tanto para não desperdiçar quanto para reduzir ou evitar o prejuízo, mas também para fidelizar o consumidor com vantagens do tipo. Bem, esse verdureiro preferia jogar fora a dar descontos. Era na época um bairro de gente pobre, que contava as moedas para pagar uma passagem de ônibus, então cada Cruzado era importante e uma alface feia por um preço mais em conta era bem-vinda. Entretanto, o lixo era o destino de qualquer coisa que ele não pudesse vender pelo preço que queria. Claro, as pessoas então preferiam voltar mais tarde para casa e comprar as coisas em um supermercado do Centro ou de Campinas, carregar aquele peso em uma só mão no ônibus lotado e dar à família uma alimentação razoável pelo preço que aquele verdureiro jamais cogitava oferecer. Sim, ele quebrou, mas infelizmente ainda hoje há pessoas fazendo isso, pobre querendo explorar pobre enquanto as grandes empresas escolhem fidelizar o cliente.


            É uma mentalidade que se repete em todos os lugares onde a população tem poucas opções, o sujeito acha que está fazendo um favor àquelas pessoas e que elas têm obrigação de comprar dele pelo preço que ele determinar. Infelizmente ainda há pessoas que vestem essa carapuça apertada de devedor de quem deveria ser seu serviçal. O pequeno poder de controlar precariamente aquelas pessoas todas, acreditando que aquela posição efêmera vai durar pela vida inteira, é como a cachaça barata que eles vendem a preço de uísque importado. Não raro, pessoas assim fazem-se valer da proximidade com o freguês para garantir a fidelidade, não importam o atendimento ruim e os preços altos, ainda também para tentar sobreviver à chegada de empresas novas na região. Desconto? Não, no máximo um fiado que custará caro a quem pedir. O ponto fraco deles é que as pessoas se mudam e morrem, e quem vem depois vai se sentir mais à vontade nos estabelecimentos novos, que não tem aquela pessoalidade, mas também não tratam o cliente como empregado.


            De pouco adianta apontar o dedo para os engomadinhos de terno e gravata, se no seu cotidiano a pessoa endossa as práticas das quais se queixa, porque os exploradores do seu convívio vão engrossar seu coro, mas farão essencialmente as mesmas coisas de que o executivo bilionário é acusado. Ele se vale da semelhança para desviar as atenções e acusar o outro do que ele mesmo, guardadas as devidas proporções, faz.


29/01/2023

A Maldição do Poeta

Da historinha "Rolo em: Saída Criativa", de propriedade de Mauricio de Sousa

             Em princípio o poeta tem boas intenções, mas sabemos que delas o inferno está cheio. Ele é demasiadamente apaixonado pelo que faz para admitir que possa haver algum mal em seu ofício. Ao contrário daqueles que apenas aprendem a técnica, ele tem uma sensibilidade rara para expor e reconhecer sentimentos, além de um modo só seu de fazê-lo sem com isso se fazer incompreensível, embora às vezes lhe convenha ser. Tudo o que o poeta honesto almeja é viver de suas trovas, encantando as pessoas com sua habilidade de dar encanto às formas rudes do cotidiano, nisso alguns cumprem com extremo êxito a sua missão e deixam de ser pessoas para serem vultos históricos. Antes de tudo, o poeta é um sedutor que acredita em tudo o que diz, e demonstra isso com tamanha sinceridade, que acaba seduzindo seu público.


            Um ponto fraco do poeta é sua recusa em sair de seu mundo, em alguns casos de sua bolha. Ele vende palavras, às vezes nem mesmo se dando o trabalho de escrevê-las, então não tem qualquer intimidade com a produção, ele encontra os productos prontos sempre que se digna a sair ao mundo real para buscar provisões. Está tudo lá, em formas e tamanhos para uso imediato, no máximo ele se informa por alto do modo como tudo aquilo foi feito, geralmente não compreendendo os motivos de se trabalhar tanto, já que árvores frutíferas nascem espontaneamente na floresta. Testemunhos e a palavra de quem trabalha no campo não contam para ele, não há argumentos que o demovam, se não couberem em sua narrativa, quase sempre com ar argumentação de que vultos intelectuais da história endossam sua posição, não até ele se ver com fome e frio, o que os que o cercam raramente permitem que aconteça.


            Por tudo isso tem facilidade em angariar simpatia e reunir grandes públicos em um só lugar, o que é particularmente interessante para comerciantes, que passam a protegê-lo de uma forma ou de outra, então o poeta novamente se convence de que poesia é tudo e que um poeta não precisa das coisas mundanas. Para a soberba lhe subir à cabeça, é um passo, que muitos deles dão. Por ser conveniente aos negócios, comerciantes toleram até certo ponto o que ele apregoa e a sua sensação de independência cresce, pode começar a acreditar que os outros é precisam de seus poemas e por isso o resto do mundo é obrigado a sustentá-lo; não de qualquer jeito, é claro, sempre com muito conforto, abundância e prazeres. Um hábito arraigado é tolerar e minimizar qualquer erro que alguém de sua turma tenha cometido, mas amplificar qualquer mínimo deslize que um desafeto ou discordante cometa nas mesmas circunstâncias, sob as mesmas alegações e com as mesmas conseqüências.


