31/10/2012

Oras, vende na licitação!

professorasueli.wordpress.com/2011/10/07/humor/
O cenário era desolador. Para quem olhasse sem muita atenção, parecia estar tudo perfeito, alinhado, enfim, apto ao comércio. Mas nenhum item resistiria a uma análise cuidadosa. Debaixo daqueles laminados em cores vivas e boa textura, uma série de falhas de fabricação indicavam prejuízo certo, nada passou pelo controle de qualidade.

Os dois analisam mais uma vez, para ver se algo pode ser vendido ao menos como se fosse usado, para o prejuízo não ser total. Abrem as gavetas de um armário, ela desliza silente e macia, mas não demoram para verem parafusos muito mal fixados. Fixados não por meio de buchas, mas directamente no compensado. Fora que nem todos os pontos de fixação foram sequer furados, para recebê-los. Em pouco tempo de uso, as gavetas começariam a afrouxar, travar e, pior, se desmantelar, com o risco de ferir alguém com gravidade. Seria processo certo.

Os sócios se olham, imaginam que tenha sido realmente aquele moleque senil, a quem fizeram a besteira de permitir que cumprisse o aviso prévio trabalhando...

- Não reaproveitam os pinéis, poderiam quebrar durante a remontagem. Não reaproveitam os trilhos, que já estão empenados pela sobrecarga. Se muito, aproveitamos os puxadores, mas o trabalho de tirá-los custaria mais do que valem no mercado.

- De quanto é o prejuízo?

- Quase um milhão de reais.

Cai sentado em uma cadeira, que também foi reprovada e se desmonta, jogando-o ao chão. Ferimentos leves, superficiais, mas que doem muito no orgulho. Sobem ao escritório, já pensando em ganhar alguma merreca no ferro-velho, já que algum metal há naqueles móveis. Vão ao computador, ver a cotação do ferro para sucata.

Alguns minutos de desânimo depois, dão de cara com um edital muito mal divulgado, até parecendo que os responsáveis não querem que o povo saiba. Clicam, lêem e mandam um e-mail para o contacto indicado. No dia seguinte, um homem de camiseta bege e calças de ginástica aparece, se identifica,  mostra o crachá e a conversa se inicia.

O visitante analisa os móveis. Se dá o trabalho de ver uma amostragem grande, para ter certeza do que está avaliando. Os empresários afirmam que eles agüentam seis meses sem dar problema, com serviço moderado, sem muita carga. Aquilo é melhor do que ele costuma ver, deduz então que os dois são novatos em licitações...

- Meus amigos, vamos conversar. Cá entre nós, isso não tem a mínima importância. O governo gosta de comprar, de fazer licitações, de movimentar a economia, se é que me entendem. O que vocês têm aqui, é melhor do que costumamos comprar para as autarquias. Móveis de primeira, só em gabinete de figurão, e mesmo assim a gente renova com freqüência. Em escolas, por exemplo, isso aqui está passando de bom. Se quebrar, eles arrumam, são criativos, sabem que não vão receber outros tão cedo e a secretaria fica em cima, cobrando resultados para as estatísticas.

- Mas isso pode machucar alguém.

- Pra isso eles têm planos de saúde. Aliás, funcionário público é muito estressado, vocês tiveram que requerer o alvará, sabem disso. Uma licença médica prolongada faz bem para eles.

Vai passando a conversa e, aos poucos, preparando as presilhas de caudas. Os convence de que, se não forem eles, outros ainda piores vão ganhar a licitação, então é melhor se livrarem do prejuízo e ainda ganhar experiência em vendas para o governo. Combinam um encontro, para selarem a parceria.

Se encontram em um lugar reservado, em um restaurante mediano, já com alguns códigos combinados. Estão os três de camisas pólo listradas, o que significa que as partes se entenderam, agora é negociar a montagem da casa. Combinam o chá de casa nova, os valores das prendas, até mesmo os peões que vão fazer o transporte. Tudo isso é código, inclusive a intenção de fazer uma surpresa à noiva.  Tudo combinado, eles dão um adiantamento em dinheiro e o contacto vai dar doce às crianças.

Três meses depois, como combinado, o prejuízo de quase um milhão se transforma em lucro de um e meio, já descontadas as propinas pagas e a lavagem de dinheiro. Mandam o mais rápido possível os móveis defeituosos para o depósito do Estado. Como lhes foi dito, não há um técnico sequer para supervisionar a entrega, os carregadores sequer têm certeza do que estão guardando. Tudo é colocado de qualquer jeito, com rudeza e descaso.

