05/05/2012

Marcas na carne


Um modo fácil de ser mal entendido é ter firmeza naquilo em que se acredita, e se pronunciar sobre algo que normalmente não condiz com a sua natureza. Sempre parecerá estar sendo contra ou apontando o dedo àquilo ou àquela pessoa. É freqüente isso me acontecer.

No caso, eu não sou afeito a tatuagens, piercing, visual agressivo e afins. Mas muita gente confunde isso com não gostar das pessoas que usam essa estética. Meus leitores habituais sabem bem que a estética dita 'tradicional', vigente entre os anos trinta e sessenta, é a minha preferida, bem como sabem que eu já fui xingado pela esquerda e pela direita, por ser contra o que pensou que eu disse ou a favor do que pensou que eu tinha criticado, neste blog. Disto vocês tiram o que eu tenho que agüentar. Quase sempre me reservo o direito de ignorar a malcriação e passar por cima, que tenho uma vida complicada para tocar.

O problema ocorre quando pessoas de meu extremo apreço me entendem mal. Aqui eu não posso simplesmente dar de costas, como se sua opinião não me valesse. A opinião dessas pessoas me é muito cara, embora elas se confrontem e me coloquem em saias justas, de vez em quando. Aconteceu hoje.

Tatuagens e adornos (não os de aço inox de hoje, claro) espetados no corpo, foram proibidos pela Igreja no século VIII, com a alegação de ser um vandalismo contra o próprio corpo. Não que os canalhas da época tenham ficado bons por não poderem mais se tatuar. O facto, é que tatuagens mais visíveis eram (e ainda são) um modo rápido e seguro de pessoas de um grupo se identificarem, incluindo ordens secretas e religiosas não reconhecidas. Era fudo um meio socialmente aceitável de aumentar a perseguição já instaurada. Acontece que marinheiros continuavam se tatuando e colocando adornos no corpo, com a previsível conseqüência da marginalização, que tornou-se um estigma dos portos. Pouca gente se arriscava viajar para longe, por terra, por mar era quase ninguém. Eles precisavam muito daqueles marinheiros.

Quando se deram as grandes navegações, o que os europeus encontraram? Isso mesmo, gente tatuada e cheia de penduricalhos pelo corpo. e não foi somente entre os povos considerados selvagens, no altamente civilizado e organizado Japão, é tradicional os homens tatuarem o corpo inteiro com paisagens complexas e símbolos da cultura nipônica. No Japão feudal, um homem sem tatuagens não era necessáriamente um homem respeitado. Na falta de RG, era a identidade deles. E japonês que honrasse os bagos, usava leques coloridos. Isto foi só um dos pontos de discórdia entre ocidente e oriente, mas talvez um dos pontos mais polêmicos; até hoje.

Em algumas tribos no Atlântico Sul, as tatuagens eram tão agressivas, que alguns nativos eram confundidos com demônios, pelos navegadores. Também tão dolorosas, que alguns indivíduos faleciam durante a tatuagem, que era terminada e depois providenciado o funeral. Começaram a perceber como os tatuados foram sendo mandados para os tribunais da moral da época? É difícil entender que a humanidade evolui com muita má vontade e lentidão, e que por isso, às vezes, revisita suas raízes pré-históricas, mesmo usando terno e gravata?

Bem, a partir do fim da segunda guerra, a popularização da 'expressão artística corporal' se deu rapidamente, à revelia dos cleros. Soldados que voltavam do front, com a cabeça feita para aquilo que realmente era importante, em detrimento do que era mero protocolo supérfulo, se desencantaram com seus países, quando viram o que tinham deixado para trás: uma sociedade conservadora e permissiva, especialmente os Estados Unidos. Para quem não conhece bem psicologia, alerto que esta é uma mistura explosiva, capaz de gerar tantos conflitos conceituais, que acaba gerando grupos fundamentalistas, uns extremamente conservadores e cegos para tudo o que for contraditório em seu meio, outros extremamente liberais e cegos para tudo o que for contraditório em seu meio. Geralmente, dois grupos fundamentalistas de mesma orientação, não se bicam se não for contra um inimigo comum, porque a xenophobia faz parte do fundamentalismo.

Os motociclistas de vida livre, sem residência fixa, alguns deles arriscaram seus pescoços pela pátria, começaram a criar códigos, gírias e segredos para se comunicarem entre si sem serem importunados pelos (o termo não nasceu, mas ganhou corpo aqui) caretas da sociedade. Tatuagens, barbas, visual agressivo e outros, faziam parte. Preciso dizer que delinqüentes se aproveitaram rapidamente? Porque muito do que os filmes sobre juventude rebelde mostra, é reflexo da realidade da época, apesar de romanceado. E a 'sociedade careta' julgou o trigo pelo joio, colocou todo mundo em um só saco e motoqueiro de vida livre tornou-se sinônimo de bandido. Com a queda do governo cubano, então, cada um daqueles barbudos de motocicleta passou a ser visto como um Fidel Castro. Coloquem tudo isso em um país naturalmente neurótico e BUM!

