29/10/2014

Um crime perfeito


  Aparentemente era uma esposa recatada e submissa, mas todos sabem que dentro de casa as coisas costumam ser um bocado diferentes do que se ostenta nas ruas. Ela se fazia de "levemente" submissa para o marido se encher de confiança e enfrentar o mundo, afinal foi mimado para ser o macho alpha da humanidade e não estava muito preparado para as frustrações. Ela o poupava de todas as que podia, às vezes tomando a frente dos negócios e dando recados indelicados aos malandros que tentavam depenar seu marido. Nada de extraordinário, só coisas de máfia mesmo.

  Praticamente todos os seus caprichos eram satisfeitos pela linda e dedicada esposa. Contra as ordens médicas, fumava à vontade em uma área específica na chácara onde moravam, feita para as crianças não se acostumarem a ver o pai fumando tanto e sentindo prazer nisso. Algumas concessões ele fazia, confiava muito no bom senso de sua adorável esposa. Afinal, ela era sua cúmplice, seu porto seguro, o acalanto onde tinha seu repouso garantido, protegido do mundo agressivo lá fora. Ah, era um casamento muito, mas muito feliz.

  Ela também era uma confeiteira talentosa. Tomava para si, dispensando empregadas, a tarefa de encher a casa com bolos, doces, pães, roscas, bombas, cremes e tudo mais. O casal de filhos podia comer, sim, mas só um pouco. Quase tudo era para seu amo e esposo ter uma alegria a mais na volta ao lar, onde era o rei e assim o tratava.

  E os drinques? Ah, ela poderia abrir um restaurante-bar e ensinar tudo aos empregados, teria casa cheia todas as noites. Sua criatividade, sua vastidão e profundidade de conhecimento, era tudo de cair o queixo! Identificava de cara a qualidade de um vinho, raramente precisando abrir a garrafa. Um uísque que tivesse onze anos e onze meses não passava pelo seu crivo, sabia identificar até a madeira do tonel. Os amigos o invejavam muito, em seu lar eles tinham bebidas que não encontravam em outro lugar nenhum do mundo.

  Não eram só aparências para visitas ou transeuntes, os empregados sempre comentavam o quanto ela conseguia manter a paz e a harmonia daquela mansão, enquanto outros ricos gastavam os tubos para manter as aparências e manter amantes. Ela não, ela conseguia manter seu esposo no cabresto do matrimônio contraído. M\as era um cabresto muito confortável, muito prazeroso, era tudo o que importava àquele homem. Ter muito mais prazeres do que aborrecimentos estava de bom tamanho.

  Mas os excessos de seus prazeres cobraram o preço. Cedo ou tarde eles sempre cobram. Os abusos alimentares lhe causaram disfunções graves no tubo digestivo, rapidamente evoluindo para uma úlcera muito importante. Também os níveis de açúcar e gordura no sangue começavam a ficar mais altos do que se poderia controlar. Não demorou muito para precisar de intervenções medicamentosas para conseguir fechar qualquer ferida cotidiana, pois o corpo já não o conseguia.

  Paralelamente o fígado começou a falhar. Os prazeres etílicos, aquelas misturas que só sua amada esposa sabia fazer, também cobravam a gorjeta pelos momentos alegres que ofereceram, pela alienação conveniente do mundo real que ele tanto buscava em casa. Ela por sua vez, compensava seu sofrimento físico com sexo, muito sexo, que o ajudava a tolerar com facilidade o sofrimento físico que seus vícios lhe renderam.

  Ele começou a falhar e temer por isso, mas ela sempre lhe dizia "Até que a morte nos separe, meu esposo" e ele ficava tranqüilo. Ela sempre revigorava seu orgulho masculino e ele sempre se sentia à vontade para dar escapadelas dos tratamentos complexos que fazia. Era seu amo e esposo, como prometera que seria, e suas vontades eram sempre satisfeitas, a qualquer preço.

  Certa manhã, porém, ela berrou por cada morador da mansão. Todos os empregados se apressaram em ir acudir sua generosa senhora, que tantas vezes os socorrera em situações que nada tinham a ver com os assuntos do trabalho. Diante dos filhos, empregados, irmãos do esposo e advogados, ela teve a trágica notícia do inevitável. Falência múltipla de órgãos. Estava praticamente cego e impotente, quando morreu.

  Todos eram testemunhas de sua dedicação, de quantas noites perdeu cuidando dele, após tomar conta dos negócios. Todos eram testemunha de sua lealdade, de ter transformado o matrimônio em um sacerdócio. Todos sabiam o quanto ela era forte, que depois do luto conseguiria levar a vida e criar os filhos. Tinham certeza que aquela mulher que tanto admiravam sairia deste luto de cabeça erguida e passos firmes, pronta para mais tarde, quem sabe, fazer algum sortudo se sentir um deus.

  Mas as coisas não eram assim tão bonitas. Em seu coração, só ela sabia o que realmente havia por detrás de tudo. Não o deixou viciado nos excessos de prazeres por amá-lo, pelo contrário, o odiava tanto que se tornou insensível à sua presença e aos seus toques. Ao lado do caixão, momentos antes da cremação, sozinha, fingindo rezar...

  _ Queime no inferno, filho da puta! Tudo o que você sofreu foi pouco, eu queria ter prolongado sua agonia por mais cinco anos, mas desgraçados como você são sempre fracos mesmo! Você não sofreu nem metade do que minha mãe sofreu após ter matado meu pai, só porque ele parou o ônibus e não te deixou furar o sinal, seu vagabundo! Vou com prazer pro umbral, sabendo que sairei de lá muito antes de você, porque não me apeguei aos valores baixos que sua gentalha amaldiçoada apregoa debaixo do pano. Agora eu sou a dona de tudo, vou levar meus filhos e minha mãe para morar em San Francisco, como o meu pai sempre sonhou. Já você, vou jogar suas cinzas no aterro sanitário, cachorro infeliz. Agora eu vou ter um marido, você foi só um alvo do meu ódio.

  Se levanta, autoriza a cremação e cumpre com tudo o que disse que faria, e tudo o que disse se realiza.

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