07/09/2022

O valor das coisas e do trabalho

De 0 a US$1.000.000,00 em menos de vinte anos.

             Em 1969 A Chrysler fez uma aposta muito ousada, não porque queria, mas porque o regulamento da NASCAR exigia uma produção mínima para um carro poder competir, na época e ainda por muitos anos só carros que o cidadão pudesse tirar da concessionária e ir dirigindo para casa poderiam ser homologados na categoria. Daí nasceram os gêmeos de suas subsidiárias Dodge Daytona e Playmmouth Superbird. Autênticos representantes da escola americana de esportivos, esses muscle cars na época ultrapassavam a então altíssima marca de 250km/h, quando chegar a 200km/h já fazia o motorista sentir-se em um foguete. A cereja do bolo, entretanto, vinha nas versões especiais, com preparação de corrida, verdadeiros monstros que passavam dos 320km/h, marca que os outros carros de rua lavaram mais de vinte anos para bater. Pela referência ao Papa-léguas da Warner Bross, e seu apelo mais jovial, o Road Runner, que é o nome original da ave, sempre foi mais popular. De quebra a aerodinâmica foi planejada em conjunto com a NASA e até hoje é muito superior à da maioria absoluta dos carros do mundo, de rua ou de competição. Com o lema de "vença no domingo e venda na segunda", as expectativas eram muito altas para a dupla, que era relativamente cara, mas nem de longe via os preços absurdos cobrados pelos esnobes e pouco confiáveis europeus bipostos, cuja única argumentação de verdade era a exclusividade.


            Infelizmente as coisas não saíram como planejado. O visual muito exótico para o gosto americano da época não ajudava, embora não tenha sido decisivo. O consumo de combustível era muito alto mesmo para os padrões da época, fazer 2km/l na cidade já fazia o dono se dar por satisfeito, mas isso sozinho também não seria motivo para o fracasso retumbante. O maior problema não era eles não serem bons, eram excelentes, verdadeiras maravilhas da enxuta e espartana engenharia americana, eram na verdade bons demais, a ponto de eles terem ameaçado o interesse do público pela NASCAR. Se houvesse mais de dois Superbird na competição, por exemplo, os outros competidores poderiam esquecer o pódio. A Chrysler produziu dois foguetes a pistão que facilmente deixavam os mais velozes dos outros comendo poeira, os responsáveis não tiveram outra escolha para salvar a categoria além de mudar as regras e assim tirar Daytona e Superbird do páreo. Não bastasse esse golpe duro, as seguradoras simplesmente se recusavam a fazer apólices para carros tão rápidos e velozes que estavam disponíveis a qualquer cidadão de classe média. Não era como um Porsche, cujo peço absurdo de sua grife limitava sua população, eram carros feitos para as massas. Em muitos Estados americanos um carro até pode rodar sem placa por alguns meses, mas jamais sem seguro, especialmente na Califórnia, que ainda é o maior consumidor automotivo dos Estados Unidos. Se eu não posso tirar o carro da garagem para ir ao supermercado, por que o compraria?


            Os Daytona e Superbird chegavam a ficar dois anos parados nas concessionárias, mesmo com promoções absurdas, feitas só para desovar o estoque e liberar o pátio. O resultado, além do prejuízo enorme, é que o primeiro carro feito em colaboração com a NASA valia, da noite para o dia, absolutamente nada. Valia alguma coisa como matéria-prima de siderúrgica, absolutamente nada como carro. As crises do petróleo puseram uma pá de cal na corrida dos cavalos, fenômeno causado pelo gosto do americano por motores cada vez maiores e mais potentes, enterrando de vez os investimentos nos dois bólidos. Vejam bem, o trabalho absurdo de dimensionamento e refinamento de duas máquinas que tinham tudo para serem clássicos instantâneos passou a valer zero. Pelo menos três anos de trabalho duro de milhares de pessoas, que chegaram a resolver os problemas mais crônicos de confiabilidade de um motor que era absurdamente poderoso, mas tendente a se autodestruir por superaquecimento, agora valiam zero. Centenas de milhões de dólares na época valiam, repentinamente, zero. Enquanto os outros muscle cars com haras muito menores continuavam recebendo encomendas e mantinham seus valores, os dois ápices da espécie valiam zero. Todo o trabalho estava lá, os carros cumpriam com o que prometiam e seu alto consumo era até razoável para o desempenho que forneciam, fora o facto de levaram a família toda e sua bagagem, coisa que nem sonhando um europeu "puro sangue" conseguiria, mas eles valiam zero.


