25/10/2009

Vista a camisa

Um dos maiores problemas da actualidade é a falta de compromisso. Não aqueles que enchem as agendas, isto são obrigações sociais. Se parecem muito com o compromisso porque usam roupas muito parecidas, às vezes até coincidem.
Mas uma diferença básica pode ser esta: Obrigação social é uma satisfação que se dá ao grupo em proveito próprio, compromisso é uma satisfação que damos a nós mesmos em prol do grupo.

No caso da obrigação, é necessário que a sociedade em questão tome conhecimento do que foi feito, mas tu faz de tudo para não se envolver e ter o mínimo possível de contacto com os problemas correlatos.

Quem assume um compromisso está preocupado é com os resultados, ainda que a sociedade não tome conhecimento do esforço desprendido, e tu se envolves mesmo sabendo te todos os problemas correlatos. E mergulha de cabeça.

Os homens-bomba, por exemplo, seguem uma obrigação social. Apesar de parecer que eles lutam pelo bem de uma causa, eles acreditam que a morte naquelas circunstâncias lhe renderá glória, seja histórica, seja pós-túmulo. Ou seja, fazem por si mesmos e não pelo grupo, como qualquer um que se rende às facilidades egoicas do radicalismo, seja em que área for. Porque é em nome de "Seja-Lá-O-Que-for" que eles fazem o que fazem, então não é nada de pessoal e dá licença que vou explodir seus filhos para minha exaltação.

Assim se formam as gangues de filhinhos-de-papai que, quando alegam defender a honra do grupo, estão é alisando as feridas de seus espíritos enfraquecidos pelo prazer fácil.

Vestir a camisa é, assim, diferente de simplesmente usá-la. Usar um "Garotas Que Dizem Ni" bordado no bolso da camisa, sob um paletó, pode ser uma prova muito maior do que só usar uma camiseta escandalosa em cores berrantes, se recusando a trocá-la ou vestir algo por cima. O primeiro caso está fazendo algo pela causa, o segundo em nome da causa. O primeiro seria capaz de enriquecer para custear aquilo em que as garotas acreditam, o segundo certamente formaria uma gangue para perseguir quem não é do grupo.

As explicações se delongaram muito mais do que eu pretendia, mas acredito que passei meu recado. Vamos à camisa.

Hoje, como em todo último domingo de cada mês, fui photographar um evento de veículos antigos. Pela primeira vez o clube do Fusca faltou, o do Chevette há meses não comparece. Os que teimam em freqüentar (com trema) reclamam da falta dos correligionários e seus carros. O ponto em que todos eles concordam, é o prazer que sentem lidando e falando de seus carros, o ponto em que nem todos concordam é arcar com os compromissos de serem associados a uma entidade legalmente registrada e reconhecida. Em parte há razões, a prefeitura não dá a mínima para eventos culturais que activem partes acima do abdômen, pois não são inerentes ao eleitorado cativo. Hoje o lugar estava cheio de carroças com bancas desmontadas, sujo e os banheiros, bem, eu não aconselho seu uso por mulheres. Esta é a parte em que podemos culpar o poder público.

Pesa contra o corpo de sócios a má vontade, o vício em repetir "meu carro" em vez de "meu clube". Há pessoas que garantem o pão do dia trabalhando nesses eventos. O ambiente proporcionado (apesar dos espíritos de porco que insistem em atrapalhar) é de uma paz e uma camaradagem raras, como das épocas dos veículos expostos, quando se podia dormir apenas fechando as portas, sem cerca electrificada, alarmes ou monitoramento noturno. Mas poderia ser mais. Esse ambiente poderia ser compartilhado com toda a cidade com passeios temáticos, visitas a escolas públicas, creches, simples impressos a respeito dos carros e suas épocas já despertariam interesse. Falta compromisso. Eles não pensam nos efeitos benéficos que o antigomobilismo gera, só no próprio lazer.

