A espiã entra
respeitosamente na sala do trono, mas sem ritos. Vai directo ao rei e se põe
diante dele, aguardando que conclua o atendimento a outros súditos. Ele percebe
seus pensamentos preocupados, vira levemente o rosto para saber que já notou
sua presença e logo a atenderá. Sabe que o assunto é grave, então dispensa
protocolos e acelera a audiência. Finalmente...
- Ahboo, Koish, minha
enviada ao mundo primitivo!
- Ahboo, Thaan, amado
unificador de nosso sistema planetário! Trago mensagens do planeta Terra.
- “Terra”? É de um idioma
único ou...
- São milhares de idiomas e
dialetos, majestade, este é o português da região emersa de onde voltei, tendo
concluído meu trabalho.
- Milhares? Isso será um
problema! Bem, depois veremos isso, diga o que me traz.
- Transferi os dados
sensoriais e cognitivos aos nossos computadores, para vossa majestade apreciar,
mas urge que saiba o que vai vivenciar virtualmente. Primeiramente, não
precisamos correr nenhum risco com uma invasão, só de um pouco de paciência e
esperar, eles tendem a se destruir uns aos outros, sem interferências externas.
Os humanos, como chamam a si mesmos, retalharam o planeta em quase duas
centenas de áreas que chamam de países, estes em outras menores que chamam de
Estados ou províncias, de acordo com a convenção local. O que poderia parecer
uma técnica de organização espacial, é na verdade um modo de manter gente de
fora, de outros países, do lado de fora.
- Um momento... O que seria
gente de fora? Não há outra raça extra planetária por aqui, além de nós!
- Mas é como eles tratam
pessoas de outros países. Muitos desses países ficaram isolados dos demais por
períodos consideráveis de tempo, levando em conta que os humanos têm ciclos muito
curtos de vida biológica. Os mais longevos mal completam um De! Lembrando que o
príncipe Nh é um bebê de De... Mas neste curtíssimo período, eles são
capazes de fazer grandes estragos. Eles têm o hábito de responsabilizar os
outros pelo mal que eles fazem, bem como tentar desqualificar a vítima de um
crime pelo seu infortúnio.
- Pelas mil vidas de Karrh’Ov!
Então eles não só morrem com idade de bebês, como morrem com a mentalidade de
um! Vai ser difícil você me surpreender agora!
- Mas surpreenderei. A causa
da intensa poluição gasosa que detectaram é tão risível quanto estúpida. Eles
simplesmente jogam fora o extrato coadjuvante de uma produção.
O rei, conselheiros e até a
guarda arregalam incrédulos os olhos. É como se os soldados rasgassem o
pagamento por seus serviços e jogassem os trapos nas vias públicas. Koish
continua...
- Muitas vezes tive vontade
de interferir, por piedade, mas as ordens foram expressas e claras, só forneci
ajudas pontuais a indivíduos, em momentos críticos, depois me retirei. Nos sete
mil anos, cerca de setenta De, eu acompanhei de perto em virtualmente todas as
regiões do planeta, a evolução lenta e sempre precária de sua tecnologia. A
evolução social é ainda pior, advirto. Pelos meus cálculos, eles desperdiçam quase
99% de tudo o que produzem, sem contar a produção secundária que o
aproveitamento dos insumos desperdiçados geraria. Eles simplesmente não sabem o
que fazer com o resultado de suas actividades. Estou falando só de artigos de
uso directo, no que incluo alimentação e tratamento de saúde.
- Como essa raça conseguiu
sobreviver?
- Pela graça de Karrh’Ov,
não por suas faculdades. Aliás, essa separação fronteiriça gerou inúmeros
deuses, e eles matam outros humanos por esses deuses. Alegam ser Karrh’Ov com
muitos nomes em muitos idiomas, mas seria até ofensivo levar isso a sério.
Ainda no tema de desperdício, eles têm pessoas que se rotulam como “activistas”,
que pregam como solução para a poluição, a extinção da actividade produtiva de
grande escala.
- Estou perplexo! Há algo de
extraordinário nesses rejeitos que os torna imunes a reagentes para
neutralização e reuso?