De fins dos anos cinqüenta em diante, com os avanços tecnológicos e sanitários, a tatuagem decorativa se popularizou rapidamente, especialmente entre os moradores dos litorais. Novamente o mar e a tatuagem. A sociedade conservadora e permissiva, porém, tinha afrouxado um lado para manter os outros mais apertados. Negros e brancos, nos Estados Unidos, seriam presos se tentassem se casar. Quem o fizesse, teria que fazê-lo noutro país e nunca mais voltar. Isto e´só um dos pontos, todos eles dariam um par de trilogias distintas. Os pais fechavam os olhos para o modo como seus filhos se divertiam, confiando demais no próprio taco, e as drogas ilícitas começavam a entrar nos sagrados lares americanos, e nos brasileiros também, não se iludam, tudo era feito e mantido debaixo do pano. Novamente associaram tatuagem e penduricalhos a algo de ruim. Traficantes não tardaram a perceber que um visual moderno facilitaria a aproximação e infiltração. Não que eles se recusassem a usar o estilo conservador, não é isso, eles vão para qualquer lado que lhes dê dinheiro e poder, se conseguirem isso com roupa de Telettubbies, eles se vestem de Tink Wink sem pudores.

O fim da era de optimismo, que durou bem mais do que era de se esperar, acabou dando à tatuagem o significado original, o da comunicação, expressão e identidade. Isso, combinado com os avanços tecnológicos (porque nossas cabecinhas se mantém na idade antiga) deu uma variedade inédita de penduricalhos. Não eram só os velhos e medievais brincões de pirata, agora era possível expressar toda a frustração, toda a raiva, tudo o que se pensava da sociedade bla-bla, bla-bla e bla-bla, sem precisar tacar fogo em tudo e recriar o mundo de Mad Max ao vivo. Até porque, em sua maioria, eles perceberam que destruir a sociedade não daria os resultados que querem, as pessoas continuariam mesquinhas e limitadas, com ou sem uma sociedade unificada para resguardá-las.

Alguns chegaram ao extremo de colocar para fora, na pele, todos os seus demônios. Funciona melhor do que sair por aí e fazer vandalismo. Custa uma fortuna, a pessoa sabe que será discriminada, que a olharão torto e tudo mais. O caso é que a pessoa não se vê, não se sente (por assim dizer) mais uma pessoa normal, toda bonitinha e alinhada, como se seus traumas não existissem. Em alguns casos, chegam a tornar-se deliberadamente assustadoras, porque é assim que conseguem se enxergar, não aceitariam passar ao mundo uma imagem falsa. A exemplo de mulheres no Brasil e no oriente médio, que são desfiguradas por homens ciumentos e passam a precisar de intervenção cirúrgica para se reconstituírem, quando é possível a reconstituição... e quando a mentalidade tribal permite a ajuda médica. Mentalidade tribal ainda vigente em muitos rincões de nosso território.

A moça da ilustração do cabeçalho, por exemplo, não conseguiu mais ser a mocinha botina e angelical à esquerda. Acreditou que se transformando, acabaria sendo ouvida, pela violência que sofreu a vida inteira. De certa forma, foi ouvida, não sei se com os resultados que esperava. A aparência doce e angélica não assegurou-lhe a tranqüilidade familiar. Agora, pelo menos, ninguém lhe enche os pacovás. Hoje ela tem seu grupo, uma proteção frágil, mas tem. Tem visibilidade e a usa para sua causa, a denúncia da violência doméstica.

No fim das contas, a aparência é um pretexto para discriminação. Sem seu subterfúgio, continuar-se-ia discriminando do mesmo modo. Chiitas e sunitas não se engalfinham, mesmo ambos usando as roupas tradicionais do oriente médio? Qualquer cousa é pretexto para colocar em alguém a culpa por suas mazelas.

Reitero que eu encontro meu canto no art déco, o que me daria, para muitos, salvo conduto na sociedade. Lamento, não é verdade. Conheço a discriminação, a agressão verbal e física, a preterência, o desrespeito descarado e o escárnio desde a mais tenra idade. Só se eu tivesse me restringido a um grupo de semelhantes a mim, para não ter sofrido tudo isso, mas esse grupo não existiu e eu não sou segregador, para excluir de meu convívio alguém que não for minha cópia. Ser certinho, alinhado e disciplinado, não me garantiu e ainda não me garante sequer a proteção social, não me garante absolutamente nada.

5 comentários:

cRiPpLe_rOoStEr a.k.a. Kamikaze disse...

Eu até tenho vontade de fazer uma tatuagem, mas sem grandes exageros.

Nanael Soubaim disse...

Um pequeno brasão, no teu caso, combinaria bem.

Vy disse...

Mas ser desalinhado e indisciplinado também não garantirá. Não se esqueça que maltratar o corpo deliberadamente não tem retorno e também não trará nada daquilo que buscamos. Gosto de você assim, mago!! Beijo grande! Vy
PS: desculpe, mas eu nem consigo olhar a foto...

Nanael Soubaim disse...

Eu sei, Fadinha. Usei meu exemplo para mostrar que nenhuma condição humana nos livra da discriminação. As decisões sociais são muito mais pessoais do que as pessoas admitem.

cRiPpLe_rOoStEr a.k.a. Kamikaze disse...

Cheguei a pensar em fazer uma caveira, mas é difícil achar uma que não fique muito comum. A uns anos atrás eu cheguei a comprar um adesivo e colar na porta de um guarda-roupa apenas por casa do desenho de caveira que trazia...