Vão-se seis meses mais, até a burocracia liberar os primeiros móveis, que guardados sem critério, já apresentam sinais de danos, isentando de responsabilidades o fabricante. Pronto, agora tudo será culpa da secretaria, conforme lhes foi prometido.

Outras licitações são feitas, outras são vencidas e eles desistem de vender para o varejo. De vez em quando até fazem uns móveis bons, para variar, mas já não têm a menor preocupação com a qualidade, que já foi reconhecida pelo público. Houve um aluno que teve a mão esquerda amputada, quando uma gaveta despencou e caiu de quina sobre seu pulso, mas isso é culpa da secretaria de educação, não deles. A televisão cai em cima da secretaria, que precisa pagar uma indenização que nem chegou perto do bomso do secretário, e tudo fica por isso mesmo.

26/10/2012

A Lebre e a Águia

Fonte: http://predadores.wordpress.com/
 A lebre estava muito desconfiada da águia. A ave sabia de tudo o que se passava na floresta, tudo mesmo, mas pouco se sabia do que ela estava fazendo. Um dia, decidida a colocar um controle nessa liberdade, para mostrar que estava sendo vigiada, a lebre decidiu seguir os passos da águia. Não poderia fazê-lo o tempo inteiro, afinal tinha seus afazeres, mas tinha amigos e poderia juntar o que conseguisse, com o queles tinham.

O primeiro dia apresentou um problema sério, o sol. A lebre quase ficou cega, olhando para cima. Precisou se acostumar a só olhar quando a luz estivesse favorável. O problema é que a águia, rápida como era, desaparecia ao menor piscar de olhos, mas era o que tinha.

No segundo dia, já conseguia seguir sem ser ofuscada e sem tropeçar. Tomava nota de tudo o que a água parecia fazer, o que no começo não fazia muito sentido, mas estava ali para aprender sobre o que considerava uma ameaça. O seu temor, é que a águia sabia muito a respeito de seus hábitos e dos de seu grupo, não sabia por que ainda não os atacara, mas não poderia esperar pela sorte.

O facto de aprender, não significava que a lebre se via livre de enrascadas. Uma vez, tentando acompanhar um razante da águia, acabou caindo em um ribeirão, que tinha recebido muita água da chuva e estava bravio. Teria se afogado, não fosse a presteza da própria águia que, noutro razante, a alcançou, mas tendo o cuidado de não perfurar as orelhas com suas garras afiadas. Foi constrangedor, mas precisou agradecer e ouvir "Disponha sempre, mas tenha cuidado, tem chovido muito nas montanhas, os rios ficarão bravios por algum tempo ainda".

O constrangimento e a gratidão não lhe demoveram. Mesmo grata, ainda considerava a águia uma ameaça potencial, e precisava vigiá-la. Aprendeu com o erro e com o aviso da águia, passando a ter uma atenção pouco comum, para quem não é predador natural de ninguém.

Se há algo de que a obstinação teve utilidade, foi ter-lhe tornado uma lebre extremamente astuta e engenhosa. Lebres não sobem em árvores, mas ela aprendeu a subir e descer com segurança, para vigiar seu alvo. Conheceu predadores dos quais nunca tinha ouvido falar, e alertou às outras lebres sobre eles. Mas a águia, ah, a água ainda tinha uma incógnita que a tornava ameaçadora, aos seus olhos.

Ainda ficava confusa, quando a água fazia manobras complicadas, não via motivação nem como isso ajudaria a atacar a presa. Às vezes, por uns segundos, ela parava no ar e dava meia-volta, para depois voltar com tudo e garantir sua refeição. Já a viu carregar um cabrito inteiro para o ninho, com a espinha gelando, imaginando-se no lugar do animal.

Lhe veio uma dúvida cruel. Por que a águia ainda não tinha atacado o seu grupo? E por que se arriscou, salvando-a da correnteza? Havia o risco de ambas se afogarem. Isso só aumentava a desconfiança.

Certo dia, julgando-se expert no comportamento da águia, a lebre foi confiante para o ponto costumeiro de partida. Estranhou não ver a, se assim poderia chamar, amiga no poleiro de sempre. Subiu na árvore, observou, desceu e deu de cara com quem? Com a águia...

