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22/09/2020

O lado B dos civilizados

 

Tóquio

            A despeito de toda a admiração que se possa, e se deva ter por povos mais civilizados, é pertinente ressaltar que a utopia é um prato que alguém já pagou; nada é grátis. Quando esse alguém cessa a subvenção e por qualquer motivo não se encontra outro à altura, a utopia deixa de ser uma flor aprazível e se revela uma planta carnívora. Vamos deixar claro a diferença entre “mágica” e “ilusionismo”; a mágica faz milagres com o que se tem, potencializando e optimizando de tal forma os recursos, que permite a um pé rapado fazer com suas mãos o que nem todo magnata conseguiria fazer com toda a sua fortuna aplicada; ilusionismo pressupõe pegar o nada, dele fazer o tudo e a este dar duração eterna, transformando uma casquinha de sorvete em cornucópia… pois é a este que os defensores de utopias se apegam, criando um universo paralelo onde até as leis da física mudam, onde até a velocidade da luz é relativa, apenas para dar suporte aos seus anseios. Neste universo paralelo eles são os mestres, mesmo que mal saibam amarrar os próprios cadarços no mundo real, por isso só aceitam conversar sob as leis desse universo.

 

            Uma das regras sacras e mais furadas desses defensores é a de que existe uma sociedade justa com um sistema justo suprindo todas as necessidades do cidadão, claro que problemas existem, nada é perfeito, mas juntos avançaremos mais e mais para um país mais próspero e humano. Usar de bordões empolgantes e inflar o entusiasmo faz parte dessa defesa, por isso os jovens são tão vulneráveis a essas idéias. Se enchendo dessas idéias, se aprofundando nelas e em suas meias-verdades, esses jovens acabam se levando demasiadamente a sério e se considerando um cientista, vendo os outros como ignorantes e esfregando na cara de qualquer discordante o “embasamento” de suas convicções; não basta tê-las, é preciso impô-las. Já falei disso e de tantos outros temas correlatos, mas praticamente nada mudou verdadeiramente de 2006 para cá, e um vídeo triste de 2015 mostrou-me o apocalipse individual que já acontece há muito tempo, mas que essa empolgação pueril pelas civilizações civilizadas prima censurar a qualquer custo. Sistemas e sociedades e sistemas são como máquinas virtuais coletivas, máquinas não tem a menor obrigação de serem boas, têm obrigação de funcionar a contento e, sempre que necessário, a toda velocidade, mesmo que alguém seja atropelado. Ser bom e justo é papel das pessoas, não de entidades burocráticas.

 

            Começo falando de um dos piores equívocos, e que mais frustram emigrantes pelo mundo, o de que em países “civilizados, evoluídos e bem desenvolvidos” a sociedade por si já supre suas necessidades ou, pelo menos te garante o acesso aos meios de supri-las; e aqui se confunde necessidade com aspiração e desejo. Não me refiro a ditaduras, me aterei a países que são satisfatoriamente democráticos. Para se conseguir uma colocação digna, por mais fácil que seja, é preciso sair à rua e ouvir um “não temos vagas” atrás do outro. Pode ser rápido? Sim, pode, até no Brasil sei de casos em que a procura foi mais efêmera do que o seguro-desemprego, mesmo em épocas de recessão, mas são exceções. Ter suas reservas e fazer economia de guerra atenuam os efeitos do desemprego, mas muita gente quer manter um padrão próximo, ou até igual ao de que desfrutava quando estava empregada. Assim não adiantam seguro social e bicos esporádicos, a situação financeira vai se deteriorar mais rápido do que os sortudos conseguem uma recolocação. O pensamento de que se está em um “sistema justo de uma sociedade evoluída” deixa rapidamente de ser um tranqüilizante para se tornar um desespero, não raro acompanhado de revolta pelo sentimento de exclusão. É quando o indivíduo descobre o quanto é caro manter toda aquela infraestrutura.

 

            Para as pessoas ao redor, à amiúde imersas em seus próprios problemas, fica a impressão de que aquele problema é só seu e que tu vais, cedo ou tarde, retomar sua vida normal; boa parte do que chamamos de egoísmo se baseia nisso, na certeza inconsciente de que tudo vai se resolver por si ou que alguma entidade virá em seu socorro. Nesta certeza, em conjunto com narrativas de pessoas rudes com quem tenta ajudar, o cidadão comum prefere não se aproximar e não se inteirar dos seus dramas; aos poucos a indiferença se torna um casulo protetor de que as pessoas não abrem mais mão. Não é só em países violentos como o nosso que existe medo social, ele existe em toda parte e por diversos motivos, este é só um deles. Ainda pesa especialmente entre os jovens, o anseio por liberdade e de cortar os laços familiares, para finalmente sentir-se dono de sua própria vida; uma das mais belas meias-verdades cantadas pelos idealistas. Esse topete atrapalha muito, porque o indivíduo não percebe a mensagem corporal que transmite, isso pode ser uma pá de cal em qualquer entrevista para emprego, pode ser até mesmo para quem decide trabalhar por conta própria. Com esse anseio por liberdade, a necessidade de viver bem pode ficar em segundo plano; assevero que não são incompatíveis, pelo contrário, mas humildade e planejamento são fundamentais na vida adulta, que pode chegar antes da fase adulta. Muita gente, mas muita gente mesmo tapa o sol da necessidade com a peneira dos desejos, não só por prazeres físicos, e vai levando a vida assim até quando der; não é raro dar em suicídio.


            Acreditar piamente que se vive em um país quase perfeito, com problemas pontuais e nos quais ninguém de fora deve se meter, ajuda a pressionar o indivíduo. Qualquer sinal de insatisfação é tratado como ingratidão, pois bilhões de pessoas pelo mundo passam fome e ele tem tudo o que quer. A reprimenda tem sua validade, mas não para todos os casos. Não é só de fome que se chora, não somos cactos, precisamos de mais do que água e nutrientes para viver. Uma das drogas mais utilizadas para atenuar essa deficiência é apontar o dedo para os outros países, que não são tão conscientes e limpos, por isso não estão fazendo sua parte para salvar o mundo, assim a causa da infelicidade não é ter trocado suas necessidades por desejos, é a existência de pessoas que não correspondem ao seu idealismo; vejam, meu país é um paraíso, um exemplo e paradigma para toda a humanidade, por que vocês simplesmente não nos imitam e páram de destruir nossos sonhos? O facto de se ter pós-doutorados não torna ninguém imune a isso, intelectualidade não é vacina contra males da psique.

