18/05/2012

Com os erros alheios


O casal criava os filhos com um certo rigor, mas sem deixar faltar absolutamente nada do que necessitavam. Como ainda era muito pequenos, sem discernimento, não lhes davam muita liberdade de escolha. Afinal, se pudessem, comeriam jujuba o dia todo e jamais tomariam banho.

Contrariando um pouco a própria índole boêmia, o casal se controlava para não dar maus exemplos aos petizes. Viram em outras famílias, ainda na época de namoro, pais reclamando do comportamento de seus filhos, sem se darem conta que estavam apenas imitando os seus, de onde deduziram que o "Faça o que eu digo, não faça o que eu faço" é uma peneira usada como sombrinha.

Perceberam que nem tudo o que é antigo, é ruim, e vice-versa. Buscaram desde cedo a ajuda de uma psicóloga biruta para ver onde os outros casais acertavam e erravam. Souberam de erros bizarros. Não adiantava dar o que não tiveram, se antes não lhes dessem também o que de bom lhes foi dado, como educação e civilidade.

Não adiantaria também podar completamente os pequenos, porque um dia eles cresceriam e se tornariam adultos dependentes, incapazes de tomar decisões sozinhos. Era necessário dar-lhes a liberdade que fossem capazes de administrar. Ser democrático com pequenos ditadores era um dos erros mais comuns, assim como não dar liberdade nenhuma e anular totalmente a criança. E uma criança pequena, convenhamos, não sabe administrar nem o próprio intestino, quanto mais a liberdade! Enquanto assim estivessem, precisariam vigiar os seis de perto. Sim, seis! dois pares de gêmeos e dois adotivos. Onde estavam com as cabeças, não sabem, sabem que agora têm uma responsabilidade enorme, a de não colocar mais seis monstros egoístas e insensíveis à dor alheia no mundo.

A vontade de dar presentes para ver a casa sempre cor-de-rosa era controlada. Havia muitos brinquedos, sim, mas todos pedagógicos e coletivos, de modo que ninguém podia se apossar de um, nem tomar de quem estivesse usando. Mas que trabalheira! Quanto choro, quanta birra, quanta dor de cabeça! Claro que sempre aparecia um idiota dizendo que aquela casa estava virando um colégio de freiras, onde ninguém podia fazer nada; como se eles conhecessem um colégio de freiras. Vendo os filhos deles no colo, tranqüilos, com seus brinquedos hi-tec-benten com cenários vendidos separadamente, a tentação era forte.

Até os seis anos de idade, nenhum comia absolutamente um grama de porcaria industrializada. Mas para tanto, eles mesmos precisaram não comprar, pois sabiam que alguém encontraria, cedo ou tarde e daria trabalho. Comiam bobagem na rua, quando as crianças não estivessem por perto. Para ajudar, contrariando o que a pedabobagia pseudomoderna de quem vai da sala de professores para o banheiro e de lá para o ar-condicionado de suas salas, alguns horários de alguns canais eram bloqueados. Não por pornographia, por ideologia ou o que valha, mas para que programas dirigidos às crianças não lhes empurrassem porcarias de patrocinadores. Viam poucos programas realmente feitos para as crianças e, quando acabavam, iam brincar lá fora, juntos, com sujeira, plantas, insetos, tombos e choros. No fim da tarde, todo mundo para o banho, que deveriam dormir cedo, gostando ou não; o cansaço pelas actividades do dia os derrubava. Enquanto foram crianças, vestiam roupas de crianças, usavam brinquedos e ficavam longe de festas de adultos. Só conheceram o super mercado depois dos nove anos.

Foi uma época muito trabalhosa, mas foi a mais fácil. A partir dos nove anos, com os hormônios em ebulição e amizades de escola para influenciar, precisaram endurecer, mas sem perder a ternura jamais. Recorreram mais de uma vez à amiga Esther Gutemman (aqui, aqui, aqui e aqui), mestra ascensionada em matéria de educar e corrigir filhos. Ela sempre lhes dizia que não deveriam ser pais duros, nem pais moles, deveriam ser o que, quando e enquanto fosse preciso ser. Ajudou o facto de as idades serem próximas, e terem dado responsabilidades à medida em que cresciam. Com sete anos, por exemplo, já cuidavam uns dos outros, faziam lanches simples, arrumavam suas próprias bagunças e tudo mais. Entraram na adolescência já ajudando a limpar a casa e na lida culinária.

O que os "amigos" pensavam disso? DANE-SE! Não eram os amigos que pagavam suas contas, que os alimentavam, que os levavam no fiofó da noite ao pronto-socorro (pensa que é sopa ter filhos? Experimente) e tudo mais que eles faziam por sua prole. Não tinham pena de fazer os garotos chorarem, se fosse necessário, preferiam pagar psicoterapia pelo resto da vida, a pagar advogado uma vez só. Mas como isso desgastava o casal! O mundo inteiro conspirando para que radicalizassem para qualquer lado que fosse, desde a extrema permissividade até a extrema tirania, que eram escolhas confortáveis, mas equívocos que viam produzir frutos amargos e indigestos em outras famílias.

