19/10/2012

Pobre Renê!


Renê teve problemas com o fórum que freqüentava. Causava muitos problemas, fazia-se de vítima e atacava nos bastidores das mensagens pessoais. Não que não fosse uma pessoa interessante, era um maluco muito interessante, mas era ainda mais inconveniente do que interessante. Chegou a flertar insistentemente com um rapaz, que se apresentava como moça, no fórum. Deu problema, muito problema, muito mais do que ele era capaz de administrar.

Após uma cisão, que causou muitas debandadas, inclusive a sua, Renê abriu um blog, chamando-o de "Renê Alerta!". Finalmente poderia dizer o que quisesse sem ser incomodado por gente com pensamentos pequenos, atidos à realidade e ao ganha-pão cotidiano. Começou apenas com mensagens curtas, como "Eu não deveria estar escrevendo isto, mas é de suma importância que as pessoas saibam o que se passa no mundo real, aquele em que as mesquinharias da imaturidade não conseguem penetrar. Não estamos sozinhos, a sua vida não é segredo para quem manda no mundo, os gatos são criaturas geneticamente programadas para nos vigiar. Não posso falar tudo agora, ou levantarei suspeitas, mas ao longo do tempo vocês saberão da verdade". Colocou uma ilustração de sua autoria e publicou. Desenhava mal, mas se considerava um Bosh incompreendido.

Uma, duas, três, quatro publicações e nada. Nada de comentários. Nos bastidores do blog, via alguns acessos, mas se decepcionava ao ver as origens e as palavras-chave das buscas. Praticamente todos entravam no blog por acaso, por um erro do motor de busca. Bem, se valeu de sua experiência para gerar intrigas, em seu favor. Achou que não faria diferença sonhar um pouquinho, ainda mais que estaria mentindo só para si mesmo.

De uma hora para outra, doze leitores assíduos apareceram do nada, tecendo longos e rasgados elogios à genialidade, à originalidade, à lucidez e ao bom humor de Renê. Claro que não comentavam todos os doze em todos os artigos, mas pelo menos seis comentaristas por texto, ele tinha. Chegou a experimentar trinta e oito comentários, quando escreveu sobre como os gatos foram geneticamente modificados na segunda guerra, pelos nazistas, plano que foi apropriado pelos americanos e hoje está em fase final de dominação do mundo. É por isso que existem sinais ocultos, como o de as bruxas gostarem de gatos, são as sociedades secretas tentando alertar a humanidade.

Material mão falta. Renê se dá ao trabalho de passar todos os fins de semana e folgas, fazendo pesquisas em jornais impressos e pela internet. Devemos reconhecer, esforçado ele é, e muito. Consegue montar uma teoria conspiratória que seria um candidato ao Oscar, se fosse filmada, mas peca quando coloca seus medos e traumas pessoais nas conclusões. E quem disse que os filmes respeitam a integralidade de uma obra?

Já com quase cem leitores, Renê considera conveniente abrir seu próprio fórum. Tece um texto só para avisar aos leitores "Amigos, eu agradeço muito pelo prestígio, pelos elogios, e até pelas críticas assaz constructivas que têm me dirigido. Então, como demonstração desta gratidão, abri um Fórum no blog, para vocês poderem não só tratar das minhas publicações, mas também abrir tópicos e falar de assuntos de seu interesse, até mesmo tratar de asuntos pessoais, que ninguém é de ferro... Exceto, é claro, o verdadeiro Barak Obama mecânico, que manipula o falso Obama e o Romney, rsrsrs...".

A adesão é quase imediada. Basta o leitor se inscrever e dizer por que quer ser forista do "Renê Alerta!". Todos os leitores habituais são aceitos, mas os esporádicos encontram dificuldades, alguns até desistem de entrar, embora possam ler o que os outros escrevem. Os tópicos se proliferam nos quadros, que vão dos textos do blog, passando por política, entretenimento, até assuntos pessoais. Rapidamente as amizades se formam e se consolidam no fórum.