 

            Aliás, esses países são campeões em auto assassinato. Para quem tem um mínimo de recursos, tudo é muito fácil. Comida é muito fácil, diversão é muito fácil, sexo é muito fácil, droga é muito fácil, pular na frente do trem é muito fácil… A facilidade é uma ajuda valiosa para quem está fragilizado, mas para quem está em boas condições gerais ela é um ópio de ação limitada, aos poucos deixa de fazer efeito e aquele que tiver feito da satisfação de desejos o norte de sua vida, perde facilmente o sentido de viver. Uma estrutura perfeita, com uma civilização perfeita, proporcionando uma vida perfeita em uma ilusão perfeita, cujo desvanecimento mostra o imenso espaço vazio onde deveria haver uma coleção de experiências de vida, que dariam suporte à subsistência e aos planos para anos seguintes. Não é à toa que cidades grandes, com vida noturna mais frenética, concentram o grosso dos casos registrados. Em países nórdicos, e do extremo oriente, isso nem sempre é notícia porque já faz parte da rotina, e porque a indiferença cumpre bem seu papel de casulo protetor. Ah, claro, quando há uma notícia vinda de muito longe, a hipermetropia que esse casulo causa logo eriça pêlos, fazendo parecer que os problemas próximos simplesmente não existem. Isso que tanta gente chama de pieguice, foi o que garantiu a sobrevivência da espécie na pré-história, e teria garantido a de tantas crianças que se mataram por não terem a quem ou não conseguirem chorar e pedir por socorro.

 

            Essa indiferença não está apenas na sociedade externa, a família geralmente não vê a hora de se livrar dos filhos, que não são mais aqueles bebês fofinhos e fedorentos, mas tão aprazíveis que a lei os obrigou a criar até terem idade para se virarem sozinhos, e isso pode ocorrer antes da maioridade. Fazem questão de que o já petiz não se sinta tão à vontade dentro de casa, tratando-o como uma mudinha que será plantada muito longe do viveiro; a cobrança pelo suprimento de suas necessidades básicas pode fazer parte do longo e doloroso ritual de expulsão. Confiantes de que o adolescente vai conseguir se virar, os genitores viram as costas assim que ele põe os pés para fora, e não raro nunca mais querem notícias. Adolescente sozinho é uma mina terrestre. Se cedo morrer, morreu, talvez nem saibam se e quando isso acontecer. Os laços familiares, que em muitos casos poderiam ser a única ligação com a subsistência, são consideravelmente frágeis nesses países. Tão frágeis que deixam de existir na primeira esquina virada. Aos poucos aquela imagem photográfica na estante perde não só a cor, mas também o nome de quem ninguém se lembra mais quem é... ou era. Qualquer ensaio de culpa pelo feito ou sentimento de responsabilidade para com o indivíduo, é prontamente sufocado pela narrativa das oportunidades fartas e do bem estar social garantido. Garantido, meus queridos, só o óbito.


            Quando o subconsciente começa a perguntar o que tu estás fazendo aí, é o sinal amarelo para prestar atenção ao redor e se certificar de que aquele lugar é ou não adequado à tua natureza. Infelizmente ele não consegue falar muito alto, nos primeiros momentos, precisa de prática e observação para conseguir gritar, até lá a propaganda do falso frugal te convence de que 2m² bastam para morar, que a vida deve ser vivida lá fora, e que qualquer coisa além é ostentação ofensiva à sociedade civilizada e inclusiva; não importa a tua real necessidade de espaço, aquilo é obrigatoriamente o bastante e ponto final. O lar é o convívio social civilizado e desenvolvido do sistema justo e solidário, que está se lixando para suas necessidades íntimas, quer é te enfiar facilidades e prazeres, dando conforto moral mesmo que às custas de destruir seu corpo e seu psicológico. Eles acreditam ser livres, precisam acreditar nisso, mesmo vivendo numa gaiola psicológica que os mantém à parte dos próprios sangramentos. Quando a propaganda começa a perder efeito, os gritos do subconsciente ficam cada vez mais altos e não há para onde escapar, ou os ouve ou enlouquece. O abuso crescente de ansiolíticos não deixa dúvidas sobre o que mais acontece.


            Corrobora para esse quadro de declínio humano, o gigantismo de muitas cidades contemporâneas, que é acompanhado pela indiferença não muito menor para com o indivíduo. Para onde quer que se olhe há faces, tão somente faces sem rostos, falas sem vozes, expressões sem sentimentos, agasalhos sem calor. Todos são estranhos, mesmo aqueles que se conhecem há muito tempo. Ninguém quer conviver com o próximo, quer simplesmente usufruir das experiências que o outro puder oferecer, em um vampirismo mútuo e cada vez amis intenso. Tudo o que essas pessoas poderiam oferecer de bom, quando o fazem, é dedicado à privacidade pública das redes sociais, onde escancaram seus pedidos de socorro nos anseios não realizados dos desejos satisfeitos em photos, vídeos, gifs e toda essa parafernália virtual. Daí o sucesso que faz cada plataforma de compartilhamento que parece ser diferente, mais prática e descolada do que as anteriores. Cobram de si mesmos aproveitar o dia em cada segundo das distrações que seu país desenvolvido e civilizado pode oferecer, evitando ao máximo olhar para dentro e ver o que seu próprio cabedal tem a oferecer, porque isso implicaria em encarar também os gritos de dor e socorro abafados com o tempo. Sabem aquela máxima de que o palhaço é um homem triste? Ela é real. Via de regra, ninguém expressa a contento uma necessidade satisfeita, só se consegue expressar o que lhe falta, e tanto melhor quanto mais falta fizer.


            Tal como o bom palhaço, o jovem, solto num mundo cheio de prazeres e nenhuma alegria, perde paulatinamente o interesse pela própria vida. A maioria, com uma coragem de fazer inveja aos melhores combatentes, enfrenta a tendência crescente ao suicídio se segurando só por mais um dia, só por mais esta vez, ainda que recorrendo e ingerindo distrações menos perigosas, álcool e fumo entre elas. Claro que isso tem um preço, transtornos mentais não são exclusivos dos azarados que nascem com eles. E a resistência destes faz seus governos inflarem as estatísticas de bem estar e prosperidade, acompanhando com a retórica confortável de que seu povo é desapegado de bens materiais, quando na verdade está é se lixando para tudo e para todos, inclusive cada um para si mesmo. Mas é uma retórica confortável, faz a vida parecer que tem sentido, então vestem carapuças em que não cabem suas cabeças. Quando a carapuça se rasga, pela insistência em vestir, as expectativas não correspondidas cobram o preço de terem sido chamadas em vão.


            Do lado de cá, um exército de alienados memorizadores de frases alheias repede ad aeternum o que manda a cartilha, muitas vezes atribuindo seus próprios ideais aos povos que julgam ser o apogeu da civilização, mesmo que esses povos rejeitem tais ideais; vocês não vão gostar de ser um norueguês furioso, ao ouvir "fale da experiência socialista no seu país" de um desses memorizadores, é uma das poucas coisas que já soube fazê-los sair do sério. Eles sofrem do mesmo mal que os outros, mas apontando o dedo acusatório para o próprio país  e sonhando com a vida fácil, farta e gratuita de outras paragens. Não por coincidência, a maioria mora em grandes cidades e padece dos mesmos males de quem falei agora, só que em um país muito imperfeito, o que só alimenta tudo isso. Repetem para si mesmos que são livres, bem resolvidos, com senso crítico aguçado, que os outros são a causa de suas frustrações e depressões. E uma vez que a maioria desses países civilizados não admite suas reais mazelas, a narrativa de "eu sou livre", mesmo dentro de uma gaiola bem intencionada, se sustenta.


