16/06/2016

A invasão espacial



 

Anne Francis as Altaira Morbius in Forbidden Planet
A espiã entra respeitosamente na sala do trono, mas sem ritos. Vai directo ao rei e se põe diante dele, aguardando que conclua o atendimento a outros súditos. Ele percebe seus pensamentos preocupados, vira levemente o rosto para saber que já notou sua presença e logo a atenderá. Sabe que o assunto é grave, então dispensa protocolos e acelera a audiência. Finalmente...


- Ahboo, Koish, minha enviada ao mundo primitivo!


- Ahboo, Thaan, amado unificador de nosso sistema planetário! Trago mensagens do planeta Terra.

- “Terra”? É de um idioma único ou...


- São milhares de idiomas e dialetos, majestade, este é o português da região emersa de onde voltei, tendo concluído meu trabalho.


- Milhares? Isso será um problema! Bem, depois veremos isso, diga o que me traz.

- Transferi os dados sensoriais e cognitivos aos nossos computadores, para vossa majestade apreciar, mas urge que saiba o que vai vivenciar virtualmente. Primeiramente, não precisamos correr nenhum risco com uma invasão, só de um pouco de paciência e esperar, eles tendem a se destruir uns aos outros, sem interferências externas. Os humanos, como chamam a si mesmos, retalharam o planeta em quase duas centenas de áreas que chamam de países, estes em outras menores que chamam de Estados ou províncias, de acordo com a convenção local. O que poderia parecer uma técnica de organização espacial, é na verdade um modo de manter gente de fora, de outros países, do lado de fora.


- Um momento... O que seria gente de fora? Não há outra raça extra planetária por aqui, além de nós!


- Mas é como eles tratam pessoas de outros países. Muitos desses países ficaram isolados dos demais por períodos consideráveis de tempo, levando em conta que os humanos têm ciclos muito curtos de vida biológica. Os mais longevos mal completam um De! Lembrando que o príncipe Nh é um bebê de De... Mas neste curtíssimo período, eles são capazes de fazer grandes estragos. Eles têm o hábito de responsabilizar os outros pelo mal que eles fazem, bem como tentar desqualificar a vítima de um crime pelo seu infortúnio.


- Pelas mil vidas de Karrh’Ov! Então eles não só morrem com idade de bebês, como morrem com a mentalidade de um! Vai ser difícil você me surpreender agora!


- Mas surpreenderei. A causa da intensa poluição gasosa que detectaram é tão risível quanto estúpida. Eles simplesmente jogam fora o extrato coadjuvante de uma produção.


O rei, conselheiros e até a guarda arregalam incrédulos os olhos. É como se os soldados rasgassem o pagamento por seus serviços e jogassem os trapos nas vias públicas. Koish continua...


- Muitas vezes tive vontade de interferir, por piedade, mas as ordens foram expressas e claras, só forneci ajudas pontuais a indivíduos, em momentos críticos, depois me retirei. Nos sete mil anos, cerca de setenta De, eu acompanhei de perto em virtualmente todas as regiões do planeta, a evolução lenta e sempre precária de sua tecnologia. A evolução social é ainda pior, advirto. Pelos meus cálculos, eles desperdiçam quase 99% de tudo o que produzem, sem contar a produção secundária que o aproveitamento dos insumos desperdiçados geraria. Eles simplesmente não sabem o que fazer com o resultado de suas actividades. Estou falando só de artigos de uso directo, no que incluo alimentação e tratamento de saúde.

- Como essa raça conseguiu sobreviver?


- Pela graça de Karrh’Ov, não por suas faculdades. Aliás, essa separação fronteiriça gerou inúmeros deuses, e eles matam outros humanos por esses deuses. Alegam ser Karrh’Ov com muitos nomes em muitos idiomas, mas seria até ofensivo levar isso a sério. Ainda no tema de desperdício, eles têm pessoas que se rotulam como “activistas”, que pregam como solução para a poluição, a extinção da actividade produtiva de grande escala.


- Estou perplexo! Há algo de extraordinário nesses rejeitos que os torna imunes a reagentes para neutralização e reuso?