Um dos componentes da última crise mundial é justamente a falta de compromisso das directorias para com suas empresas. Vocês sabem que a Ford passou quase ilesa pelo episódio, ao contrário da General Motors. Acontece que a primeira ainda tem o controle da família que a fundou. Quando um Ford vê o emblema da marca, vê literalmente o próprio nome, existe um compromisso que levou a família a não compartilhar da postura depredatória das demais montadoras. Logo, foram os únicos a não dar satisfações para o Obama. Os outros tinham é obrigação de mostrar números, o faziam a qualquer custo, para não perderem seus empregos. Pois os perderam. E hoje vemos que a Daimler-Benz não mentiu ao falar da Chrysler que, como a GM, não tem nem de longe a solidez de seus productos.

Se o presidente de uma companhia não veste sua camisa, quem o fará? Os ex-fãs das duas marcas estão decepcionados, já não existe a fidelidade de outrora.

Em menor escala, mas não menos importante, temos as empresas locais, que são as bases das grandes. O funcionário reclama do salário, mas não faz o menor esforço para que a administração sinta sua falta durante as férias. O director reclama dos funcionários, mas não faz o menor esforço para que eles sintam falta do trabalho durante as férias. Neste círculo vicioso, a empresa se torna só mais uma que não fará diferença quando falir e outra tomar seu lugar.

Aqui cabe falar da melhor pessoa do mundo, a criatura mais íntegra e honesta de que tenho notícias, a amiga por quem eu daria a vida se fosse necessário: Maria Cristina. Ela sim, veste a camisa, o terno, a saia plissada e os sapatos de onde trabalha. Posso dizer, em resumo, que no dia em que o Tribunal de Contas da União baixar lá (porque ainda há de se dar Justiça), ela entrega as chaves e as senhas dos computadores sem medo. Apesar de já ter sido ameaçada por pais-palhos que agem cegamente contra quem menos parece poder se defender, de ter sido perseguida veladamente por questões políticas e não contar com um contingente mínimo em sua equipe, rege magnificamente os setores que comanda. Ex-alunos lá vão apenas para darem um abraço e dizer que a amam. Ela incorpora o espírito da assistência social. Se agisse em causa própria, seria rica, pois é competente, mas age em prol da causa que abraçou. Tira do próprio bolso para manter sua alçada funcionando. Às vezes exagera, mas é por uma causa nobre.

Uma pessoa que assume um compromisso e veste a camisa, tem menos tempo para pensar e fazer besteiras. Aprende rapidamente os limites que sustentam uma vida social saudável.

Ter compromisso com origami leva ao seu estudo, à prática insistente e rapidamente aos valores ligados á arte das dobraduras. Decerto que deve haver um limite, mas qualquer mãe que se preze prefere ver o pimpolho estudando matemática e japonês a caçando encrenca nas ruas, qualquer pai que se preze prefere ver seu pimpolho alicerçando solidamente seu futuro a caçando encrenca nas ruas. Ele será um cidadão útil e feliz, ao contrário dos que louvam bandidos e fazem apologia à prostituição como "cults".

O mesmo vale para desenho, textos, vídeos, música, miniaturismo, et cétera.

Eu estimulo as pessoas a vestirem boas camisas, porque eu visto várias e não ter me tornado o cafajeste que tentaram me tornar é só um dos benefícios. Escolha as suas e vista, se precisar de um estilista amador para desenhá-la, estou às ordens.

2 comentários:

umbelarte disse...

É isso aí. Você tem toda razão, hoje está faltando compromisso e são poucas as pessoas que vestem uma camisa, pra quê, se usar é mais fácil e não compromete?
Bom fim de semana

Nik disse...

Já reparei que tu é fissurado por camisas. E ainda por cima vestimos o mesmo número, sempre justo, sem folgas no colarinho e espaço para mexer os braços com facilidade! ;)

Nik.