27/08/2019

Neuras fúteis; Privacidade pública


Vamos combinar? Se quer aparecer, assuma o risco.

            Eu lamento informar que a privacidade fora da solidão NÃO EXISTE. Tu não podes, por exemplo, pedir que alguém em ambiente público se afaste muito só para tu poderes falar ao celular; ou digitar, que seja. Assim como não dá para pedir que as pessoas não ouçam o que estiver falando, a não ser que consigas falar em volume tão baixo e ao mesmo tempo de forma tão clara, que a pessoa do outro lado só precise aumentar o volume para te compreender, mas então é a outra pessoa que estará abrindo mão da tal privacidade; a não ser que esteja, como eu disse, na mais sacra e austera solidão.



            É igualmente inútil, tanto quanto desgastante, alimentar neuroses conspiratórias sobre a exposição de suas informações pessoais na mídia. Lamento, mas o que sai de tua mente não está mais sobe o teu controle. Simplesmente não tens como controlar o que outros farão com a photo que foi publicada, o comentário postado ou mesmo a pesquisa respondida. Nunca, em nenhum momento do espaço-tempo foi assim. Se tu disseres que não gostas de jeans surrado e algum empregado da indústria da moda souber, os executivos saberão cedo ou tarde e saberão se aproveitar disso, até pelo bem e sobrevivência das empresas. O mesmo para os governos, que simplesmente PRECISAM saber do que agrada e do que incomoda o cidadão, para poderem saber como agir de então em diante.



            Não é de hoje que mesmo os vizinhos, colegas de escola ou trabalho, gente que se acostumou a te ver no transporte público, funcionários do restaurante habitual ou mesmo usuários de praças públicas são atentos a conjuntos de palavras e entonações que lhes interessam. Podem estar dormindo, mas se ouvirem por exemplo a combinação de “batata + câncer + médico + caro + tom agressivo”, não vão se importar se a conversa foi sobre um lanche com um médico canceriano comento batata em uma lanchonete cara, vão entender o que tiverem predisposição para entender e vão vincular a tua pessoa à informação falsa, que será disseminada. Vais culpar quem?



            O que podes fazer é acionar quem lhe trouxer prejuízos de qualquer natureza, seja para reparação, seja para indenização por uso não autorizado de seus dados e/ou imagem. Qualquer coisa além disso vai dar publicidade grátis para o autor do ilícito, que poderá lucrar assim muito mais do que o pleiteado pela parte lesada. E, por favor, abandone essa idéia estúrdia de “direito de esquecimento”. Isso não existe. Ninguém é realmente esquecido. Se não te encontrarem pelo nome, te encontrarão por contatos, por referências, até mesmo por uma investigação séria de quem estiver de facto interessado em usar teus dados em proveito próprio. Que foi? Vais apontar o dedo para o nariz de um traficante que tiver falsificado documentos usando teu nome? Tens peito para isso? Não, não tens. Fazer isso contra quem sabes que não vai te dar um tiro é muito diferente e MUITO mais cômodo, e atrai mais leitores igualmente neuróticos na internet.



            Mais do que isso, é totalmente contraproducente e até perigoso exigir que empresas e governos não coletem dados. Empresas e governos precisam saber do que precisamos para saberem o que oferecer, agir contra isso é pedir para não ter productos e serviços minimamente bons, ou até o exacto oposto do que deseja. Uma entidade realmente perversa vai dar de ombros para protestos, isso se algum rumor consistente conseguir sair do meio em que as decisões tiverem sido tomadas. Quem realmente quer fazer mal, não vai aparecer como mau diante do público, vai aparecer como poderoso invencível ou simplesmente vai manipular os próprios manifestantes para que ataquem outro alvo. É fácil, basta mandarem um único agente se enturmar, se inteirar da situação e desviar sutilmente as atenções para quem interessa aos mandantes. No caso de entidades, geralmente desviam as atenções para uma corporação famosa, quase sempre já alvo de teorias difamatórias; no caso de países, sempre ditaduras, te usam para acusar democracias de desrespeito às liberdades individuais. Simpatizantes de ditaduras em academias sediadas em democracias, não faltam.



            Da mesma forma os protestos contra a vigilância estatal por câmeras em lugares públicos NÃO EXISTEM onde essa vigilância realmente fere alguma liberdade individual. Vocês estão atormentando dirigentes de democracias e desviando seus focos de problemas reais. Nos países onde vocês podem protestar, é perfeitamente possível responsabilizar qualquer um por mau uso ou publicação indevida de seus dados; naqueles onde vocês sequer podem dizer que se lembram de um massacre de manifestantes que pediam por democracia, qualquer indignação é tão fútil quanto perigoso para sua pessoa. Há formas certas e erradas de lidar com a coleta não autorizada de dados, querer censurar até a memória das pessoas é o modo errado, porque não surte e nunca surtiu o efeito desejado, e ainda alimenta a sanha de simpatizantes de regimes totalitários, e eles vão usar tua indignação para te manipular para atacar democracias e engrossar suas fileiras. Eu já vi e ainda vejo isso acontecer, é tão mais fácil te cooptar quanto maior for tua tendência à prolixia e a acreditar que o Estado deve ser um pai, em vez de um servo.



            Seus dados serão coletados queiras ou não, e às vezes o próprio coletor não tem idéia do que tem no acervo até que coincidam a oportunidade com a consulta aos arquivos e os teus dados couberem no caso. Não adianta espernear e lacrar textão de mil e quinhentas páginas no facebook, isso só te distancia das fontes do problema, que podem estar quase todas dentro do teu subconsciente. Sim, teu problema pode ser totalmente psicológico e não político.



            Sim, há meios de reduzir a um mínimo a tua exposição aos coletores de dados, mas isso significaria viver como nos anos 1930, inclusive no vestuário e nos modos, bem como na quase ausência de tecnologias de comunicação. Eu sei por experiência que quase todos vocês eriçam pelos e têm taquicardias só de pensar nisso. Para quem tem horror a nunca mais abrir um aplicativo, há comportamentos que são paliativos e, dependendo do grau de consciência, até de dão algum controle sobre o que é ou não coletado. Leiam bem, eu escrevi “ALGUM”, não esperem mais do que isso.



            Comece pelo mantra “O que não é publicado não é compartilhado”. O que for realmente íntimo e importante, sequer deve ir para um dispositivo móvel. Imagens e textos em smartphones te colocam na armadilha da facilidade, da qual eu já me cansei de falar neste blog, o que é fácil é também tentador, compartilha-se algo quase inconscientemente, só porque numa olhada rápida pareceu que merecia ser compartilhado. E se saiu do teu dispositivo, meus pêsames, não é mais seu mesmo que seja seu. Evite bancar o moderno e jamais ponha photos íntimas em dispositivos com acesso a redes de comunicação, e por “íntimas” entendam-se inclusive imagens em que o potógrapho foi particularmente feliz e a tua pose tenha sido particularmente atraente; um pouco de edição e imagens e tua carinha fofa estará em sites de prostituição que, por sua própria natureza, são muito difíceis de rastrear. Na dúvida, nem ponha no computador, deixe guardado em dispositivos externos.



