03/06/2016

A árvore que caiu



  Esther volta à sala de reuniões, após buscar a cesta com acepipes que preparou para a confraternização, com a ajuda dos filhos. Sarah precisa voltar à sala de aula com os colegas, mas sua participação já está concluída. A judia conversa com mães e pais de alunos, comenta que uma árvore da praça, já velha e doente, caiu durante a noite e ainda não foi removida pela prefeitura, combina de usarem as partes ainda boas daquela madeira forte para fazer uns móveis rústicos, talvez sirvam bem no posto de polícia do bairro...

- Como você sabe que a árvore caiu?

- Qual a dúvida, professora?

- Você viu a árvore cair?

- Não, nem eu, nem ninguém com quem eu tenha encontrado hoje – responde Esther já encarando a professorinha de nariz empinado.

- Então você não pode dizer que ela caiu, uma vez que sequer teria ouvido a queda. Não houve testemunhos, não há registros de câmeras, portanto a árvore pode ou não ter caído.

- Uma árvore não se deita suavemente ao chão para descansar.

Diz e se volta para a amiga Mirtes, com quem estava detalhando seus planos para a madeira que vai apodrecer na próxima chuva, cogita pedir ajuda do filho para desenhar as peças, mas a professora não desiste, não resiste em debater e polemizar...

- Um dos princípios do conhecimento é o testemunho, sem ele as conclusões ficam subordinadas à capacidade cognitiva, aos valores e às verdades de cada um, resultando em um juízo parcial e tendente à ideologia do indivíduo. Ainda que se testemunhe, se todos não testemunham a queda, como todos saberão se realmente aconteceu a queda da árvore? Ficam então todos reféns da verdade de um só? E as múltiplas verdades de uma sociedade plural?

Ela a olha de lado, sem muita vontade de continuar uma conversa que não lhe acrescenta e não lhe entretém, suspira e solta...

- Alguma vez você já quebrou a perna?

- Sim, mas o que isso tem a ver com a minha colocação? Nada a ver!

- Você quis que sua perna se curasse?

- Óbvio! Rá, rá, rá, rá, rá! Que pergunta estúpida!

- Ela se curou sozinha, só por você querer?

- Ah, como esses leigos são engraçados! Claro que não, eu recebi tratamento médico, só querer não emenda um osso.

- Então se você acordasse acreditando na cura, não poderia simplesmente pular da cama e quebrar o gesso.

- É sério isso? Ficou sem assunto e sem argumento para rebater minhas elucubrações? Normal, para quem não leu e não refletiu sobre a philosophia à luz dos grandes pensadores. Não, eu não poderia nem pisar com o pé imobilizado, independente do que eu acreditasse.

- Então só acreditar em algo não torna concreto o objecto da crença, assim como você não conseguiria atravessar aquela parede de cobogós apenas negando sua existência. Um cego se feriria se avançasse contra ela, apesar de não ter conhecimento dela.

- Mas se ele não se ferir, como vai saber dela?

- Aproximando-se com os cuidados que um cego experiente sempre tem em seus avanços. Um surdo que ignorasse a aproximação de um facínora, levando um tiro na nuca, faleceria mesmo que não fosse avisado visualmente do perigo. Se ele saberia ou não que faleceu, não faz diferença, não muda a natureza de um facto consumado.

- Agora sim, eu tenho certeza de que você não leu muito de philosophia. E pela beligerância de seus argumentos fracos, confirmou as informações de que é judia... Quanta violência, típica do Estado clandestino de Israel! Enrolou e não me convenceu de que sabe que a árvore caiu. Sabe? Hein? Prove que a árvore caiu.

Vira-se já de cenho franzido e encara aquela garotinha petulante, que aos poucos percebe que ela não se importa com o politicamente correcto só porque leva este rótulo. A judia ajeita a saia preta com amplos motivos parisienses, se aproxima com as mãos na cintura, ajustando a blusa azul teal à sua fina e disciplinada cintura...

