31/10/2012

Oras, vende na licitação!

professorasueli.wordpress.com/2011/10/07/humor/
O cenário era desolador. Para quem olhasse sem muita atenção, parecia estar tudo perfeito, alinhado, enfim, apto ao comércio. Mas nenhum item resistiria a uma análise cuidadosa. Debaixo daqueles laminados em cores vivas e boa textura, uma série de falhas de fabricação indicavam prejuízo certo, nada passou pelo controle de qualidade.

Os dois analisam mais uma vez, para ver se algo pode ser vendido ao menos como se fosse usado, para o prejuízo não ser total. Abrem as gavetas de um armário, ela desliza silente e macia, mas não demoram para verem parafusos muito mal fixados. Fixados não por meio de buchas, mas directamente no compensado. Fora que nem todos os pontos de fixação foram sequer furados, para recebê-los. Em pouco tempo de uso, as gavetas começariam a afrouxar, travar e, pior, se desmantelar, com o risco de ferir alguém com gravidade. Seria processo certo.

Os sócios se olham, imaginam que tenha sido realmente aquele moleque senil, a quem fizeram a besteira de permitir que cumprisse o aviso prévio trabalhando...

- Não reaproveitam os pinéis, poderiam quebrar durante a remontagem. Não reaproveitam os trilhos, que já estão empenados pela sobrecarga. Se muito, aproveitamos os puxadores, mas o trabalho de tirá-los custaria mais do que valem no mercado.

- De quanto é o prejuízo?

- Quase um milhão de reais.

Cai sentado em uma cadeira, que também foi reprovada e se desmonta, jogando-o ao chão. Ferimentos leves, superficiais, mas que doem muito no orgulho. Sobem ao escritório, já pensando em ganhar alguma merreca no ferro-velho, já que algum metal há naqueles móveis. Vão ao computador, ver a cotação do ferro para sucata.

Alguns minutos de desânimo depois, dão de cara com um edital muito mal divulgado, até parecendo que os responsáveis não querem que o povo saiba. Clicam, lêem e mandam um e-mail para o contacto indicado. No dia seguinte, um homem de camiseta bege e calças de ginástica aparece, se identifica,  mostra o crachá e a conversa se inicia.

O visitante analisa os móveis. Se dá o trabalho de ver uma amostragem grande, para ter certeza do que está avaliando. Os empresários afirmam que eles agüentam seis meses sem dar problema, com serviço moderado, sem muita carga. Aquilo é melhor do que ele costuma ver, deduz então que os dois são novatos em licitações...

- Meus amigos, vamos conversar. Cá entre nós, isso não tem a mínima importância. O governo gosta de comprar, de fazer licitações, de movimentar a economia, se é que me entendem. O que vocês têm aqui, é melhor do que costumamos comprar para as autarquias. Móveis de primeira, só em gabinete de figurão, e mesmo assim a gente renova com freqüência. Em escolas, por exemplo, isso aqui está passando de bom. Se quebrar, eles arrumam, são criativos, sabem que não vão receber outros tão cedo e a secretaria fica em cima, cobrando resultados para as estatísticas.

- Mas isso pode machucar alguém.

- Pra isso eles têm planos de saúde. Aliás, funcionário público é muito estressado, vocês tiveram que requerer o alvará, sabem disso. Uma licença médica prolongada faz bem para eles.

Vai passando a conversa e, aos poucos, preparando as presilhas de caudas. Os convence de que, se não forem eles, outros ainda piores vão ganhar a licitação, então é melhor se livrarem do prejuízo e ainda ganhar experiência em vendas para o governo. Combinam um encontro, para selarem a parceria.

Se encontram em um lugar reservado, em um restaurante mediano, já com alguns códigos combinados. Estão os três de camisas pólo listradas, o que significa que as partes se entenderam, agora é negociar a montagem da casa. Combinam o chá de casa nova, os valores das prendas, até mesmo os peões que vão fazer o transporte. Tudo isso é código, inclusive a intenção de fazer uma surpresa à noiva.  Tudo combinado, eles dão um adiantamento em dinheiro e o contacto vai dar doce às crianças.

Três meses depois, como combinado, o prejuízo de quase um milhão se transforma em lucro de um e meio, já descontadas as propinas pagas e a lavagem de dinheiro. Mandam o mais rápido possível os móveis defeituosos para o depósito do Estado. Como lhes foi dito, não há um técnico sequer para supervisionar a entrega, os carregadores sequer têm certeza do que estão guardando. Tudo é colocado de qualquer jeito, com rudeza e descaso.

Vão-se seis meses mais, até a burocracia liberar os primeiros móveis, que guardados sem critério, já apresentam sinais de danos, isentando de responsabilidades o fabricante. Pronto, agora tudo será culpa da secretaria, conforme lhes foi prometido.

Outras licitações são feitas, outras são vencidas e eles desistem de vender para o varejo. De vez em quando até fazem uns móveis bons, para variar, mas já não têm a menor preocupação com a qualidade, que já foi reconhecida pelo público. Houve um aluno que teve a mão esquerda amputada, quando uma gaveta despencou e caiu de quina sobre seu pulso, mas isso é culpa da secretaria de educação, não deles. A televisão cai em cima da secretaria, que precisa pagar uma indenização que nem chegou perto do bomso do secretário, e tudo fica por isso mesmo.

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