            Outro mantra é “seja mestre do que calas e escravo do que falas”, ou do que escreves. Falar na internet ou a um pesquisador é mais ou menos como gritar em praça pública, quem estiver por perto vai te escutar, mas não há garantias de que vai te ouvir. Como eu já disse, as pessoas vão compreender o que tiverem capacidade e tendência, não necessariamente o que tiveres dito, e não, nem a mensagem mais clara e didática é óbvia. Pode ser para quem já compreende a tua linha de raciocínio e assim tem capacidade de ligar os pontos mais obscuros de teu pensamento, mas à maioria as tuas intenções são um completo mistério, uma tela em branco pronta para receber as adições e dições mais loucas que a mente humana é capaz de criar; e acreditem, caros leitores, nem a imaginação mais fértil pode competir com a loucura. A ganância é um tipo não assumido de loucura.



            Mais um mantra: “Unidos somos mais fortes”. Não é clichê de filme dos anos 1950, é real. Mantenha sempre contacto com pessoas com interesses afins, quando precisar se precaver ou reclamar. Uma boa entidade dá ouvidos a um indivíduo e uma má entidade não dá importância, ou dá cabo, mas quando a tendência detectada é de um grupo relevante a boa entidade se apressa em servir e a má entidade se recolhe de medo. Aqueles filmes de heroísmo não mentem quando passam essa mensagem, é literal. Ou os protestos em Hong-Kong não seriam reprimidos e os da Praça Tiananmen não teriam produzido carne humana moída por tanques, assim como os protestos por direitos civis nos anos 1960 nos Estados Unidos jamais teriam surtido efeito nenhum. Lembre-se, a união inspira o respeito dos honestos e o medo dos perversos.



            O mantra “Tudo o que disser poderá ser usado contra você” é mais poderoso do que podem imaginar. Escolha o que e a quem dar retorno, por mais banal e curta que seja a mensagem. Eu já recebi retornos desagradáveis e até ameaçadores, na época em que eu era novato na internet (upon once a long time ago) e aprendi depressa essa lição. Só fale a quem te dê um mínimo de segurança de resposta respeitosa e ÚTIL; mensagens padronizadas e genéricas não são úteis, nem robôs idiotas de burrice artificial que não compreendem uma dicção que não seja perfeita e em um sotaque padronizado. Assegure-se de estar conversando com seres humanos. Não espere por isso, mas há históricos de clientes que foram recompensados, porque suas reclamações revelaram problemas que a engenharia não tinha percebido durante o desenvolvimento do producto.



            O mantra “A prática leva à perfeição” deve ser aplicado a tudo o que fizeres, mas principalmente ao que for feito em público, para evitar passar mensagens equivocadas ou mesmo detalhes que de modo algum podem passar a domínio público. Lembrem-se de que o indivíduo pode se esquecer, mas a coletividade JAMAIS SE ESQUECE. Então sejamos o mais claros, discretos e elegantes quanto possível, porque oficialmente não, mas na prática até a comunidade mais porralouca em códigos de postura e vestuário, e quem se portar de forma mais refinada em um grupo de broncos, por mínimos que sejam os gestos ou os detalhes da roupa, vai chamar uma atenção que pode não ser a desejada. Pratique tua escrita, teus modos e tua paciência em ler e reler criticamente antes de decidir responder; e se decidindo a responder, lembre-se de que nem sempre, na verdade quase nunca sabes que tipo de gente está do outro lado. Vais acabar descobrindo que duas ou três páginas dariam o recado que o conteúdo diluído no textão lacrador de mil páginas não conseguiu, ao menos não a quem era dirigido e não da forma desejada.



            O último mantra é “Guardou é seu, mostrou é nosso”, que vale desde que a vida na Terra teve início. É por isso que predadores rechaçam qualquer aproximação estranha quando estão comendo ou cuidando dos filhotes, isso não foi inventado pela humanidade. Guarde os discursos e as narrativas para quem gostar, porque aos que colherem os teus dados, nada disso terá efeito inibitório, na verdade podem até servir de sinalizador de que há mais coisas interessantes de onde saíram as coletadas. Não é no palco de gritos de grupos exaltados que as cosias são decididas e resolvidas, é nos sussurros quase inaudíveis dos bastidores que tudo realmente acontece. Os mesmos bastidores donde devem permanecer TUDO o que tu não queres que seja compartilhado. Faça um teste, digite teu nome entre aspas, como “Nanael Soubaim” no Google e vais se surpreender com a quantidade de dados públicos a teu respeito, e são coisas que simplesmente não tem como ser suprimidas porque o poder público é obrigado por lei a publicar.



            Ainda não conheço uma lei que proíba as pessoas de coletarem dados de terceiros, não especificamente o acto de coletar. E se a pessoa tiver acesso, nada além do próprio senso crítico a impede de fazer a coleta. Seguramente há coisas minhas em poder de quem jamais entrou em contato comigo, mas se eu for perder o sono por isso, antes de algo realmente acontecer, será um suicídio indirecto. Então temos três opções: nos tornarmos pessoas do pré-guerra e irmos morar na zona rural, virarmos gado para não nos destacarmos em absolutamente nada, ou apelar ao bom e velho bom senso para não nos levarmos a sério demais e não ficarmos neuróticos com o que não faz diferença.

11/10/2017

O Saci vai sim!

 
    - Saci!
    - Aí, Drácula!
    - Tudo em riba, meu irmão?
    - Só beleza! Me preparando pra viagem...

    Alguns longos segundos de espera pela próxima mensagem, incomodam o brasileiro. Drácula não é de fazer rodeios, algo está errado. O conde começa a digitar, desiste, retoma a digitação...

    - Então, Saci, é sobre isso que quero te falar... Estamos sendo processados...
    - Uai! Por quê?
    - Estão nos acusando de nos apropriarmos de você, da Mula sem Cabeça, da Iara, do Boitatá, enfim, de todo mundo dessas matas aí.
    - Que trolha é essa, conde? Explica isso direito.

    O romeno radicado em Los Angeles, manda a imagem bem nítida do documento, que o acusa e aos demais monstros setentrionais, de corromperem e se apropriarem da cultura das florestas. Saci lê, começa a anotar nomes, então começa...

    - Meu, vou falar o que penso a respeito, mas vai ser meio longo, então espera eu terminar tá.
    - Tá, pode começar.

    - Pra começar, eu não pertenço a ninguém @#*!!! alguma! Saci não é bibelô de faculdade, não tem dono! Você se lembra bem do que o Lambão fez com o último que tentou aprisionar ele! Sou um elemental, eu não tenho fronteiras, não tenho país, não tenho vínculo algum com nenhum lugar específico. Eu vou pra onde eu quiser, quando eu quiser e volto SE eu quiser. O facto de terem me incluído na cultura brasileira, não me prende ao Brasil. Minha aparência pros humanos é resultado do que eles mesmos plasmaram, saca?