- Procurando por mim, lebre?

A imponência, a majestade, toda a beleza e todo o poderio belicoso daquela ave, tão temida, estavam logo à sua frente, sem haver chances de escapar. Engoliu a gagueira, respirou mais fundo do que uma lebre normal conseguiria e respondeu...

- Sim, águia, eu estava observando você.

- Por que?

Deixou, a águia, que a lebre desembuchasse, para se acalmar e poderem conversar como adultas. Mas a pobrezinha estava nitidamente nervosa, acabou soltando seus temores, sua confusão em lidar com desconfiança e gratidão ao mesmo tempo, enfim, arrancou (sem trocadilhos) pena da águia...

- Lebre, lebre, lebre! Oh, lebre! Eu já conversei com as outras, para saber o porquê de você viver seguindo minha sombra!

- Sua sombra?

- Tudo o que você fez, lebre, tolinha, foi tentar seguir minha sombra! Lá do alto, também confusa com isso, eu observada todos os seus passos. Você estava vigiando uma sombra, que sumia a cada vez que as nuvens encobriam o sol! Não era a mim que estava seguindo.

A lebre não sabia o que fazer, estava muito envergonhada, não só por ter sido pêga sem ter notado, mas também pela ingenuidade em acreditar que aquela sombra e a águia, eram a mesma pessoa. Por detrás dos pêlos, viam-se suas bochechas fiarem rubras de vergonha...

- Eu não vou mentir, eu sou uma caçadora. Eu me alimento de animais menores, e às vezes até maiores do que eu. Me alimento inclusive de lebres. Mas não de vocês. Vocês são meus amigos, lebre. Se eu quisesse te atacar, teria tido um mês inteiro vendo você dar bandeira, se expondo a outros predadores, que eu precisei afugentar mais de uma vez.

Agora, ainda mais envergonhada, a lebre compreende aquelas manobras estranhas. A águia a estava protegendo. Estava tão ocupada que não vira os lobos, as raposas, as cobras, enfim, uma série de predadores dos quais foi poupada pela águia...

- Se eu quisesse comer vocês, eu já o teria feito e ninguém poderia me deter. Mas vocês são meus amigos. Eu desculpo, desta vez, a sua desconfiança. Também teria, no seu lugar. Mas lembre-se disso, lebre, eu não confundo amigos com refeição. Aquele beija-flor que mora no galho, logo acima da sua toca, eu já teria bicado, mas ele é meu amigo.

- D... Desculpe...

Começa a chorar. A águia a acolhe, certa de que o episódio se encerra ali. A lebre aprendeu que é absolutamente natural a alguém indefeso, não representar ameaça, não significa que seja amistoso. Um predador poderoso que faça o mesmo, com todas as chances apresentadas de lhe ser nocivo, dá uma prova rara de amizade, porque os outros não perderiam a primeira chance.

19/10/2012

Pobre Renê!


Renê teve problemas com o fórum que freqüentava. Causava muitos problemas, fazia-se de vítima e atacava nos bastidores das mensagens pessoais. Não que não fosse uma pessoa interessante, era um maluco muito interessante, mas era ainda mais inconveniente do que interessante. Chegou a flertar insistentemente com um rapaz, que se apresentava como moça, no fórum. Deu problema, muito problema, muito mais do que ele era capaz de administrar.

Após uma cisão, que causou muitas debandadas, inclusive a sua, Renê abriu um blog, chamando-o de "Renê Alerta!". Finalmente poderia dizer o que quisesse sem ser incomodado por gente com pensamentos pequenos, atidos à realidade e ao ganha-pão cotidiano. Começou apenas com mensagens curtas, como "Eu não deveria estar escrevendo isto, mas é de suma importância que as pessoas saibam o que se passa no mundo real, aquele em que as mesquinharias da imaturidade não conseguem penetrar. Não estamos sozinhos, a sua vida não é segredo para quem manda no mundo, os gatos são criaturas geneticamente programadas para nos vigiar. Não posso falar tudo agora, ou levantarei suspeitas, mas ao longo do tempo vocês saberão da verdade". Colocou uma ilustração de sua autoria e publicou. Desenhava mal, mas se considerava um Bosh incompreendido.