            Na virada do século, porém, o interesse por eles ressurgiu como não surgira na época de seu lançamento, então um monte de sucata abandonada no mato já valia facilmente dez mpouco tempo depois um Superbird em perfeitas condições não trocaria de garagem por menos de cento e cinqüenta mil dólares, já as versões especiais pedeíam mais do que os duzentos e vinte mil dólares de cotação, era preciso convencer o proprietário de que não é uma idéia de jerico desfazer-se de seu agora sim clássico; um foi recentemente leiloado por mais de, segurem-se na cadeira e peguem fôlego, cerca de US$1.600.000,00! Se os carros são os mesmos, o desempenho é o mesmo e ainda há outros sendo descobertos e restaurados por aí, o que explica esse preço? A resposta é o interesse. Não acredito que essas cifras durem por muitos mais anos, mas não espere chegar com muito menos do que isso e sair dirigindo um Superbird. Agora as pessoas não só aceitam pagar, como pagam sorrido essas pequenas fortunas pelo que há menos de vinte e cinco anos não valia seu peso como sucata. Não foi uma grande corporação e nem uma nação dominante que definiu isso, foi o interesse das pessoas, sua admiração espontânea pelos modelos que os fez valorizar tanto. Então cai por terra a tese pueril de que uma empresa põe o preço que quiser em seus artigos.


            Mudando de exemplo, imaginem uma tonelada de pedregulho, pedrinhas de riacho. Bonitinhas, arredondadas, todas amontoadas em um monte. Experimente de sua própria iniciativa, carregar essa tonelada de pedras para um lugar que lhe seja mais conveniente. Vai levar muito tempo, algumas pedrinhas vão se perder e terão que ser encontradas, mas é um trabalho possível. Ajuda muito se usar dois baldes não grandes demais, pois isso arruinaria sua coluna e aceleraria sua fadiga. Se ao fim do serviço não estiver satisfeito, sendo de sua vontade podes realocar a tonelada de pedregulhos para outro lugar, até mesmo para o original. é um trabalho árduo e com o tempo seria os métodos de empilhamento seriam aperfeiçoados. Agora a pergunta de um milhão: quanto vale esse trabalho? Difícil de calcular? Então vamos a outras: Quem pediu para fazer isso? O que foi combinado? Resolveu que problemas? Além do ganho de massa muscular, se tiver feito o trabalho com a parcimônia necessária, eu lamento informar que seu trabalho vale absolutamente nada. Não importam sua dedicação, seus ferimentos, seu tempo e nem mesmo o desapego para tê-lo executado, mover uma tonelada de pedregulhos sem deixar um sequer perdido, vale absolutamente zero. Seu prejuízo, descontando a maior força muscular resultante, foi de 100% do capital investido... se os baldes forem seus, porque se tiver se endividado para a empreitada, eu lamento.


            Não importa o quanto tenha investido em um trabalho, seja para fazer um producto, prestar um serviço, oferecer entretenimento, o que seja! É o consumidor que vai dizer que quer ou precisa daquilo o suficiente para pagar pelo preço pedido, afinal o dinheiro é dele, fruto do trabalho dele, ele diz se troca ou não uma parcela do trabalho que teve pelo trabalho que está sendo oferecido. Daí idéias muito boas nem sempre virem ao mercado, porque o público-alvo não está disposto a pagar por elas, não pelo preço mínimo que o idealizador pode vendê-las. Algum tempo depois alguém descobre um meio melhor de fazer ou de oferecer essas idéias, de modo que entrem na faixa de preços exequíveis ou atendam a um público que se disponha a gastar mais. Não adianta apelar para o Estado, ele não tem dinheiro! Tudo o que entra em seus cofres é tirado à força da mesa do cidadão que paga impostos. A pessoa não escolhe contribuir para o erário, é coagida a isso. Ao contrário de épocas de grande crise, como a segunda guerra em que todo mundo comprava voluntariamente bônus de guerra para ajudar a derrotar o Eixo, não há virtualmente motivos para uma pessoa tirar da boca de seus filhos para dar a uma gigantesca onerosa burocracia, isso a faz dar mais valor àquilo que quer fazer por si, daí a indústria de entretenimento e os alimentos recreativos serem tão valorizados, mesmo que nem sempre sejam saudáveis.