    Então! Você ainda pode se considerar com um gentílico, nasceu e morreu na Transilvânia, mas eu sou um elemental, nasci numa outra dimensão. Eu não tenho gentílico. Será que esses palermas aí sabem o que é um elemental? Mas saber mesmo, bem além das classificações preconceituosas de quem vê tudo abaixo da cintura, como se a gente fosse só uma lenda para ser pregada na parede e jamais ser tocada por estrangeiros! A gente não é isso, a gente vive, e ser vivo não pode ser preso por causa de preconceitos de quem se diz combatente deles!

    Nenhum de nós conversa com eles! Sabe por quê? Porque eles são arrogantes. Debaixo daqueles discursos bonzinhos, eles não aceitam quem pensa diferente. Não aceitam nem que exista quem pense diferente! Por isso a gente evita esses caras e por isso eles não sabem que existimos... e a gente nem sente falta. Eles nem sabem das próprias existências! Eles se acham os salvadores da humanidade, da natureza, da cultura do diabo vestido de saia! Na prática não fazem @#**!!! nenhuma na vida, além de tagarelar e encher o saco! Nem tem graça sumir com as coisas deles, porque logo pedem outro de presente e ganham na hora, então nem pra isso servem! Pra lugar chato, saci não vai... quer dizer, vai pra trolar, rá, rá, rá, rá, rá, rá, rá, rá!

    Falam de invasão estadunidense (como se eles fossem chamados de republifederenses) como se vocês todos fossem americanos! Quem lê uma coluna de jornal, sabe que não! Eles não sabem de onde vem o halloween! Nem sabem pra que serve! Falam de união de culturas milenares, mas quando quem eles odeiam junta todas as tradições milenares numa única festa, vêm com ataque de frescura!

    Fica de boa aí, Drácula, é com a gente que estão contando pra unir os povos, porque os "politizados" querem mais é despedaçar os territórios dos países e isolar cada micro cultura em seu acre territorial. Confirma todo mundo da minha turma aí, a gente vai e ainda vai levar muita comida!

    - É muito bom ler isso de você, Pererê! Mas, e essa histeria, como estão lidando com isso?
    - Não sento em formigueiro, então o que vem de baixo não me atinge.
    - Rá, rá, rá, rá, rá, rá...
    - Eu não esquento com isso!
    - Eu não acredito que chamaram você de "Pequena lenda afrodescendente com limitação de mobilidade"!
    - Me chamaram de quê?
    - Ah, desculpe, isso está na outra página, esqueci de te mandar... Aqui...
    - "Parem de repetir a imagem de 'negrinho divertido' de nossa pequena lenda afrodescendente com limitação de mobilidade".... Isso me ofendeu... tô bravo! Não é porque eu apareço como um garoto perneta, que sou deficiente... Vou mostrar pra eles o que eu realmente sou, depois a gente conversa... Vai ter Halloween sim! E o deles vai ser antecipado!

    Coisas estranhas aconteceram no auditório da faculdade, naquela mesma tarde; depois no ambulatório, onde alguns foram parar.

31/05/2017

Animais pagam inteira


    Não faz muito tempo vi a frase "O ser humano é o único animal que paga para viver na Terra". Eu não sei de onde o autor tirou isso, mas esqueceu-se de que fora da civilização, não existem folgas, férias, auxílio doença, nem qualquer outro amparo que permite aos humanos, permanecer longos períodos sem sair de casa e ainda assim ter o que comer.

    Os animais não usam papel-moeda ou cartão de crédito, mas eles pagam sim para viver, e pagam caro! Dependendo do lugar no planeta em que estiverem, a lei da oferta e da procura é literalmente mortal. Embora muitas espécies possam estocar alimentos, isso não as exime de ter que procurar por ele todos os dias em que não estiverem hibernando. Aliás, mesmo as plantas são vítima desse, perdoem o trocadilho, capitalismo selvagem. Elas não podem se dar sequer o luxo de adormecerem, precisam sugar nutrientes do solo ininterruptamente, ou começam a morrer.

    Vejamos o exemplo das borboletas e das flores. Vocês têm idéia de o quanto é caro para uma planta produzir flores? Pensam que as produziria apenas por altruísmo, para dar néctar de graça para insetos e pequenas aves? Vamos repensar isso, porque flores são órgãos sexuais, elas usam o néctar para atrair quem possa levar seu pólen para outras flores, para isso se tornam o mais atraentes possível para as espécies que precisam atrair. É quase como prostituição, em troca da fecundação elas PAGAM os animais com alimento. Não tem valores mensurados envolvidos, mas é uma troca de bens por serviços. O dia em que um macaco não conseguir mais ir atrás de uma fruta ou um inseto, ele morre de fome.

    As plantas frutíferas então, investem ainda mais e distribuem ainda mais pagamentos, primeiro com a polinização, depois com a dispersão das sementes. A concentração de nutrientes é muito grande, a produção precisa compensar o investimento e atender às expectativas da clientela, ou ninguém mais volta lá, as frutas caem ao pé da árvore, brotam e concorrem com ela, atrapalhando em vez de ajudar a disseminação dos genes.

    Plantas que não podem oferecer algo aos insetos e pequenos animais, apelam para a armadilha. Elas cuidam de ser atraentes com o mínimo do escasso recurso de que dispõe, seduzem a vítima e a digerem viva. Cruel? Talvez, mas só nós humanos achamos que é. Para as outras espécies, é apenas parte do preço que alguém precisa pagar. Se o predador estiver plenamente satisfeito, então a morte do colega de bando terá valido à pena, por algum tempo. Aliás...

    Quando um animal vive em bandos, as chances de sobreviver crescem, porque há a possibilidade de, no mínimo, pegar as eventuais sobras da caça ou da busca por alimentos. Quanto mais próximo de uma sociedade humana for o comportamento de uma espécie, maiores as chances de sobrevida do indivíduo. Vejam os lobos, por exemplo. Eles ajudam os membros idosos da alcateia, sem o que eles seriam presas fáceis e estariam fadados a, cedo ou tarde, morrer de fome por não conseguirem mais caçar. Algo vagamente parecido com entidades de amparo aos idosos, como os asilos.

    Eles fazem isso confiando, inconscientemente, que receberão o mesmo tratamento quando também estiverem velhos, ensinando esse comportamento aos filhotes. Não preciso explicar o quanto espécies assim têm uma organização social complexa e hierarquizada, preciso? Todos têm suas funções, todos precisam trabalhar pelo bando, todos precisam prestar satisfações de suas falhas ao líder. Quando se trata de abelhas e vespas, o indivíduo sequer tem a chance de crescer na hierarquia.

    Quanto ao mito de que na vida selvagem tudo é todos e nada tem dono, é só um mito. Nenhum bicho tem escritura lavrada e comprovante de endereço para provar sua propriedade, mas eles as têm. O território de que um animal precisa para obter seu alimento, será defendido com violência ao menor sinal de invasão. Muitas espécies permitem que indivíduos não competidores entrem em seu território, seja porque eles simplesmente não farão diferença, seja porque servirão de alimento. Isso se estende a todas elas, mesmo entre os unicelulares há briga se alguém chegar perto demais.