Uma, duas, três, quatro publicações e nada. Nada de comentários. Nos bastidores do blog, via alguns acessos, mas se decepcionava ao ver as origens e as palavras-chave das buscas. Praticamente todos entravam no blog por acaso, por um erro do motor de busca. Bem, se valeu de sua experiência para gerar intrigas, em seu favor. Achou que não faria diferença sonhar um pouquinho, ainda mais que estaria mentindo só para si mesmo.

De uma hora para outra, doze leitores assíduos apareceram do nada, tecendo longos e rasgados elogios à genialidade, à originalidade, à lucidez e ao bom humor de Renê. Claro que não comentavam todos os doze em todos os artigos, mas pelo menos seis comentaristas por texto, ele tinha. Chegou a experimentar trinta e oito comentários, quando escreveu sobre como os gatos foram geneticamente modificados na segunda guerra, pelos nazistas, plano que foi apropriado pelos americanos e hoje está em fase final de dominação do mundo. É por isso que existem sinais ocultos, como o de as bruxas gostarem de gatos, são as sociedades secretas tentando alertar a humanidade.

Material mão falta. Renê se dá ao trabalho de passar todos os fins de semana e folgas, fazendo pesquisas em jornais impressos e pela internet. Devemos reconhecer, esforçado ele é, e muito. Consegue montar uma teoria conspiratória que seria um candidato ao Oscar, se fosse filmada, mas peca quando coloca seus medos e traumas pessoais nas conclusões. E quem disse que os filmes respeitam a integralidade de uma obra?

Já com quase cem leitores, Renê considera conveniente abrir seu próprio fórum. Tece um texto só para avisar aos leitores "Amigos, eu agradeço muito pelo prestígio, pelos elogios, e até pelas críticas assaz constructivas que têm me dirigido. Então, como demonstração desta gratidão, abri um Fórum no blog, para vocês poderem não só tratar das minhas publicações, mas também abrir tópicos e falar de assuntos de seu interesse, até mesmo tratar de asuntos pessoais, que ninguém é de ferro... Exceto, é claro, o verdadeiro Barak Obama mecânico, que manipula o falso Obama e o Romney, rsrsrs...".

A adesão é quase imediada. Basta o leitor se inscrever e dizer por que quer ser forista do "Renê Alerta!". Todos os leitores habituais são aceitos, mas os esporádicos encontram dificuldades, alguns até desistem de entrar, embora possam ler o que os outros escrevem. Os tópicos se proliferam nos quadros, que vão dos textos do blog, passando por política, entretenimento, até assuntos pessoais. Rapidamente as amizades se formam e se consolidam no fórum.

O fórum progrediu, com glórias e problemas. Algumas dissidências, algumas brigas, mas a rigor, progrediu. Uma vez por semana, pelo menos, Renê publicava um artigo, que rendia muitas páginas com centenas, às vezes milhares de comentários e discussões, não raro muito acaloradas. Logo os foristas começaram a se encontrar, publicando as photographias em tópicos dedicados. Renê estava feliz, ou pelo menos era o que demonstrava.

Na realidade, Renê não tinha um só forista. Eram todos falsos, criações de sua imaginação fértil e bem coordenada. Não é para qualquer um, gerir milhares de personagens, sendo uns setenta excepcionalmente activos, mas ele conseguia. As photographias dos encontros, eram tiradas da internet, editadas para modificar rostos, paisagens e número de personagens. Tudo era falso, exceto a sinceridade de Renê em tentar alertar a humanidade para o governo oculto, que estava formando uma realidade artificial e concluindo o domínio do mundo.

E o "Renê Alerta!" não era uma realidade artificial? Ele chegou ao ponto de arrematar seis notebooks em um leilão, para ter seis meios (quase) simultâneos de postagem de comentários, assim podendo dar maior veracidade aos foristas... E à sua própria ilusão. Publicou, certa feita, um texto explicando aos leitores de fora, que os foristas estavam receosos com gente nova, de fora, que essa gente é que tinha causado as brigas homéricas protagonizadas lá dentro, e por isso passaria a pensar duas vezes, antes de aceitar alguém. Nomeou doze de seus personagens como conselheiros e moderadores, para ajudá-lo a gerir seu mundo virtual.