- Eu soltei uma idéia de
canalizar a exaustão dos reatores para recolher e reaproveitar essa fortuna
incalculável. Riram das caras de quem simpatizou, tanto os contra como os a
favor dos reatores. Algumas vezes foram até agressivos. Existe uma programação
cerebral que faz muitos deles acreditarem que são, individualmente ou em grupo,
dignos de privilégios sobre todos os outros, muitas vezes camuflam com
discursos de amor e fraternidade, mas a prática desmente. Chamam de religião,
ideologia, cultura, entre outros nomes, mas no fundo são a mesma coisa. O mote
é “o meu lado está certo, o seu está errado”. A simples existência de quem se
comporte diferente, já é motivo para medo e retaliação. Enquanto são crianças
em tenra idade, isso praticamente não existe, mas depois dos seis anos de
idade, um tempo que nem nos faz diferença, recebem programação intensiva para
terem medo de serem diferentes do que prega o grupo.
- Já vi muitas civilizações
se extinguirem por muito menos. Tudo o que me disse é realmente grave, Koish!
Há mais?
- Seria conversa para uma
estação inteira, majestade, por isso produzi arquivos para sua apreciação. Nos
últimos dois De eles tiveram uma aceleração dramática na evolução tecnológica,
aprenderam primeiro a transformar calor em movimento, hoje já engatinham na
manipulação do movimento electrônico por materiais condutores e semicondutores.
Ainda assim persiste o vício programado de procurar culpados antes de procurar
soluções. Eles têm muito medo de serem felizes, tanto quanto de os outros serem
felizes sem dependerem de sua felicidade. Novamente fazem uso de discursos
oriundos de sua programação para justificarem e darem glamour a tudo o que
fazem.
- Começo a acreditar que
essa invasão será mais um acto de misericórdia do que uma colonização. Certo,
você conseguiu me assustar como nenhuma guerra o fez. Vamos à parte boa. Tem
que haver uma parte boa, ou eles já teriam morrido todos!
A expressão da agente muda
completamente. Ela fala da riqueza cultural extraordinária, mas igualmente subutilizada,
que aquele planeta produz sem nem se dar conta. Fala dos automóveis, do cinema,
dos shows musicais que chegam a atrair centenas de milhares de indivíduos,
enquanto cantores de sua raça ficam felizes quando têm cem ouvintes. O modo
como a indústria se vale desses artistas e se associa às suas obras, a
indústria da publicidade com seus dois gumes, a literatura, o uso recreativo de
tecnologias de ponta e a naturalidade com que eles se acostumam a usá-las.
Neste ponto, afirma, os humanos estão muito a frente de todas as civilizações
que já conheceu...
- Inclusive a nossa? Somos referência de produção cultural na galáxia!
- Neste ponto, majestade,
somos infantis perto deles. Verá que é uma parte maravilhosa desses seres, em
contraste com as trevas que dominam outras áreas. O que decidiu? Nos mostramos
e oferecemos ajuda?
- Causaria uma histeria e
suicídios em massa. Nem pensar! Vamos nos infiltrar, quero que você oriente
nossos agentes e cuide para que cruzem com os nativos, para gerarmos híbridos e
com o tempo trazer gente simpática à nossa presença. Deixe os recalcitrantes se
matarem, mas os que erram por medo de errar devem ser cooptados. Eu te nomeio
governadora da Terra e te dou carta branca para agir como achar necessário.
Organize um exército, faça o planejamento com cuidado e execute os planos, aplique
e compartilhe o conhecimento que acumulou, quero que todos os nossos estejam
aptos a ajudar essa raça idiota. Quando estiverem prontos, desligaremos os
genes que aceleram tanto o envelhecimento. Agora vamos aos arquivos que trouxe.
- Poderíamos fazer um
documentário, uma simulação artística com abordagem científica, para os nossos
aprenderem bem sobre os humanos.
Ele acata a sugestão. Por
agora quer absorver os sete milênios de trabalho árduo de sua governadora.
2 comentários:
Muito interessante e nos leva a refletir sobre todas as características de nossa civilização, parabéns !!!
Bom ver que alguém compreende o que escrevo 8-)
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