Paralelamente, cada um tinha seu jeito de ser. Eram seis filhos com estilos próprios, gostos próprios, modos próprios de ser, e isso era respeitado. Uma era louca, apaixonada, completamente caída por cantores cafonas. Chorou rios de lágrimas quando o Wando morreu. Colocou todas as calcinhas no varal, em sinal de luto. Brega? Imagina! Mas todo mundo respeitava, desde que não lhes obrigasse a ouvir o que não precisava ouvir. Seu sonho dourado é visitar o Museu do ABBA, na Suécia, e fazer um no mesmo estilo.

Os mesmos idiotas que outrora os acusava de transformarem a casa em um convento, então passaram a apontar o dedo para o que chamavam de desagregação familiar. O motivo era justo o respeito e a tolerância para com o modo de ser de cada um, inclusive a filha mais nova, Virgínia, otaku de carteirinha e já mestrada em fazer cosplay de tudo o que se imaginar, e costuma andar por aí fantasiada. Queriam ver todo mundo uniformizado, aparentando união, aparentando respeito, aparentando obediência, aparentando o raio que os parta! O casal explodiu de vez e rompeu com metade da família, a outra metade passou a agendar visitas com um mês ou mais de antecedência.

Assim que cada um teve idade, lhes deram trabalho. A persistência durante a infância, evitou a instalação de vicios do mundo contemporâneo, antes que tivessem capacidade para administrá-los. Sabem, porém, que o dito mercado de trabalho deixou de ser exigente para ser estúpido, deixando de lado gente capaz e disposta a crescer, para privilegiar pompa e circunstância. Que remédio? O casal teve que arranjar CNPJ e empregar os pimpolhos que eram tratados como coisas pelos empregadores. Afinal, eles tinham que aprender a respeitar, não a servir de capacho. Engolir sapo tem limite. Isso garantia uma vidinha mais fácil, certo? ERRADO! Ali não era um casal de empregadores que estava de olho, eram seus pais que tinham no pagamento dos salários um poder a mais, para controlar os seis. Sim, leitores, chegou ao ponto de os seis bons cidadãos mirins ficarem desempregados ao mesmo tempo.

Lucro? Pouco, bem pouco. O dividendo que eles buscavam, e conseguiam, era manter os filhos sob controle e se controlando. Não que não dessem problemas, eles reconheciam que tinham crianças e não anjos. mas à medida em que se tornavam mais responsáveis e competentes, ganhavam liberdade de escolha e diálogo. Não adiantava tentar controlar todos os aspectos da população doméstica, porque ela acabaria se tornando meia dúzia de adultos a esperar sempre que lhes dissessem o que deveriam fazer, tornando-os presas fáceis para mal intencionados, e o casal não estaria eternamente presente para socorrer. Precisavam aprender a escolher, arcar com as conseqüências, amadurecer, quebrar a cara, enfim, tudo. Uma vez que aprendessem a ser verdadeiramente donos de suas vidas, a democracia dentro de casa seria plena.

Com o tempo, antes mesmo da maioridade, os pais passaram a arcar só com as despesas básicas da casa, do resto os garotos se encarregavam. Às vezes até do pesado eles participavam, mais ou mesmo como se um grupo de cidadãos arregaçasse as mangas e fizesse pequenos reparos no patrimônio público, em vez de simplesmente reclamar que a prefeitura não olha pela comunidade, claro que depois cobrando o preço justo.

Um dia, com os primeiros aniversários de maioridade, a parte banida da família voltou àquela casa. Fizeram todo o possível para seus filhos criarem raízes, incluindo evitar muitas mudanças de endereço. O que viram foi um choque. Entre as ampliações da casa, estavam uma pequena biblioteca e uma pequena galeria de photographias, em que as diferenças entre os oito eram usadas para complementar, em vez de segregar. Avós precoces viam seus sobrinhos só agora, com capacidade para arcar com suas conseqüências, terem namoros de verdade. Os retratos mostravam todos os oito membros da família relaxados, à vontade, abraçados sem fazer pose e sem retesamento muscular. Lá dentro, todo mundo sabe quem manda, mas todos participam das decisões, porque todos querem resolver os problemas postos na mesa, em vez de discursar e competir para ver quem está certo.

O casal tinha na ponta da língua as orientações da amiga psicóloga, mas principalmente da amiga judia: Não é preciso ser duro nem mole, é preciso ser o que, quando e enquanto for necessário. Receita que parece simples, mas que os fez quebrar a cara um bocado de vezes até acharem a medida certa para cada um, porque cada um apresentou um nível e caraterística diferente de rebeldia, quando ela apareceu. Na garagem há três carros, uma van para levar toda a família, e dois pequenos, que cada um tem sua vida própria para tocar.

Foi uma luta, seis leões a matar por dia. Eles não recomendam a experiência para ninguém, avisam sem rodeios que cada filho é uma espada sobre a cabeça. Gostar de criança, todo adulto são gosta, mas isso não capacita ninguém a criar um filho, muito menos seis! É um poder muito melindroso, que escapa ao controle com uma facilidade imensa, requer toda a maturidade e determinação que a maioria da população mundial não tem. Quem sabe controlar um poder, sabe abidicar quando chega a hora. A autoridade de quem fez por merecê-la não pode ser tomada, mas é hora de dar o poder da casa a quem já sabe lidar com ele. Seus filhos agora são adultos, que se virem, eles vão para a segunda lua-se-mel, em Dublin.

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