Um modo fácil de ser mal entendido é ter firmeza naquilo em que se acredita, e se pronunciar sobre algo que normalmente não condiz com a sua natureza. Sempre parecerá estar sendo contra ou apontando o dedo àquilo ou àquela pessoa. É freqüente isso me acontecer.
No caso, eu não sou afeito a tatuagens, piercing, visual agressivo e afins. Mas muita gente confunde isso com não gostar das pessoas que usam essa estética. Meus leitores habituais sabem bem que a estética dita 'tradicional', vigente entre os anos trinta e sessenta, é a minha preferida, bem como sabem que eu já fui xingado pela esquerda e pela direita, por ser contra o que pensou que eu disse ou a favor do que pensou que eu tinha criticado, neste blog. Disto vocês tiram o que eu tenho que agüentar. Quase sempre me reservo o direito de ignorar a malcriação e passar por cima, que tenho uma vida complicada para tocar.
O problema ocorre quando pessoas de meu extremo apreço me entendem mal. Aqui eu não posso simplesmente dar de costas, como se sua opinião não me valesse. A opinião dessas pessoas me é muito cara, embora elas se confrontem e me coloquem em saias justas, de vez em quando. Aconteceu hoje.
Tatuagens e adornos (não os de aço inox de hoje, claro) espetados no corpo, foram proibidos pela Igreja no século VIII, com a alegação de ser um vandalismo contra o próprio corpo. Não que os canalhas da época tenham ficado bons por não poderem mais se tatuar. O facto, é que tatuagens mais visíveis eram (e ainda são) um modo rápido e seguro de pessoas de um grupo se identificarem, incluindo ordens secretas e religiosas não reconhecidas. Era fudo um meio socialmente aceitável de aumentar a perseguição já instaurada. Acontece que marinheiros continuavam se tatuando e colocando adornos no corpo, com a previsível conseqüência da marginalização, que tornou-se um estigma dos portos. Pouca gente se arriscava viajar para longe, por terra, por mar era quase ninguém. Eles precisavam muito daqueles marinheiros.
Quando se deram as grandes navegações, o que os europeus encontraram? Isso mesmo, gente tatuada e cheia de penduricalhos pelo corpo. e não foi somente entre os povos considerados selvagens, no altamente civilizado e organizado Japão, é tradicional os homens tatuarem o corpo inteiro com paisagens complexas e símbolos da cultura nipônica. No Japão feudal, um homem sem tatuagens não era necessáriamente um homem respeitado. Na falta de RG, era a identidade deles. E japonês que honrasse os bagos, usava leques coloridos. Isto foi só um dos pontos de discórdia entre ocidente e oriente, mas talvez um dos pontos mais polêmicos; até hoje.
Em algumas tribos no Atlântico Sul, as tatuagens eram tão agressivas, que alguns nativos eram confundidos com demônios, pelos navegadores. Também tão dolorosas, que alguns indivíduos faleciam durante a tatuagem, que era terminada e depois providenciado o funeral. Começaram a perceber como os tatuados foram sendo mandados para os tribunais da moral da época? É difícil entender que a humanidade evolui com muita má vontade e lentidão, e que por isso, às vezes, revisita suas raízes pré-históricas, mesmo usando terno e gravata?
Bem, a partir do fim da segunda guerra, a popularização da 'expressão artística corporal' se deu rapidamente, à revelia dos cleros. Soldados que voltavam do front, com a cabeça feita para aquilo que realmente era importante, em detrimento do que era mero protocolo supérfulo, se desencantaram com seus países, quando viram o que tinham deixado para trás: uma sociedade conservadora e permissiva, especialmente os Estados Unidos. Para quem não conhece bem psicologia, alerto que esta é uma mistura explosiva, capaz de gerar tantos conflitos conceituais, que acaba gerando grupos fundamentalistas, uns extremamente conservadores e cegos para tudo o que for contraditório em seu meio, outros extremamente liberais e cegos para tudo o que for contraditório em seu meio. Geralmente, dois grupos fundamentalistas de mesma orientação, não se bicam se não for contra um inimigo comum, porque a xenophobia faz parte do fundamentalismo.
Os motociclistas de vida livre, sem residência fixa, alguns deles arriscaram seus pescoços pela pátria, começaram a criar códigos, gírias e segredos para se comunicarem entre si sem serem importunados pelos (o termo não nasceu, mas ganhou corpo aqui) caretas da sociedade. Tatuagens, barbas, visual agressivo e outros, faziam parte. Preciso dizer que delinqüentes se aproveitaram rapidamente? Porque muito do que os filmes sobre juventude rebelde mostra, é reflexo da realidade da época, apesar de romanceado. E a 'sociedade careta' julgou o trigo pelo joio, colocou todo mundo em um só saco e motoqueiro de vida livre tornou-se sinônimo de bandido. Com a queda do governo cubano, então, cada um daqueles barbudos de motocicleta passou a ser visto como um Fidel Castro. Coloquem tudo isso em um país naturalmente neurótico e BUM!