    Não fosse assim, ninguém precisaria de acompanhamento armado e treinado para fazer turismo nas savanas. Se alguém que não for mais forte entrar inadvertidamente no território de um predador, e não será aceita a desculpa de não ter visto nenhuma cerca, o clima vai pesar. Haverá uma luta, uma fuga ou uma refeição; ou uma cópula. Não há meio termo, uma onça não vai pedir educadamente que se retire de seu território em meia hora, sob risco de processo judicial por invasão, ela vai partir para cima e te matar. Não existe perdão na natureza. O alimento até está lá, mas tens que encontrar, conseguir prendê-lo ou colhê-lo, encontrar um lugar seguro para se servir dele e ficar atento para os pequenos perigos que, apesar de incógnitos, estão lá.

    Os únicos animais que não precisam se preocupar em trabalhar incessantemente para sobreviver, são os nossos de estimação. Longe de nós, a morte é certa para quase todos eles, porque chegar à vida adulta é um prêmio, na vida selvagem. Só os nossos animais comem sem pagar, e olhe lá!

12/07/2016

Um Cowboy no escritório




Eu evito fazer comentários antes da conclusão de um caso, mas a crise de 2008 ainda traz reflexos, em especial no Velho Mundo. Também passo sem ler a maioria dos artigos acadêmicos inerentes, porque a despeito do que deveria ser, essa maioria é muito carregada de subjetividades disfarçadas de dados estatísticos e históricos; Interpretação, cada um tem a sua e a forma como bem entende. Comentaristas há muitos, fontes há poucas, as confiáveis então...

Em suma, preciso recorrer ao expediente de raciocinar por conta própria e cometer meus próprios erros. Como os europeus ainda são muito apegados aos seus nacionalismos, sempre culpando os outros países e, dentro destes, as outras regiões pelos problemas que enfrentam, precisei dar o braço a torcer e prestar mais atenção aos documentários americanos, que têm uma autocrítica que beira o doentio, em contraste com o ufanismo idem da sociedade mais bipolar do planeta.

  Em um deles, especificamente sobre a Nova Iorque pós-crise. A cidade vai muito bem, obrigado, mas isso a um custo bem alto. Mas é custo mesmo, no termo pecuniário. Apesar do estouro da bolha, os imóveis não param de encarecer. As pessoas estão sendo expulsas do centro e voltando aos subúrbios, de onde tinham saído nos anos 1990. Muita gente acabou se mudando de cidade mesmo, porque o m² está transformando New York em uma New Monaco. Vale ressaltar que a concorrência de indústrias em países que toleram bem a mão de obra escrava e de presos políticos, contribuiu muito para isso; Vocês sabem que países são esses.

O interessante foi ouvir os comentários de alguns dos desabrigados, que formaram espécies de favelas ao redor das metrópoles onde moravam, mas sem a presença do crime organizado, nisso o nível cultural e a pronta assistência de entidades e cidadãos fraternos foi de grande valia. Após mais de um ano vivendo em bosques abarrotados de barracas e motorhomes, alguns deles olham para suas antigas moradas e afirmam que não entendem como conseguiam viver lá, naquele inferno. Isso saído das mesmas pessoas que outrora amavam suas cidades.

Outro ponto muito interessante foi ver cidades pequenas que estão, categórica e escancaradamente, desprezando as grandes redes de supermercados, em favor de seus mercados locais, mesmo pagando preços mais altos por isso. Essas redes até se instalam em muitos lugarejos, mas fecham rapidamente não só por falta de demanda, mas também por falta de mão de obra. Repetindo: Por falta de mão de obra. Em plena crise, os americanos do interior escolheram não trabalhar para quem não lhes convém.

Em algumas cidades essas redes simplesmente não tiveram autorização para se instalar. Não é contraditório que nos Estados Unidos da América, especialmente no auge da crise, parcelas significativas da população tenham se recusado a aceitar uma oportunidade de amenizar o seu lado? Eu respondo: Não, não é contraditório. É preciso ter um conhecimento extremamente raso e tendencioso da sociedade americana, para acreditar nisso. Explico citando outro exemplo, o de algumas cidades pouco maiores do que alguns bairros metropolitanos, onde a tolerância e o respeito mútuo estão sendo fomentados em um nível de dar inveja ao discurso europeu.

Imaginem o que têm a ver um grupo de admiradores de armas com um clube de ecologistas, e uma reunião de senhoras que adoram fazer bolos e todo tipo de quitutes. Tempo... Pensaram? Eu respondo: Tudo. Esses três grupos, aparentemente dissonantes, estão dividindo cidades pequenas, onde todo mundo se conhece, e um ajudando no que falta aos outros. Não há hostilidades, ninguém aponta o dedo para o nariz do outro e os discursos são reservados às conversas internas dos grupos. Fora deles, com os bichos já soltos e o estresse aliviado, todo mundo convive como em uma sociedade civilizada. Isto é só um exemplo, há outros que agora estão brumosos em minha memória, mas as coisas são ainda mais interessantes.

Apesar da dívida pública e todo o catastrofismo que os noticiários alardeiam, essas regiões estão muito bem, bem até demais para quem era o alvo preferencial da crise, segundo os intelectuais de academias. Estes querem mais é que tudo desabe e a civilização se extinga!

O sucesso dessa capacidade de sobrevivência e progresso explica boa parte das crises. As pessoas têm buscado ter sucesso, antes de buscarem seus sonhos. O que aconteceu no país que se chama América é basicamente o que acontece no planeta inteiro, com algumas diferenças regionais. Estão colocando vaqueiros para trabalhar em escritórios fechados, e burocratas talentosos para buscar vidas alternativas e saudáveis no meio do mato; não é saudável para eles.

A base para essas escolhas equivocadas é muito bem aceita, tanto quanto escassa. Analisa-se um conjunto de características inatas e por ele se define onde o indivíduo teria mais sucesso. Um cowboy seria um bom executivo só porque é capaz de avançar no touro e derrubá-lo pelos chifres? Um administrador seria um bom fazendeiro só porque tem temperamento tranqüilo e sabe esperar o tempo certo de cada coisa? Acreditem, é basicamente isso que norteia a “felicidade pelo sucesso para depois buscar o sonho”. O exacto oposto do que construiu a parte boa da sociedade ocidental.

Aquelas pessoas lá do quarto parágrafo, muito provavelmente, são fazendeiros administrativos ou mesmo de lida, mas estavam se iludindo com as promessas de carreiras de sucesso para algum dia realizarem o sonho de viver em uma fazenda. Da mesma sorte o oposto, há muitas pessoas que gerenciariam grandes corporações com os pés nas costas, mas estão presas à ilusão de que longe do mato com um riacho por perto, morreriam intoxicadas.

Gente que vive onde e como gosta de viver, não arruma picuinha com o estilo de vida alheio, não repete bordões e frases prontas e agressivas, para se afirmar o tempo todo no que pensa que é. Quem é realmente feliz no litoral, não se desfaz do caipira que vive bem no meio do país, e vice-versa.

