15/12/2014

Fusqueando no fim do ano

 Ele entra no Fusquinha 1967 verde, decidido ao que se propôs. Mal sai do bairro residencial e já vê luzes piscando por todos os lados. Mal entra em uma via principal e se vê cercado de carros em vários tons de cinza, praticamente parados. De que adiantou ter importado o Plymouth Superbird numerado, se naquela muvuca o ronronar encorpado de seu V8 permaneceria em marcha lenta o tempo todo? Vai no Fusca mesmo.

  Das janelinhas mínimas ele vê as pessoas apressadas, com celulares e smartphones dividindo as mãos com as sacolas. Uma mulher nem percebe que roubaram as suas, se tão entretida com o maldito tablet. Consegue andar uns dez metros e o trânsito para de novo, desta vez por causa de uma batida. Um Gol enfiou na traseira de um Up! e a maioria estava perto demais para poder desviar. Briga de família, pensa ele, melhor não se meter. Espera pela primeira brecha e se aproveita do metro e meio que manteve do Cruze para trocar de pista.

  A cerca de vinte metros à frente, um Caio Alpha Vip caindo aos pedaços pressiona uma Grand Besta que insiste em respeitar o sinal vermelho, o motorista da Kia estaciona e o ônibus avança o sinal, batendo em outro logo adiante e arruinando de vez o trânsito. Quanta irritação, quanto estresse, quanta vontade de de encontrar um portal das fadas e sumir deste mundo! E olha que estamos na época do amor e da fraternidade! Em época de carnaval ele vê o próprio diabo fugindo do inferno que se instala na cidade.

  Sem escolha, desiste do itinerário que traçou e pega a primeira via transversal que consegue, entrando em bairros mais caros e cheios de luzinhas que simbolizam o que suas casas não têm. Um Azera branco entra na contramão, buzina e vai embora, chamando o milionário do Fusquinha de pobre e intruso. Ele segue pelo reino da plebe esnobe, em meio a casas ajardinadas e repletas de temas natalinos. Tudo tão bonito quanto falso, pelo menos nas que conhece, como a daquele contraventor que quase bateu no seu carro e não o reconheceu.

  A motorista de um Mercedes-Benz E-400 Hybrid preto até demonstra civilidade, dando-lhe a preferência em uma rotatória. Talvez porque ela também esteja farta de tudo aquilo, se há algo que aquele carrinho tem de sobra é honestidade, não parece ser o que não é e dependendo do uso, entrega até mais do que promete. O completo oposto do que está acostumada naquela vizinhança. Sabe de muita gente que arrota Cadillac, mas pena para pagar as prestações do Impala.

  Enfim consegue entrar em uma zona comercial. Aqui, pelo menos, pobre com dinheiro na mão tem alguma consideração. Ele em sua fantasia de pobre pode circular com menos medo. Os panetones que estão à venda desde Outubro não dão para quem quer, mesmo os ruins. Já se preveniu, o carro tem tudo de que vai precisar. E ser bairro caro não o poupa das mazelas de um prefeito que não tem gestão, tem uma congestão à frente da capital do Estado. As madames não têm com seus esportivos utilitários a desenvoltura de seu mini Panzer, em meio a todos aqueles buracos e poças de lama.

  Consegue sair da babel. Agora anda a mais de quarenta por hora, mesmo com asfalto cheio de remendos, desníveis críticos e buracos. Engata a quarta marcha e o boxer ronrona macio. Liga o rádio e ouve "Solitaire" na voz de Karen Carpenter. Acalma-se. Finalmente vai passar o fim de ano sossegado, sem ter que exibir dentes e participar de selfies infames. Participou ontem do último encontro oficial do clube do Fusca, já avisando do que iria fazer, e que por isso não poderia aceitar convites de fim de ano. Hpuve insistência, mas ele está decidido a ter um tempo para meditar e ter em mente o que fará da vida de agora em diante.

  Sua intenção é ficar só, ele e a solidão, mas mudanças de planos que não comprometam o objectivo podem correr, como a de itinerário para pegar as ruas largas de bairros industriais. Encontra uma amiga à beira da alameda, com seu Fusquinha 1968 vermelho parado. Nada de mais, um alicate e uma argola de chaveiro resolvem o problema que mandaria os carros modernos para o guincho. Ela não foi ao encontro de ontem, teve a mesma idéia, passou meia hora antes pelos mesmos lugares, passou pelos mesmos sustos, teve as mesmas irritações e seu Fusquinha está cheio das mesmas coisas.

  Vão os dois Volks então para o recanto que ele preparou, onde até há bons sinais de celular e internet, mas quase não usam os recursos, querem mesmo usufruir da solidão a dois. O ano novo começa com uma senhora dando ordens na casa. Só digo uma coisa, não digo nada. E digo mais, só digo isso.

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