De fins dos anos cinqüenta em diante, com os avanços tecnológicos e sanitários, a tatuagem decorativa se popularizou rapidamente, especialmente entre os moradores dos litorais. Novamente o mar e a tatuagem. A sociedade conservadora e permissiva, porém, tinha afrouxado um lado para manter os outros mais apertados. Negros e brancos, nos Estados Unidos, seriam presos se tentassem se casar. Quem o fizesse, teria que fazê-lo noutro país e nunca mais voltar. Isto e´só um dos pontos, todos eles dariam um par de trilogias distintas. Os pais fechavam os olhos para o modo como seus filhos se divertiam, confiando demais no próprio taco, e as drogas ilícitas começavam a entrar nos sagrados lares americanos, e nos brasileiros também, não se iludam, tudo era feito e mantido debaixo do pano. Novamente associaram tatuagem e penduricalhos a algo de ruim. Traficantes não tardaram a perceber que um visual moderno facilitaria a aproximação e infiltração. Não que eles se recusassem a usar o estilo conservador, não é isso, eles vão para qualquer lado que lhes dê dinheiro e poder, se conseguirem isso com roupa de Telettubbies, eles se vestem de Tink Wink sem pudores.
O fim da era de optimismo, que durou bem mais do que era de se esperar, acabou dando à tatuagem o significado original, o da comunicação, expressão e identidade. Isso, combinado com os avanços tecnológicos (porque nossas cabecinhas se mantém na idade antiga) deu uma variedade inédita de penduricalhos. Não eram só os velhos e medievais brincões de pirata, agora era possível expressar toda a frustração, toda a raiva, tudo o que se pensava da sociedade bla-bla, bla-bla e bla-bla, sem precisar tacar fogo em tudo e recriar o mundo de Mad Max ao vivo. Até porque, em sua maioria, eles perceberam que destruir a sociedade não daria os resultados que querem, as pessoas continuariam mesquinhas e limitadas, com ou sem uma sociedade unificada para resguardá-las.
Alguns chegaram ao extremo de colocar para fora, na pele, todos os seus demônios. Funciona melhor do que sair por aí e fazer vandalismo. Custa uma fortuna, a pessoa sabe que será discriminada, que a olharão torto e tudo mais. O caso é que a pessoa não se vê, não se sente (por assim dizer) mais uma pessoa normal, toda bonitinha e alinhada, como se seus traumas não existissem. Em alguns casos, chegam a tornar-se deliberadamente assustadoras, porque é assim que conseguem se enxergar, não aceitariam passar ao mundo uma imagem falsa. A exemplo de mulheres no Brasil e no oriente médio, que são desfiguradas por homens ciumentos e passam a precisar de intervenção cirúrgica para se reconstituírem, quando é possível a reconstituição... e quando a mentalidade tribal permite a ajuda médica. Mentalidade tribal ainda vigente em muitos rincões de nosso território.
A moça da ilustração do cabeçalho, por exemplo, não conseguiu mais ser a mocinha botina e angelical à esquerda. Acreditou que se transformando, acabaria sendo ouvida, pela violência que sofreu a vida inteira. De certa forma, foi ouvida, não sei se com os resultados que esperava. A aparência doce e angélica não assegurou-lhe a tranqüilidade familiar. Agora, pelo menos, ninguém lhe enche os pacovás. Hoje ela tem seu grupo, uma proteção frágil, mas tem. Tem visibilidade e a usa para sua causa, a denúncia da violência doméstica.
No fim das contas, a aparência é um pretexto para discriminação. Sem seu subterfúgio, continuar-se-ia discriminando do mesmo modo. Chiitas e sunitas não se engalfinham, mesmo ambos usando as roupas tradicionais do oriente médio? Qualquer cousa é pretexto para colocar em alguém a culpa por suas mazelas.
5 comentários:
Eu até tenho vontade de fazer uma tatuagem, mas sem grandes exageros.
Um pequeno brasão, no teu caso, combinaria bem.
Mas ser desalinhado e indisciplinado também não garantirá. Não se esqueça que maltratar o corpo deliberadamente não tem retorno e também não trará nada daquilo que buscamos. Gosto de você assim, mago!! Beijo grande! Vy
PS: desculpe, mas eu nem consigo olhar a foto...
Eu sei, Fadinha. Usei meu exemplo para mostrar que nenhuma condição humana nos livra da discriminação. As decisões sociais são muito mais pessoais do que as pessoas admitem.
Cheguei a pensar em fazer uma caveira, mas é difícil achar uma que não fique muito comum. A uns anos atrás eu cheguei a comprar um adesivo e colar na porta de um guarda-roupa apenas por casa do desenho de caveira que trazia...
Postar um comentário