A questão é que as pessoas se esqueceram do que realmente são e algumas nem chegaram a saber, embarcaram na primeira canoa que parecia navegar bem. Não se trata de esperar ad eternum pelo sonho dourado, trata-se de trabalhar para realizar e viver esse sonho antes de a senilidade lhe tomar o corpo e o cérebro.

Em vez de mofar em uma linha de montagem para algum dia, na aposentadoria quem sabe, comprar uma casa no subúrbio e viver o que lhe resta longe da agitação da cidade grande, trabalhar premeditadamente para ter ainda forte e saudável o seu pedaço de terra, que com as técnicas modernas pode produzir mais do que uma grande fazenda de outrora, ainda mais com a capacidade de concentração que o trabalho na fábrica burila.

Em vez de contar preguiçosamente cada cabeça de gado, se imaginando chegar num Cadillac conversível à sede de sua empresa, estudar e trabalhar para abrir algum negócio no sertão mesmo, para ganhar experiência e se embasar para chutar traseiros de concorrentes picaretas, contando com a paciência e a atenção aos detalhes que a lida com o gado desenvolve.

Alguém vai ficar feliz por sua causa, alguém vai ficar triste por sua partida, alguém vai morder os cotovelos de inveja pela sua coragem. Não tem jeito, faz parte. O mercado financeiro e as armadilhas do clima não são os maiores riscos de quem empreende seu próprio sonho, é a reação das pessoas que te cercam o maior risco. Napoleão reclamava que era mais fácil lidar com o inimigo no campo de batalhas, do que com a ambição e soberba dos parentes. Aqui é a mesma coisa. Seguindo ou não, de modo competente e responsável o teu sonho, muita gente vai ficar triste e muita gente vai ficar feliz, a diferença está em qual grupo queres estar.

É este o pulo do gato de toda as crises graves e duradouras da economia, que desde o século XIX deixou de ser nacional e regional. A globalização, que muitos alienados que arrotam intelectualidade condenam, não é de hoje. Começou com a primeira viagem que levou artigos do oriente para a Europa. Não é o sistema que causa crises, o “deus sistema” não existe, é só uma convenção, uma espécie de larva astral burocrática que se alimenta do medo coletivo. Tu, preferindo o mais baratinho só porque é mais baratinho, ajuda a começar uma crise. Tu, pegando carona em uma onda de rendimentos fáceis, ajuda a começar uma crise. Tu, trabalhando duro e se capacitando para lucrar com o teu sonho, ajuda a atenuar uma crise.

Na verdade as pessoas nem deveriam correr atrás de um sonho, ele está lá na frente, mas não tem pernas para apostar corrida com uma larga dianteira de vantagem. O problema não é velocidade, é tempo. Tá, na física os dois são a mesma coisa, mas o tempo é o único aspecto que importa aqui. Não adianta, e isso os documentários deixaram claro na prática, se esbaforir e deixar de viver para realizar ontem, da mesma forma os atrasos não vão te dar anos de vida para tanto. É o teu tempo que importa.

É o que eu disse acima, o ritmo e o temperamento de cada um define onde, como e quando o teu modo de vida realmente começa, é ele o sonho, todo o resto é alegoria. Sair daquela metrópole infernal, rompendo com o status quo que tanto defendia, ir viver em uma cidade de cem mil habitantes no máximo, pode ser o que separa um indivíduo competente de sua realização profissional. Dá sim para se começar uma multinacional em uma cidade com poucas quadras, por que seria impossível?

O que esses anos de crise perseverante me mostraram, é que as pessoas esqueceram basicamente de um dos ingredientes básicos do sucesso da espécie humana, a mobilidade. Se apagaram à sua nacionalidade, à cultura local, à religião da família, ao banco preferido da pracinha da igreja e, em vez de transformar tudo isso em boas recordações e motivos para férias maravilhosas na cidade natal, transformaram em uma cadeia acolchoada, no pior sentido de “zona de conforto”. Afinal, ficando lá, a culpa de sua frustração e seus prantos é toda do condicionamento a que a sociedade impôs.

Meus queridos, não existe condicionamento que uns bons meses de psicoterapia intensiva não dissolva, nas mãos de um bom profissional. O resto é de favas contadas.

Houve nos anos 1950 uma corrida ao divã, mas por motivos equivocados, as pessoas queriam se adequar ao estilo de vida vigente em suas regiões, em vez de ajuda para encontrar seus próprios estilos de vida e saírem atrás dele. Seis décadas depois, o problema persiste. A mentalidade “libertária, inclusiva, progressista, tolerante” do século XXI só fez as pessoas se iludirem que as traquitanas de hoje tornam o mundo melhor, por isso voltaram ao divã para descobrir o que há de errado consigo, por não serem cem por cento felizes o tempo todo e sob qualquer circunstância.

Sabem aquela frase “Não pergunte o que o país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo país”? Pois uma pessoa amarga e frustrada não pode fazer absolutamente nada além de atrapalhar. O bom que vi nesses documentários, é que muita gente já compreendeu isso e começa a largar tudo o que não lhe serve para recomeçar do zero; ou quase, já que em uma civilização ninguém recomeça realmente do zero, graças a Deus. O ruim é que os noticiários mostram que, mesmo com tantos exemplos contundentes, as pessoas continuam se apegando a conceitos preestabelecidos e culpando o sistema, a família, o emprego, a escola, o papagaio com diarreia, o raio que o parta pela sua infelicidade. E é muita, mas muita gente se recusando a ver e aprender com exemplos bem sucedidos, a aprender com os erros e acertos de quem meteu a cara no mundo e hoje desfalca as estatísticas tristes de suicídio.

Quer um conselho? Não, não estou vendendo, mas aceito doações. Ponha em tua cabeça que tua realização não está nos ditames, está no teu nariz. Siga-o! Teu país vai ganhar um cidadão útil, productivo e basilar para se reerguer de qualquer crise. Vá para o campo, vaqueiro!

03/06/2016

A árvore que caiu



  Esther volta à sala de reuniões, após buscar a cesta com acepipes que preparou para a confraternização, com a ajuda dos filhos. Sarah precisa voltar à sala de aula com os colegas, mas sua participação já está concluída. A judia conversa com mães e pais de alunos, comenta que uma árvore da praça, já velha e doente, caiu durante a noite e ainda não foi removida pela prefeitura, combina de usarem as partes ainda boas daquela madeira forte para fazer uns móveis rústicos, talvez sirvam bem no posto de polícia do bairro...

- Como você sabe que a árvore caiu?

- Qual a dúvida, professora?

- Você viu a árvore cair?

- Não, nem eu, nem ninguém com quem eu tenha encontrado hoje – responde Esther já encarando a professorinha de nariz empinado.

- Então você não pode dizer que ela caiu, uma vez que sequer teria ouvido a queda. Não houve testemunhos, não há registros de câmeras, portanto a árvore pode ou não ter caído.

- Uma árvore não se deita suavemente ao chão para descansar.

Diz e se volta para a amiga Mirtes, com quem estava detalhando seus planos para a madeira que vai apodrecer na próxima chuva, cogita pedir ajuda do filho para desenhar as peças, mas a professora não desiste, não resiste em debater e polemizar...