- Até as 20h de ontem, aquela árvore estava de pé, todos aqui são testemunhas. Hoje, às 05h, quando fui à panificadora, ela estava ao calçamento da praça, com parte das raízes expostas e a terra correspondente revirada, sem qualquer sinal de ter sido forçada. Eu li sim, muitos livros de philosophia, e o fiz bem antes de a senhorita arrogante ter sujado a primeira fralda. Eu o fiz por livre e espontânea vontade, não por imposição e não sob a vigília de um professor retorizador e ideologicamente tendencioso, que se considera o dono da verdade e nada além disso incute nas cabeças dos alunos. Se eu não tivesse lido, não seria da sua conta, eu não lhe devo nem bom dia, quanto mais satisfações da minha vida. Você, mocinha crua, cuide de pentear teu topete antes que alguém o puxe e te derrube no chão duro. Você se considera um gênio, um baluarte do pensamento lógico, mas não foi capaz nem de abrir aquele pote de azeitonas, porque não se deu conta de que havia um lacre transparente, mas visível e perceptível ao tato, que a Mirtes precisou violar para você fazer seu lanchinho. Ela não tem o ensino médio, mas sem a ajuda dela, você ainda estaria comendo pão com salame puro, sem recheio. Da mesma forma, aquele seu carrinho horroroso de nome ridículo não vai trocar um pneu sozinho, em troca de seus discursos fúteis.

- Eh... Desculpe se de alguma forma pareci ter ofendido, quer sua pessoa, quer seus valores, o que for. Eu só intencionei levantar uma questão válida no contexto, visando à construção de um conhecimento pleno e democratizado para a comunidade...

- Você não tem que saber de tudo. Ninguém sabe sequer uma fagulha do sol que é o conhecimento catalogado, que não é nem uma fagulha do conhecimento disponível, que não é uma fagulha sequer do conhecimento de base que o sustenta. Eu não sei e francamente não me importam os motivos de você ter se embrenhado na selva dos caçadores da verdade, não enquanto mantiver sua sanha pseudointelectual longe de mim. Só saiba que fico aliviada de meus filhos não estarem mais ao seu alcance, a salvo da sua crônica falta de respeito pelos que pagam seu salário. Aprenda uma coisa desde já, garotinha, sua verborragia supérflua não vai assegurar seu sustento, assim como sua arrogância a quem lhe parece inofensivo, como lhe pareci de início, não vai amedrontar gente de pavio curto e nem proteger seu rostinho delicado de um murro. Eu li muitos livros de muitos pensadores, aprendi que a maioria deles não fez mais do que colocar em textos seus medos e suas fraquezas morais, que hoje são celebrados como um zênite do pensamento. E como aprendi isso? Com investigação. Eu não aceito e meus filhos aprenderam a não aceitar placidamente o que lhes for apresentado como certo, especialmente de quem tenta apresentar a nota fiscal de compra da razão. Isso sim é ser judeu, senhorita ignorante com diploma em preconceituosofia. Eu conheço as vidas de seus heróis e sei de cor os caminhos que cada um deles, alguns eram meros gigolôs misóginos e avessos ao trabalho, fez para chegar às conclusões apresentadas. Spoiler: Muito do que vocês chamam de “genial”, nada mais é do que resultado de algo próximo de um coma alcoólico. Conhece Sócrates? Claro, deve ter memorizado tudo o que dizem que ele teria dito. Ele não se debruçou em obras alheias para formar seus conceitos, nem se considerava um ser superior aos não letrados, pelo contrário, ele era um homem rústico e humilde, mas sem absolutamente nenhuma paciência justamente com discursos compulsivos de retoricômanos como você. Pare de prestar seus desserviços à philosophia, aprenda a ser humilde. Leia um pouco de Chico Xavier, por exemplo.

- Ra, ra, ra, ra, ra, ra... Ele não era judeu! Você não sabia disso?

- Não era judeu, eu sei. Sei que ele teve uma vida repleta de ensinamentos úteis, muitos deles exaltam precisamente a humildade legítima. Eu, que sou uma  boa judia, não tenho preconceitos de origem. Quem rechaça informações sem pedigree aqui é você, preconceituosa.

Vira-se, medita um pouco, entoa um mantra e volta aos outros. Reacende seu sorriso e convida a todos para o festim. Interpelada, diz apenas que os mortos estão enterrados. Fala da palestra sobre a kabbalah, que tanto lhe pediram.

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