Esther volta à sala de reuniões, após buscar
a cesta com acepipes que preparou para a confraternização, com a ajuda dos
filhos. Sarah precisa voltar à sala de aula com os colegas, mas sua
participação já está concluída. A judia conversa com mães e pais de alunos,
comenta que uma árvore da praça, já velha e doente, caiu durante a noite e
ainda não foi removida pela prefeitura, combina de usarem as partes ainda boas daquela
madeira forte para fazer uns móveis rústicos, talvez sirvam bem no posto de
polícia do bairro...
- Como você sabe que a
árvore caiu?
- Qual a dúvida, professora?
- Você viu a árvore cair?
- Não, nem eu, nem ninguém
com quem eu tenha encontrado hoje – responde Esther já encarando a
professorinha de nariz empinado.
- Então você não pode dizer
que ela caiu, uma vez que sequer teria ouvido a queda. Não houve testemunhos,
não há registros de câmeras, portanto a árvore pode ou não ter caído.
- Uma árvore não se deita
suavemente ao chão para descansar.
Diz e se volta para a amiga
Mirtes, com quem estava detalhando seus planos para a madeira que vai apodrecer
na próxima chuva, cogita pedir ajuda do filho para desenhar as peças, mas a
professora não desiste, não resiste em debater e polemizar...
- Um dos princípios do
conhecimento é o testemunho, sem ele as conclusões ficam subordinadas à
capacidade cognitiva, aos valores e às verdades de cada um, resultando em um
juízo parcial e tendente à ideologia do indivíduo. Ainda que se testemunhe, se
todos não testemunham a queda, como todos saberão se realmente aconteceu a
queda da árvore? Ficam então todos reféns da verdade de um só? E as múltiplas
verdades de uma sociedade plural?
Ela a olha de lado, sem
muita vontade de continuar uma conversa que não lhe acrescenta e não lhe
entretém, suspira e solta...
- Alguma vez você já quebrou
a perna?
- Sim, mas o que isso tem a
ver com a minha colocação? Nada a ver!
- Você quis que sua perna se
curasse?
- Óbvio! Rá, rá, rá, rá, rá!
Que pergunta estúpida!
- Ela se curou sozinha, só
por você querer?
- Ah, como esses leigos são
engraçados! Claro que não, eu recebi tratamento médico, só querer não emenda um
osso.
- Então se você acordasse
acreditando na cura, não poderia simplesmente pular da cama e quebrar o gesso.
- É sério isso? Ficou sem
assunto e sem argumento para rebater minhas elucubrações? Normal, para quem não
leu e não refletiu sobre a philosophia à luz dos grandes pensadores. Não, eu
não poderia nem pisar com o pé imobilizado, independente do que eu acreditasse.
- Então só acreditar em algo
não torna concreto o objecto da crença, assim como você não conseguiria atravessar
aquela parede de cobogós apenas negando sua existência. Um cego se feriria se
avançasse contra ela, apesar de não ter conhecimento dela.
- Mas se ele não se ferir,
como vai saber dela?
- Aproximando-se com os
cuidados que um cego experiente sempre tem em seus avanços. Um surdo que ignorasse
a aproximação de um facínora, levando um tiro na nuca, faleceria mesmo que não
fosse avisado visualmente do perigo. Se ele saberia ou não que faleceu, não faz
diferença, não muda a natureza de um facto consumado.
- Agora sim, eu tenho
certeza de que você não leu muito de philosophia. E pela beligerância de seus
argumentos fracos, confirmou as informações de que é judia... Quanta violência,
típica do Estado clandestino de Israel! Enrolou e não me convenceu de que sabe
que a árvore caiu. Sabe? Hein? Prove que a árvore caiu.
Vira-se já de cenho franzido
e encara aquela garotinha petulante, que aos poucos percebe que ela não se
importa com o politicamente correcto só porque leva este rótulo. A judia ajeita
a saia preta com amplos motivos parisienses, se aproxima com as mãos na cintura,
ajustando a blusa azul teal à sua fina e disciplinada cintura...