- Eu soltei uma idéia de canalizar a exaustão dos reatores para recolher e reaproveitar essa fortuna incalculável. Riram das caras de quem simpatizou, tanto os contra como os a favor dos reatores. Algumas vezes foram até agressivos. Existe uma programação cerebral que faz muitos deles acreditarem que são, individualmente ou em grupo, dignos de privilégios sobre todos os outros, muitas vezes camuflam com discursos de amor e fraternidade, mas a prática desmente. Chamam de religião, ideologia, cultura, entre outros nomes, mas no fundo são a mesma coisa. O mote é “o meu lado está certo, o seu está errado”. A simples existência de quem se comporte diferente, já é motivo para medo e retaliação. Enquanto são crianças em tenra idade, isso praticamente não existe, mas depois dos seis anos de idade, um tempo que nem nos faz diferença, recebem programação intensiva para terem medo de serem diferentes do que prega o grupo.


- Já vi muitas civilizações se extinguirem por muito menos. Tudo o que me disse é realmente grave, Koish! Há mais?


- Seria conversa para uma estação inteira, majestade, por isso produzi arquivos para sua apreciação. Nos últimos dois De eles tiveram uma aceleração dramática na evolução tecnológica, aprenderam primeiro a transformar calor em movimento, hoje já engatinham na manipulação do movimento electrônico por materiais condutores e semicondutores. Ainda assim persiste o vício programado de procurar culpados antes de procurar soluções. Eles têm muito medo de serem felizes, tanto quanto de os outros serem felizes sem dependerem de sua felicidade. Novamente fazem uso de discursos oriundos de sua programação para justificarem e darem glamour a tudo o que fazem.


- Começo a acreditar que essa invasão será mais um acto de misericórdia do que uma colonização. Certo, você conseguiu me assustar como nenhuma guerra o fez. Vamos à parte boa. Tem que haver uma parte boa, ou eles já teriam morrido todos!


A expressão da agente muda completamente. Ela fala da riqueza cultural extraordinária, mas igualmente subutilizada, que aquele planeta produz sem nem se dar conta. Fala dos automóveis, do cinema, dos shows musicais que chegam a atrair centenas de milhares de indivíduos, enquanto cantores de sua raça ficam felizes quando têm cem ouvintes. O modo como a indústria se vale desses artistas e se associa às suas obras, a indústria da publicidade com seus dois gumes, a literatura, o uso recreativo de tecnologias de ponta e a naturalidade com que eles se acostumam a usá-las. Neste ponto, afirma, os humanos estão muito a frente de todas as civilizações que já conheceu...


- Inclusive a nossa? Somos referência de produção cultural na galáxia!


- Neste ponto, majestade, somos infantis perto deles. Verá que é uma parte maravilhosa desses seres, em contraste com as trevas que dominam outras áreas. O que decidiu? Nos mostramos e oferecemos ajuda?


- Causaria uma histeria e suicídios em massa. Nem pensar! Vamos nos infiltrar, quero que você oriente nossos agentes e cuide para que cruzem com os nativos, para gerarmos híbridos e com o tempo trazer gente simpática à nossa presença. Deixe os recalcitrantes se matarem, mas os que erram por medo de errar devem ser cooptados. Eu te nomeio governadora da Terra e te dou carta branca para agir como achar necessário. Organize um exército, faça o planejamento com cuidado e execute os planos, aplique e compartilhe o conhecimento que acumulou, quero que todos os nossos estejam aptos a ajudar essa raça idiota. Quando estiverem prontos, desligaremos os genes que aceleram tanto o envelhecimento. Agora vamos aos arquivos que trouxe.


- Poderíamos fazer um documentário, uma simulação artística com abordagem científica, para os nossos aprenderem bem sobre os humanos.


Ele acata a sugestão. Por agora quer absorver os sete milênios de trabalho árduo de sua governadora.

2 comentários:

Xracer disse...

Muito interessante e nos leva a refletir sobre todas as características de nossa civilização, parabéns !!!

Nanael Soubaim disse...

Bom ver que alguém compreende o que escrevo 8-)