Com dois anos de fórum, Renê passou a acreditar que realmente tinha milhares de foristas, fãs, um conselho moderador e tudo mais. Não se perguntava mais se aquele forista falso diria realmente aquilo, simplesmente incorporava o personagem e escrevia. Ao sexto ano, trabalhando exclusivamente em função de sustentar seu mundo, comprou um servidor usado de grande capacidade, para que funcionasse como robô do fórum. Assim, de então em diante, algumas frases e mensagens simples eram postadas sem a sua intervenção, ficando a seu encargo coordenar as reações às intervenções do robô.

Pobre Renê. Queria brincar com o mundo, agora seu mundo brincava consigo. Não que não tivesse leitores de verdade, até porque as caixas de comentários extra-fórum ainda existiam, e tinham comentários que ele se prontificava em responder. Mas o mundo real já tinha perdido o encanto, seu mundinho virtual, longe de ser um paraíso, estava sob seu relativo controle.

Com o avanço da tecnologia e o barateamento dos hardwares, um servidor maior assumiu a função de robô, e frases curtas, em seu nome, passaram a responder à maioria dos comentários extra-fórum. Funcionou bem, muito bem. Bem o bastante para ele poder se dedicar ao fórum, às suas teorias conspiratórias, a dar sentido para sua vida.

Um dia, Renê morreu. Morte súbita, sem explicações conclusivas dos médicos, sem nem mesmo que sua família, de quem se afastara há muitos anos, soubesse. Os parentes só sabiam dele pelo blog. Prevenido, para o caso de tirar férias, ou ter que se esconder dos espiões das irmandades conspiratórias, tinha mais de mil e trezentos artigos escritos, prontos para serem publicados uma vez por semana. A sofisticação de seus robôs os fazia traçar cálculos complexos, para elaborar os comentários dos foristas, com base no que eles já tinham dito antes em situações semelhantes.

Ah, pobre Renê. Pelos próximos vinte e cinco anos, existe a possibilidade de ninguém dar por sua falta. Os artigos continuam sendo publicados, os comentários continuam sendo respondidos, os foristas continuam se relacionando, seu mundo continua vivo, mesmo seu criador estando morto.

12/10/2012

Papai Noel de Outubro


Vamos ser francos, eu gostaria assaz que o panetone fosse incorporado à dieta diária do brasileiro. Por mim, ele substituiria fácil o pão francês, no dejejum tupiniquim. Seriam versões mais básicas, como o de frutas e o chocotone normais. Vá lá, aqui ou ali uma versão mais sofisticada ou comemorativa, deixando os especiais para os arredores de Dezembro. Mas é só! O comércio está pulando o corguinho de ré e olhos vendados!

Pensei que as decorações natalinas fossem ser retomadas assim que passasse o dia das crianças, havendo até o risco de o quinze de Novembro mostrar um Marechal Deodoro da Fonseca com gorro vermelho. Aliás, o risco deste ridículo ainda existe. Me enganei leda e placidamente, eles não esperaram porcaria nenhuma. Desde o dia primeiro, que atacadistas e algumas lojas já têm itens de decoração natalina, alguns têm até já seções dedicadas. Não são apenas itens para venda, são parte da decoração mesmo. Tirei a photographia acima há uns dias, podem ver para crer.

O negócio até pode parecer piada, mas é sério. O medo de ser o último a decorar o estabelecimento, já chegou às raias do patológico, esses caras deveriam ser tratados, ou vão passar a colocar guirlandas já no dia das mães! Acham graça? Pois é dessa forma que uma tradição acaba sendo banalizada e perdendo todo o sentido, correndo o risco de vir a ser esquecida no futuro, por desinteresse puro e simples da população. A banalização anestesia. O risco de se ouvir "Então é Natal" antes do dia de finados, existe. Alguém quer ver o bom velhinho como garoto-propaganda de serviços funerários?

Não, titio Nanael não é contra a livre iniciativa privada, nem contra a adequação de estratégias de divulgação e vendas, pelo contrário. Gostaria muito que o empresariado nacional fosse menos provinciano e anacrônico, porque não é o Detran que manda vereadores tentarem nos intimidar, para liberar o ilícito. Eu olho torto é para o exagero. Não por acaso, sou avesso ao carnaval brasileiro, especialmente ao televisionado. E o exagero sem sentido é parte inalienável desse provincianismo anacrônico de gente que sempre mamou, e não sabe mais sobreviver sem mamar no erário.