- Até as 20h de ontem,
aquela árvore estava de pé, todos aqui são testemunhas. Hoje, às 05h, quando
fui à panificadora, ela estava ao calçamento da praça, com parte das raízes
expostas e a terra correspondente revirada, sem qualquer sinal de ter sido
forçada. Eu li sim, muitos livros de philosophia, e o fiz bem antes de a
senhorita arrogante ter sujado a primeira fralda. Eu o fiz por livre e
espontânea vontade, não por imposição e não sob a vigília de um professor retorizador
e ideologicamente tendencioso, que se considera o dono da verdade e nada além
disso incute nas cabeças dos alunos. Se eu não tivesse lido, não seria da sua
conta, eu não lhe devo nem bom dia, quanto mais satisfações da minha vida.
Você, mocinha crua, cuide de pentear teu topete antes que alguém o puxe e te
derrube no chão duro. Você se considera um gênio, um baluarte do pensamento
lógico, mas não foi capaz nem de abrir aquele pote de azeitonas, porque não se
deu conta de que havia um lacre transparente, mas visível e perceptível ao tato,
que a Mirtes precisou violar para você fazer seu lanchinho. Ela não tem o
ensino médio, mas sem a ajuda dela, você ainda estaria comendo pão com salame
puro, sem recheio. Da mesma forma, aquele seu carrinho horroroso de nome
ridículo não vai trocar um pneu sozinho, em troca de seus discursos fúteis.
- Eh... Desculpe se de
alguma forma pareci ter ofendido, quer sua pessoa, quer seus valores, o que
for. Eu só intencionei levantar uma questão válida no contexto, visando à
construção de um conhecimento pleno e democratizado para a comunidade...
- Você não tem que saber de
tudo. Ninguém sabe sequer uma fagulha do sol que é o conhecimento catalogado,
que não é nem uma fagulha do conhecimento disponível, que não é uma fagulha
sequer do conhecimento de base que o sustenta. Eu não sei e francamente não me
importam os motivos de você ter se embrenhado na selva dos caçadores da verdade,
não enquanto mantiver sua sanha pseudointelectual longe de mim. Só saiba que
fico aliviada de meus filhos não estarem mais ao seu alcance, a salvo da sua
crônica falta de respeito pelos que pagam seu salário. Aprenda uma coisa
desde já, garotinha, sua verborragia supérflua não vai assegurar seu sustento,
assim como sua arrogância a quem lhe parece inofensivo, como lhe pareci de
início, não vai amedrontar gente de pavio curto e nem proteger seu rostinho
delicado de um murro. Eu li muitos livros de muitos pensadores, aprendi que a
maioria deles não fez mais do que colocar em textos seus medos e suas fraquezas
morais, que hoje são celebrados como um zênite do pensamento. E como aprendi
isso? Com investigação. Eu não aceito e meus filhos aprenderam a não aceitar
placidamente o que lhes for apresentado como certo, especialmente de quem tenta
apresentar a nota fiscal de compra da razão. Isso sim é ser judeu, senhorita
ignorante com diploma em preconceituosofia. Eu conheço as vidas de seus heróis
e sei de cor os caminhos que cada um deles, alguns eram meros gigolôs misóginos
e avessos ao trabalho, fez para chegar às conclusões apresentadas. Spoiler:
Muito do que vocês chamam de “genial”, nada mais é do que resultado de algo
próximo de um coma alcoólico. Conhece Sócrates? Claro, deve ter memorizado tudo
o que dizem que ele teria dito. Ele não se debruçou em obras alheias para
formar seus conceitos, nem se considerava um ser superior aos não letrados, pelo
contrário, ele era um homem rústico e humilde, mas sem absolutamente nenhuma paciência
justamente com discursos compulsivos de retoricômanos como você. Pare de
prestar seus desserviços à philosophia, aprenda a ser humilde. Leia um pouco de
Chico Xavier, por exemplo.
- Ra, ra, ra, ra, ra, ra...
Ele não era judeu! Você não sabia disso?
- Não era judeu, eu sei. Sei
que ele teve uma vida repleta de ensinamentos úteis, muitos deles exaltam
precisamente a humildade legítima. Eu, que sou uma boa judia, não tenho preconceitos de origem.
Quem rechaça informações sem pedigree aqui é você, preconceituosa.
Vira-se, medita um pouco,
entoa um mantra e volta aos outros. Reacende seu sorriso e convida a todos para
o festim. Interpelada, diz apenas que os mortos estão enterrados. Fala da
palestra sobre a kabbalah, que tanto lhe pediram.
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