            Cito o caso ocorrido há cerca de vinte e cinco anos, na Praça Coronel Joaquim Lúcio, aqui no Setor Campinas, quando um desses artesãos de rua começou a pedir uma passagem de ônibus para o centro, ou para Goiânia como alguns campineiros ainda falam, sem obter êxito. Ele ofereceu qualquer um de seus artesanatos em troca da passagem, todos eles bijouterias feitas com penas, pedras e resinas. Eram até bonitos, mas absolutamente não interessavam aos presentes nos dois pontos de ônibus da pracinha. Aquelas pessoas estavam em sua maioria muito ocupadas com seus afazeres, provavelmente com o dinheiro contado para as despesas da jornada, eu mesmo não conheço ninguém que usaria aquele tipo de enfeites, então ele não conseguiu a passagem que queria. Ficou triste e desolado, certo? Errado! Ele começou a gritar e xingar, chamando repetidamente todo mundo de hipócrita, alegando que não queria passagem de graça, que pagaria com o trabalho exposto no tecido que servia de mostruário. O problema, além de ele ter intimidado e afastado a potencial clientela com sua agressividade discursada, é que ninguém realmente se interessava por aquilo, mesmo os que porventura pudessem pagar o que pedia não estavam dispostos, ainda mais após a saraivada de ofensas bradadas por alguém que parecia acreditar que as pessoas eram obrigadas a comprar o que ele produzia. Nem restaurantes, que oferecem artigos de primeira necessidade, agem assim. Se em princípio, para aquele público, o trabalho dele valia zero, a partir daquele momento o valor de sua presença era negativo. Assim como com os bólidos já citados, não foi uma entidade burguesa que definiu o valor negativo do que era oferecido de modo rude, eram as pessoas que então não queriam nem ver a oferta.


            Da feita que não é o custo, seja lá em que padrão ele seja medido, que define o preço final possível de uma oferta, então meus amigos a teoria pueril de que existe um valor intrínseco em todo trabalho é completamente falsa, fruto de uma análise rasa de pessoas que em verdade nunca pegaram no cabo de uma enxada. Sim, eu já fiz isso, já fui até servente de pedreiro, já limpei até fosse séptica. Por isso gente externa à negociação raramente consegue avaliar o valor de uma oferta, via de regra não consegue avaliar direito nem mesmo os custos, que ao contrário do que a maioria pensa não são fixos, variam ao sabor até mesmo das intempéries, mesmo uma eventualidade que agilize ou precarize a logística pode alterar esses custos, e mesmo assim eles nem sempre podem ser repassados. Da mesma forma uma vaga pode ficar meses em aberto porque o público-alvo da oferta considera os termos envolvidos muito aquém do que deveriam ser; nem sempre é por "vagabundagem", embora eu conheça casos, na maioria das vezes o pagamento e os benefícios não cobrem o mínimo esperado. Na verdade, comprar um carrinho de pipoca ou pegar um de picolé para vender pode render mais do que a maioria dos empregos mais simples, que por conta disso estão empregando robôs, como as vending machines que infestam cada esquina de Tóquio. Custo e remuneração é que definem se um negócio sobrevive ou não, porque só quitar as contas não basta, as pessoas que investiram seu tempo e seus recursos materiais, precisam sair felizes assim como o cliente precisa sair feliz com o que tiver adiquirido.


            O valor intrínseco não existe nas relações materiais, ele é meramente moral e afetivo. Seu emprego em relações comerciais se deu por um erro de cálculo de pessoas que usaram a si e sua posição social como parâmetros para uma equação que deu zero, como se houvesse simetria e perfeição possíveis nas relações mundanas; não há, é tudo muito mais pessoal e menos racional do que sugerem os manuais catedráticos. Muito dessa mentalidade surgiu quando eclodiu a revolução industrial e as pessoas migraram em massa para as cidades, então a imprensa e os, vamos chamar assim por falta de outros adjetivos não ofensivos, intelectuais começaram a enxergar pessoas e condições de vida que simplesmente não conheciam, pelo facto de que jamais se preocupavam e ainda não se preocupam realmente em saber o que existe fora de seus mundinhos particulares. Analisar uma situação nacional pelas condições que ocorrem em seu bairro até faz sentido em um primeiro momento, mas tudo isso rui a medida em que o tempo passa e as condições naturais mudam, e uma análise real demanda uma capilaridade que grandes organizações rígidas são incapazes de ter, assim como uma grande locomotiva de modo algum consegue fazer entregas de porta em porta. Ainda que se construam duas fábricas idênticas em tudo, a diferença de localização e as diferenças pessoais entre os funcionários de ambas ditarão custos diferentes, e só cada uma vai saber como equacionar sua fração de realidade. Mais do que isso, as partes precisam inspirar confiança mútua, se não houver essa confiança o negócio simplesmente não acontece, não importa o quão vantajoso pareça, e isso sempre varia de pessoa para pessoa; como o investidor que nem olha para promessas absurdas e o trouxa que vai torrar eu patrimônio de novo em mais uma pirâmide, enfim ... Não pode e não tem como dar zero, funciona se perder um pouco agora para ganhar depois, é como respirar, consome-se energia para fazer a troca voluntária de dióxido de carbono por oxigênio, em movimentos alternantes.


            O conceito de valor intrínseco e tudo que dele deriva, inclusive a malfadada "mais valia", embora faça sentido a quem não se aprofunda no inferno invernal das análises de causa e conseqüência, simplesmente não existem.