            Por isso, por vezes ele pode ser inconveniente, tentando convencer as pessoas a aderirem ao seu modo de vida, pois se todos vivessem de poesia, todos seriam felizes como ele. Sem preocupações materiais com as coisas que precisam ser pagas para serem obtidas, afinal se a poesia vinha de graça, tudo mais também o deveria. Por isso sua simpatia particular é pelos vultos antissistema, que em sua cabeça lutaram justo para que todos fossem poetas. O conteúdo não lhe é tão importante, porque a forma é com que trabalha. Se a forma não lhe for agradável, ele se vale de sua imensa facilidade para criar textos e discursa longamente com rebuscamentos capazes de seduzir a população, especialmente a outros poetas que engrossam rapidamente seu coro e fazem os divergentes parecerem a parte ruim da discussão. Fazer muito barulho, para o poeta é o mesmo que agir, ele é capaz de repetir "pam-pam pam pam-pam" diante do interlocutor sem se preocupar se está faltando com o respeito, para depois se vangloriar que ganhou a discussão. Ele ama e odeia com a mesma facilidade e intensidade, não há meio-termo.


            Também por isso ele é uma presa fácil de populistas, que têm maestria em falar o que o poeta quer ouvir enquanto dizem o que lhes convém, fazendo ele acreditar que está concordando com uma coisa, sendo que o conteúdo é outra. Isso torna o poeta um disseminador de idéias que ele pensa que conhece e o seduziram pelas formas que camuflaram o conteúdo, divulgando assim algo que ele estudou, mas efetivamente não conhece. Sua habilidade em rebater argumentos é bem explorada pelo populista, que o defende com unhas e dentes e faz tudo para que ele não conheça os meandros das idéias defendidas, ao menos não até que esteja tão envolvido e apaixonado por elas, que atrocidades decorrentes de sua prática não façam mais diferença em seu julgamento. Os seguidores do poeta então também adoptam o que ele propaga e tornam-se, mesmo que indirectamente, executores dos ditames do populista. A propaganda passa a ser a notícia.


            Com a argumentação legítima de que a cultura é essencial, o poeta ataca com fervor quem prefira investir em outros assuntos, especialmente a defesa, ignorando que deixar o outro em paz não é garantia de ser deixado em paz, para ele poesia é vida e defesa é morte, ponto final, absolutamente nada além de estar na mira do fuzil do invasor vai demovê-lo. Até lá, ele vai se negar a reconhecer que possa estar errado, pois isso poderia abrir mão de uma série de crenças sobre as quais ele erigiu seus sonhos mais nobres, seria abrir mão da narrativa que norteia seu horizonte e dá sentido à sua vida; e é claro que ele faz questão de cantar e declamar isso com o máximo possível de emoção, seu público vai sair por aí cantando e declamando a mesma coisa, tomando suas dores e apontando o dedo para os narizes dos desafetos. Não é maldade, não deles, é como se fossem fiéis de uma seita tentando defender sua divindade daqueles que acreditam ser uma ameaça à sua fé. Então o poeta se torna uma mistura de flautista de Hamelin com Don Quixote de La Mancha, cercado de Sancho Panças infantes fascinados por sua loucura. Meias-verdades, para ele, podem ser arredondadas para verdades ou mentiras absolutas, sem remorsos.


            O maior problema é que esses seguidores podem acreditar que precisam se tornar uma milícia, e é muito fácil eles acreditarem nisso. Nada oficial, nada comprometendo o poeta, mas basta ele fazer cara feia para alguém e este se tornar alvo de agressões, mesmo que só em redes sociais. Para todos os efeitos, seria uma defesa, não ataque, e o poeta lisonjeado não vai contrariar seu público, ele achará lindo cada atrocidade cometida em seu favor. Ainda que a ação em si lhe pareça reprovável, ela terá sido cometida em nome daquilo em que ele acredita, dificilmente vai ao menos tentar corrigir os autores, ele depende deles e tudo o que não quer é ver seu público se virando contra si. Aqui temos uma das armadilhas a que está exposto, ele torna-se cativo das próprias palavras, tanto para o público quanto para o narcisista populista. Ele até pode encerrar sua carreira de forma desagradável e por um ponto final, mas sua paixão pelo que faz o impede. Em alguns casos o poeta nem pensa nisso, nem mesmo enxerga contradições, nem dois pesos e duas medidas, não importa o que tenha sido dito ou feito; se partiu de seus asseclas, é justificável, o que tiver saído do outro é condenável não importam as motivações.


            Não é grande a parcela de poetas que se corrompe e cai nessa armadilha, mas os que caem nela se esmeram em obter notoriedade para facilidade a disseminação de suas idéias, ou das que pensam que são suas. Assim como ele é extremamente hábil em manipular palavras, é também facilmente manipulável por qualquer um que demonstre de forma convincente compartilhar delas. Quando se dá conta de estar sendo manipulado, isso quando se dá ou se importa em, já está até o pescoço em tudo o que o manipulador tiver feito ou dito. Ainda que tente suavizar suas palavras de então em diante, já está totalmente comprometido com o que já foi dito. Desaparecer repentinamente pode até ser um alívio para ele, mas não vai frear o que estiver acontecendo, pelo contrário, ele pode ser considerado um mártir da causa a ser exaustivamente explorado pelo manipulador. O poeta que se importa só pode frear isso se rebelando contra os acontecimentos, mas então ele será tratado como traidor e pode não sobreviver a isso.


            A morte até pode ser um alívio, mas o poeta morreria ciente de que seu trabalho será usado para tudo aquilo contra o que ele dizia ser.