O fórum progrediu, com glórias e problemas. Algumas dissidências, algumas brigas, mas a rigor, progrediu. Uma vez por semana, pelo menos, Renê publicava um artigo, que rendia muitas páginas com centenas, às vezes milhares de comentários e discussões, não raro muito acaloradas. Logo os foristas começaram a se encontrar, publicando as photographias em tópicos dedicados. Renê estava feliz, ou pelo menos era o que demonstrava.

Na realidade, Renê não tinha um só forista. Eram todos falsos, criações de sua imaginação fértil e bem coordenada. Não é para qualquer um, gerir milhares de personagens, sendo uns setenta excepcionalmente activos, mas ele conseguia. As photographias dos encontros, eram tiradas da internet, editadas para modificar rostos, paisagens e número de personagens. Tudo era falso, exceto a sinceridade de Renê em tentar alertar a humanidade para o governo oculto, que estava formando uma realidade artificial e concluindo o domínio do mundo.

E o "Renê Alerta!" não era uma realidade artificial? Ele chegou ao ponto de arrematar seis notebooks em um leilão, para ter seis meios (quase) simultâneos de postagem de comentários, assim podendo dar maior veracidade aos foristas... E à sua própria ilusão. Publicou, certa feita, um texto explicando aos leitores de fora, que os foristas estavam receosos com gente nova, de fora, que essa gente é que tinha causado as brigas homéricas protagonizadas lá dentro, e por isso passaria a pensar duas vezes, antes de aceitar alguém. Nomeou doze de seus personagens como conselheiros e moderadores, para ajudá-lo a gerir seu mundo virtual.

Com dois anos de fórum, Renê passou a acreditar que realmente tinha milhares de foristas, fãs, um conselho moderador e tudo mais. Não se perguntava mais se aquele forista falso diria realmente aquilo, simplesmente incorporava o personagem e escrevia. Ao sexto ano, trabalhando exclusivamente em função de sustentar seu mundo, comprou um servidor usado de grande capacidade, para que funcionasse como robô do fórum. Assim, de então em diante, algumas frases e mensagens simples eram postadas sem a sua intervenção, ficando a seu encargo coordenar as reações às intervenções do robô.

Pobre Renê. Queria brincar com o mundo, agora seu mundo brincava consigo. Não que não tivesse leitores de verdade, até porque as caixas de comentários extra-fórum ainda existiam, e tinham comentários que ele se prontificava em responder. Mas o mundo real já tinha perdido o encanto, seu mundinho virtual, longe de ser um paraíso, estava sob seu relativo controle.

Com o avanço da tecnologia e o barateamento dos hardwares, um servidor maior assumiu a função de robô, e frases curtas, em seu nome, passaram a responder à maioria dos comentários extra-fórum. Funcionou bem, muito bem. Bem o bastante para ele poder se dedicar ao fórum, às suas teorias conspiratórias, a dar sentido para sua vida.

Um dia, Renê morreu. Morte súbita, sem explicações conclusivas dos médicos, sem nem mesmo que sua família, de quem se afastara há muitos anos, soubesse. Os parentes só sabiam dele pelo blog. Prevenido, para o caso de tirar férias, ou ter que se esconder dos espiões das irmandades conspiratórias, tinha mais de mil e trezentos artigos escritos, prontos para serem publicados uma vez por semana. A sofisticação de seus robôs os fazia traçar cálculos complexos, para elaborar os comentários dos foristas, com base no que eles já tinham dito antes em situações semelhantes.

Ah, pobre Renê. Pelos próximos vinte e cinco anos, existe a possibilidade de ninguém dar por sua falta. Os artigos continuam sendo publicados, os comentários continuam sendo respondidos, os foristas continuam se relacionando, seu mundo continua vivo, mesmo seu criador estando morto.

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