A livre iniciativa de verdade, respeita efemérides, não coloca o carro na frente dos bois e as rodas em cima da carroça. Hoje ainda é dia das crianças, e a divulgação a respeito foi medíocre, talvez asfixiada pelas eleições. Nunca vi campanhas publicitárias tão ruins, praticamente dizendo "Criançada, é tudo irado, então compre". Será que todos os publicitários competentes estão com rabo preso nas campanhas eleitorais? Eu ficarei muito triste se as campanhas natalinas também tomarem esse rumo idiota. Ouvir simplesmente "Ho-ho-ho, Papai Noel está nesta loja, venham comprar aqui", seria decretar a completa incompetência das agências contemporâneas de publicidade, ainda mais que já vi campanhas nestas décadas, que mereciam muito bem serem eternizadas em documentários pertinentes, seria o último prego no caixão.

Já faz tempo que não espero cousas muito boas dos departamentos comerciais, mas sinceramente, eu não esperava que ficassem tão ruins, não tão cedo e não para datas tão caras ao comércio. Não obstante o desleixo com a publicidade sazonal, temos ainda a crescente impessoalidade patologicamente gerundista dos atendimentos, que trata o cliente pelo número do cartão de crédito. O que isto tem a ver com o que escrevi lá em cima? Tudo. Pequenos desleixos em pontos importantes, se tolerados demais, acabam fertilizando outros, que juntos formam um complexo de desleixos graves. Tratar o cliente como tratam a efeméride, é só uma das conseqüências. Aliás, eu já experimentei uma pitada disso, há uns anos, asseguro que é muito ruim.

Há uma possibilidade de melhora e reversão, se o público começar a se incomodar com esses exageros. Infelizmente não será neste anos, os torcedores de partidos estão concentrados demais em querer que o seu candidato ganhe a qualquer custo e preço, preservar uma tradição secular não está nos seus planos, não até verem os outros torcedores chorando. Para o ano que vem, se algum apresentador tiver o bom senso de perceber esse exagero, a discussão em meios de longo alcance pode dar o cascudo que o comércio precisa, para perceber o fuzilamento comercial que está cometendo contra as datas mais importantes do capitalismo. Não que este vá durar muito mais, sem o comunismo para se contrapor, mas o que vir depois se serviria muito bem da parte boa de seu legado. Ah, o que virá depois? Não faço a mínima idéia, mas não se parecerá com o que conhecemos... Graças a Deus! Alguém aí ainda pensa que quela conversa mole de Lênin ainda tem fôlego? Pois pergunte ao médico da UTI.

O ideal, é que as campanhas e a decoração comecem juntas, de forma maciça, com não mais do que um mês e meio de antecedência. Porque isso pega o inconsciente de surpresa, mantendo o encantamento durante todo o período. Mais ou menos como aquela parábola do sapo cozido. O que foi aquecido aos poucos, se adaptou até desmaiar de calor e morreu. O que foi jogado na água já quente, se assustou e pulou fora. Este vai levar a lembrança da queimadura pelo resto da vida, enquanto aquele nem vida tem mais.


05/10/2012

Nem sempre é mentira

Fonte da imagem: http://www.celebrityredcarpet.co.uk/media/grace-kelly_m3172

Já está à porta, não há mais como voltar. Observa o bairro ainda preservado, ao redor, com janelas abertas, gente conversando nas calçadas, algumas Mirtes apontando para o estranho tímido, à porta da vizinha. Não é gente muito pobre, mas está muito longe de ser abastada. Viu alguns carros novos, populares, em algumas garagens. Na da moça, um Opala 1990 preto, à álcool, arrematado em um leilão do governo. Veio em sua boa e velha Veraneio D20, que usa muito para levar amigos e família. Pelo menos no tocante a "Não tenho bens materiais" ela foi sincera. Tanto melhor.

Há até vinte anos, poderia dizer que tentou ligar, mas o telephone caiu, ou o orelhão engoliu a ficha, qualquer desculpa esfarrapada da época. Mas estamos nos anos dez do século XXI, e ele confirmou hoje cedo mesmo o encontro. Fez a besteira extra de dizer EM PÚBLICO "Não, deixe que eu vou te buscar em casa, me espere que no fim da tarde eu bato à porta, lá pelas 18h, ok?", no que ela respondeu, para todo o planeta ler, até mesmo os astronautas da Estação Espacial Internacional "Meu Deus, que cavalheiro!!!! S2 S2 S2!!! *____________*..." Teceu uma dezena de linhas rasgando seda. Ele, acostumado a ter vinte, no máximo trinta comentários em suas postagens, vê mais de duas mil em uma manhã. Muitas com links de marchas nupciais. Sabendo por contactos, até Obama e Romney páram de brigar para cobrar que passem a lua de mel nos Estados Unidos.