- Um dos princípios do conhecimento é o testemunho, sem ele as conclusões ficam subordinadas à capacidade cognitiva, aos valores e às verdades de cada um, resultando em um juízo parcial e tendente à ideologia do indivíduo. Ainda que se testemunhe, se todos não testemunham a queda, como todos saberão se realmente aconteceu a queda da árvore? Ficam então todos reféns da verdade de um só? E as múltiplas verdades de uma sociedade plural?

Ela a olha de lado, sem muita vontade de continuar uma conversa que não lhe acrescenta e não lhe entretém, suspira e solta...

- Alguma vez você já quebrou a perna?

- Sim, mas o que isso tem a ver com a minha colocação? Nada a ver!

- Você quis que sua perna se curasse?

- Óbvio! Rá, rá, rá, rá, rá! Que pergunta estúpida!

- Ela se curou sozinha, só por você querer?

- Ah, como esses leigos são engraçados! Claro que não, eu recebi tratamento médico, só querer não emenda um osso.

- Então se você acordasse acreditando na cura, não poderia simplesmente pular da cama e quebrar o gesso.

- É sério isso? Ficou sem assunto e sem argumento para rebater minhas elucubrações? Normal, para quem não leu e não refletiu sobre a philosophia à luz dos grandes pensadores. Não, eu não poderia nem pisar com o pé imobilizado, independente do que eu acreditasse.

- Então só acreditar em algo não torna concreto o objecto da crença, assim como você não conseguiria atravessar aquela parede de cobogós apenas negando sua existência. Um cego se feriria se avançasse contra ela, apesar de não ter conhecimento dela.

- Mas se ele não se ferir, como vai saber dela?

- Aproximando-se com os cuidados que um cego experiente sempre tem em seus avanços. Um surdo que ignorasse a aproximação de um facínora, levando um tiro na nuca, faleceria mesmo que não fosse avisado visualmente do perigo. Se ele saberia ou não que faleceu, não faz diferença, não muda a natureza de um facto consumado.

- Agora sim, eu tenho certeza de que você não leu muito de philosophia. E pela beligerância de seus argumentos fracos, confirmou as informações de que é judia... Quanta violência, típica do Estado clandestino de Israel! Enrolou e não me convenceu de que sabe que a árvore caiu. Sabe? Hein? Prove que a árvore caiu.

Vira-se já de cenho franzido e encara aquela garotinha petulante, que aos poucos percebe que ela não se importa com o politicamente correcto só porque leva este rótulo. A judia ajeita a saia preta com amplos motivos parisienses, se aproxima com as mãos na cintura, ajustando a blusa azul teal à sua fina e disciplinada cintura...

- Até as 20h de ontem, aquela árvore estava de pé, todos aqui são testemunhas. Hoje, às 05h, quando fui à panificadora, ela estava ao calçamento da praça, com parte das raízes expostas e a terra correspondente revirada, sem qualquer sinal de ter sido forçada. Eu li sim, muitos livros de philosophia, e o fiz bem antes de a senhorita arrogante ter sujado a primeira fralda. Eu o fiz por livre e espontânea vontade, não por imposição e não sob a vigília de um professor retorizador e ideologicamente tendencioso, que se considera o dono da verdade e nada além disso incute nas cabeças dos alunos. Se eu não tivesse lido, não seria da sua conta, eu não lhe devo nem bom dia, quanto mais satisfações da minha vida. Você, mocinha crua, cuide de pentear teu topete antes que alguém o puxe e te derrube no chão duro. Você se considera um gênio, um baluarte do pensamento lógico, mas não foi capaz nem de abrir aquele pote de azeitonas, porque não se deu conta de que havia um lacre transparente, mas visível e perceptível ao tato, que a Mirtes precisou violar para você fazer seu lanchinho. Ela não tem o ensino médio, mas sem a ajuda dela, você ainda estaria comendo pão com salame puro, sem recheio. Da mesma forma, aquele seu carrinho horroroso de nome ridículo não vai trocar um pneu sozinho, em troca de seus discursos fúteis.

- Eh... Desculpe se de alguma forma pareci ter ofendido, quer sua pessoa, quer seus valores, o que for. Eu só intencionei levantar uma questão válida no contexto, visando à construção de um conhecimento pleno e democratizado para a comunidade...

- Você não tem que saber de tudo. Ninguém sabe sequer uma fagulha do sol que é o conhecimento catalogado, que não é nem uma fagulha do conhecimento disponível, que não é uma fagulha sequer do conhecimento de base que o sustenta. Eu não sei e francamente não me importam os motivos de você ter se embrenhado na selva dos caçadores da verdade, não enquanto mantiver sua sanha pseudointelectual longe de mim. Só saiba que fico aliviada de meus filhos não estarem mais ao seu alcance, a salvo da sua crônica falta de respeito pelos que pagam seu salário. Aprenda uma coisa desde já, garotinha, sua verborragia supérflua não vai assegurar seu sustento, assim como sua arrogância a quem lhe parece inofensivo, como lhe pareci de início, não vai amedrontar gente de pavio curto e nem proteger seu rostinho delicado de um murro. Eu li muitos livros de muitos pensadores, aprendi que a maioria deles não fez mais do que colocar em textos seus medos e suas fraquezas morais, que hoje são celebrados como um zênite do pensamento. E como aprendi isso? Com investigação. Eu não aceito e meus filhos aprenderam a não aceitar placidamente o que lhes for apresentado como certo, especialmente de quem tenta apresentar a nota fiscal de compra da razão. Isso sim é ser judeu, senhorita ignorante com diploma em preconceituosofia. Eu conheço as vidas de seus heróis e sei de cor os caminhos que cada um deles, alguns eram meros gigolôs misóginos e avessos ao trabalho, fez para chegar às conclusões apresentadas. Spoiler: Muito do que vocês chamam de “genial”, nada mais é do que resultado de algo próximo de um coma alcoólico. Conhece Sócrates? Claro, deve ter memorizado tudo o que dizem que ele teria dito. Ele não se debruçou em obras alheias para formar seus conceitos, nem se considerava um ser superior aos não letrados, pelo contrário, ele era um homem rústico e humilde, mas sem absolutamente nenhuma paciência justamente com discursos compulsivos de retoricômanos como você. Pare de prestar seus desserviços à philosophia, aprenda a ser humilde. Leia um pouco de Chico Xavier, por exemplo.

- Ra, ra, ra, ra, ra, ra... Ele não era judeu! Você não sabia disso?

- Não era judeu, eu sei. Sei que ele teve uma vida repleta de ensinamentos úteis, muitos deles exaltam precisamente a humildade legítima. Eu, que sou uma  boa judia, não tenho preconceitos de origem. Quem rechaça informações sem pedigree aqui é você, preconceituosa.

Vira-se, medita um pouco, entoa um mantra e volta aos outros. Reacende seu sorriso e convida a todos para o festim. Interpelada, diz apenas que os mortos estão enterrados. Fala da palestra sobre a kabbalah, que tanto lhe pediram.