Não é para menos. A moça, que usa a imagem de Grace de Mônaco como avatar, é conhecida pelo gênio terrível. Não leva desaforo para casa, não gosta de gracinhas de estranhos e já arranjou muita confusão por causa de gente invejosa. Muitos já lhe disseram que se fosse mais mansinha, mais meiga, mais submissa, arranjaria um par. As respostas geralmente vinham em tons tempestuosos. Não bastasse essa fama notória e recheada de boatos, muitos contactos lhe disseram que ela era feia como a fome gulosa.

Já namorou armamentos de grosso calibre, beleza não é tão importante. Apesar de todas as farras em comentários cômicos, fanfarrões mesmo, não consegue esconder dos amigos mais próximos a necessidade de uma pessoa com quem compartilhar a vida. Não para farras e desforras, mas para construir a vida, um projecto de vida, um lar, ou o que valha. Passarinhos verdes não tardaram a contar isso à moça. Ela, por sua vez, se cansou de pilantras que confundem uma barra acima do joelho com um convite para o motel. Cansou-se de ver o acompanhante cantar outra na sua cara, e depois se virar com um riso cínico. Por isso mesmo fechou todas as photographias pessoais ao público, só as reservando para os mais íntimos, isso antes de ele a conhecer.

Ele, por sua vez, publica cada vez menos imagens pessoais, mas ela pode ver todas. Tisc-tisc. Sempre foi desleixado, mas os tipos bizarros que encontrou no facebook o fizeram amadurecer na marra. Gente que pensa que quem não concorda com cem por cento de tudo o que dizem, é seu inimigo e deve ser eliminado, enfim, descobriu que a idade média está tendo um revival cibernético.

Os dois não se conhecem pessoalmente. Pelo menos nisso a amizade virtual tem um trunfo imenso, um só conhece a pessoa do outro, e foi o que despertou o interesse mútuo. Detrás daquela figura debochada e que prefere perder os dentes a perder a piada, ele mostrou-se, em conversas reservadas, ser um homem responsável, preocupado com as cousas mais simples da vida. Nem mesmo seu "melhor amigo" no facebook sabe que gosta de macarronada com passas, mas lhe contou que é seu prato preferido. Mesmo tentando, não conseguiu disfarçar o desgosto com o mundo de hoje, em que facilidades são usadas mais para alimentar a indolência do que para acelerar uma realização.

Ao contrário dele, que mora sozinho, ela mostra à família tudo o que faz na internet. Parentes na Turquia, na África do Sul, na Itália, no Japão, no México, na Argentina, em vários Estados da Federação, discutiram por meses a índole do brasileiro. A resposta unânime foi "Se ele te buscar em casa, case". E ELE FOI! ELE FOI E LEVOU FLORES! Que diabos lhe deu à cabeça para um hábito tão demodê? Levar rosas para o primeiro encontro? E mais, são rosas-chá. Ele não sabe o que elas significam, mas ela sabe. Só sabe que são suas flores preferidas. Que aquela mulher já calejada pelas decepções gosta de delicadezas, de quem se interesse pelo seu mundinho mais íntimo.

Apesar de todos os protestos dos amigos(?), lá está ele. Não tem volta, não sem a vizinhança toda fofocar e os candidatos americanos mandarem espiões lhe darem cabo. Aperta a campainha... Nossa! É campainha de três sinos!!! Fazia uns vinte anos que não ouvia campainha de sinos! Pela cor amarelada do botão, deve ter sido inaugurada com a casa. Quase meia hora antes da hora marcada, ouve passos apressados. Uma senhora muito bonita o atende e o reconhece. Solta um "Você veio!!!" que o faz sentir-se um canalha por ter cogitado dar o bolo. E é com um bolo de frutas com chocolate que ela o recebe, fazendo questão de avisar que a filha o fez.

Ok, agora está na sala, sentado em frente aos pais da moça, que todos lhe disseram ser uma baranga que tornaria qualquer cirurgião milionário, se decidisse fazer plásticas. Afinal, uma mulher de bom coração, inteligente e com humor à flor da pele, não pode ser bonita. Não naquelas cabecinhas pubianas. Mas o que ele vê em um retrato, no aparador, é exactamente o avatar da pretendida. Imagina que deve ter sido tão mal tratada pelos outros, que rejeita a própria aparência. Se lembra das boas conversas, das brigas virtuais e reconciliações, que lhe mostraram o caráter da moça e solta "Que tipo de cafajeste arranca uma lágrima de uma mulher assim???", sem ter ouvido direito que era justo o que os dois lhe falavam. Servem mais uma fatia de bolo, antes que ela desça do banho. Ela ouviu o brado.

Decidem esmiuçar a vida do rapaz, trocando factos da vida da filha. Acabam dando risadas, traçando paralelos. Ele sabe que ela é poliglota, muito independente, a ponto de tê-los tornado pais carentes, em uma fase da vida. Algo que eles têm em comum, é o gosto para música. Um gosta de quase tudo o que o outro gosta. Ambos estiveram no último show do Bee Gees no Brasil, mas na época não tinham perfís em redes sociais. São fanáticos por discoteque e tranqueiras dos anos setenta e oitenta. Nerds de carteirinha. Não têm fortuna, mas têm uma riqueza de vida que, realmente, fizeram bem em não dividir com qualquer um.

Tudo o que conseguiram foi com sacrifício, trabalhando duro, às vezes deixando as vontades de lado. Ambos são trabalhadores desde cedo, uma qualidade que sua mãe sempre disse que poucos têm. Não que seja a favor de se demitir o pai para pagar um terço do salário para a criança, mas faz bem ao moleque ganhar um dinheirinho, do qual não precise dar satisfações. E os dois começaram cedo. Ela tem seu Fusquinha 1982, sem mais nada de original, nem o câmbio, que é de cinco marchas. A Veraneio dele, bem, comprou batida, improvisou portas de fibra de vidro, com que sabe lidar, e nunca as trocou. Enfim, ele sabe que não deve esperar demais dela, talvez nem beleza.

Fica ansioso para conhecer o novo canhão de coração dourado, que agora decidiu ter como namorada. Afinal, ela nunca disse que aquele avatar é a sua imagem, então não mentiu. Ambos sabem que elegância depende muito mais da pessoa do que de seu bolso, viu isso se consolidando com o tempo, quando os ricos passaram a se vestir cada vez pior, gastando cada vez mais, com raras e felizes exceções. Usa uma camisa bege, jeans índigo, uma cabam mescla em cinzas. Ela põe o básico, um longuete cinturado preto de alças, pérolas falsas no colo e seu relógio à corda de estimação, herança da bisavó.

A moça é festeira e sabe fazer uma entrada triunfal. Por controle remoto, põe "Emotion" no home teather e, com o cair da tarde, a casa de família ganha ares de filme noir romântico. Ele se vira para conhecer a face feia do anjo da rede social, e se espanta. Por fora, fica calado, sem conseguir expressar uma palavra sequer. Por dentro "CAMBADA DE FIDAP#@*#!!! MENTIROSOS DO CAR@##*!!!!! QUE ME@!# DE CANHÃO QUE NADA!!!". Ele descobre que ela não usa o avatar da princesa, usa sua photographia editada pelo instagram. Com os olhos brilhando feito estrelas, ela solta "Você veio!!!" em um tom baixo e sedoso. Acrescenta "Fiz o seu macarrão favorito" e ele desmancha. Trêmulo, mostra as rosas, e ela é quem fica trêmula.

Silêncio. Só a canção preenche acusticamente a sala amarelo pálido. Olhos nos olhos. Ele descobriu da melhor maneira possível, que nem todo mundo mente na internet. Lembrando dos cascudos carinhosos e conselhos de sua mãe, quase instintivamente, solta "Casa comigo". Agora os pais dela é que tremem. A casa se torna um centro biossísmico. Ah, aqueles olhos brilhando! QUE MULHER MAIS LINDA!!!!!! Ele aproxima o buquê da amada emudecida, e ela simplesmente pula no seu pescoço, dando um beijo como resposta. A mãe muda seu status na rede social para "noiva". A Casa Branca se comunica com o Itamaraty, para avisar que será guerra se eles não passarem a lua de mel em território americano.

No dia seguinte, dezenas de photographias compartilhadas pelos dois perfís mostram como foi a noite, e que muita gente estava mais errada do que cair para cima.