09/03/2012

A era do cinismo; ou: O adulto perdido


Atenção! Texto longo! Quem estiver com preguiça, volte mais tarde!

Antes de mais nada, é preciso deixar claro o que chamo de 'adulto'. Alguém que tenha entrado em coma aos oito anos e acorde aos dezoito, não pode ser considerado um adulto. Embora com plena capacidade de reprodução e agressão pela subsistência biológica, sua capacidade de discernimento e tolerância à frustração permanece estacionada na infância. Ele não conseguiu a vivência necessária ao amadurecimento psicológico, à formação moral e à capacidade de arcar plenamente com as conseqüências de seus actos. Há adultos com senso de humor afiado e crianças mau humoradas, então não é tampouco a cara fechada que os separa. Não confundamos o sujeito fanfarrão e de bem com a vida com o infantil, que se recusa a assumir os ônus de ser um adulto bem resolvido.

Antigamente (nem tanto, não faz nem cinqüenta anos) o adolescente começava a ser encarado com seriedade, quando começava a ganhar seu próprio dinheiro; mais ainda se o ganho esporádico começasse na infância. Quando isso acontecia, aquilo que ele fosse capaz de suprir, passava a ser negado pelos pais. Não, não havia crueldade nenhuma nisso, o arcar com suas despesas significava uma economia para a família, o dinheiro que os pais não precisavam dar ao filho para seu lazer, era empregado na casa, inclusive nos irmãos menores, que ainda não conseguiam se manter; era comum ter três ou quatro filhos, há alguns anos. O efeito era imediato. De um lado vinha a responsabilidade de alguém que via de onde o dinheiro saía, e assim também que ele não seria reposto se acabasse antes da hora. Por outro lado, o adolescente se via na regalia de não dar satisfações do uso que fazia de seu dinheiro, sempre estufando o peito e enchendo a boca para dizer "Meu dinheiro" a qualquer um que criticasse ter comprado um gibi do Zé Carioca. Ainda que os hormônios da pouca idade agissem, a razão sempre puxava a orelha por alguns excesso. A garota tinha que moderar a compra de maquiagem e roupas, com isso passava a prestar mais atenção à despensa da casa, primeiro comprando o que queria comer, mas aos poucos colaborando para o consumo da família.

Qualquer ser pensante é contra a exploração do trabalho infantil, mas também é contra a histeria que transforma a vida da  criança em uma bolha de prazeres e conveniências, isenta de responsabilidades. Querer processar uma mãe que manda o petiz lavar o prato em que comeu, é uma das muitas atrocidades civilipatas que já li em jornais. Não, caros leitores, não estou brincando, o episódio já aconteceu mais de uma vez no triste reino dos Goyazes. Se a criança não tem obrigação de ajudar nas lidas da própria casa, nem mesmo cuidando de sua sujeira particular, vai sentir-se na obrigação de arcar com o quê? Ao contrário do que acontece no que escrevi no parágrafo acima, aqui teremos um jovem pouquíssimo tolerante à autoridade, mesmo àquela que poderá lhe pagar os proventos, com grandes chances de não parar em emprego nenhum. Não que o passado tenha sido uma maravilha, um paraíso perdido, tem cousas ruins e tabús supérfulos que gostaria que ficassem por lá mesmo, mas também tem cousas excelentes que fazem muita falta nos dias correntes, a preparação da criança para a vida adulta é uma delas.

Alguém, nos últimos anos, andou espalhando por aí que felicidade é só um hormônio. O maior problema desta afirmação, é o facto de que um hormônio só é produzido em situações propícias. O bocó de mola acabou afirmando, por tabela, que ser feliz é ter tudo rápido, fácil e sem custo. Alguém mais andou espalhando que a felicidade é um direito inato e tudo danou-se, porque ninguém mais quer fazer por merecê-la. Alguém, nos últimos anos, soube se aproveitar muito bem disso. Caso alguém aí tenha pulado o curso da vida, aviso que eu freqüentei todas as aulas e uma das lições era, justamente, a de que para tudo existe um custo, nem sempre financeiro. As pessoas passaram a pagar para não sofrer, como se o sofrimento por um episódio não pudesse ter absolutamente nada de proveitoso.

O ditado que diz "Aprender é obrigatório, sofrer é opcional" é uma jóia, diz tudo e dá entrelinhas para muita reflexão. Infelizmente as pessoas raramente aprendem sem sofrer, que o digam os maganões que passam o semestre todo na esbórnia e se ajoelham aos pés do colega nerd, às vésperas da prova final. Neste contexto ilustrativo, é fácil perceber que a maturidade plena não existe no reino dos homens, mas também que não precisamos dela para sermos adultos plenos e bem resolvidos, mais úteis do que perigosos à sociedade. Aprendemos como podemos, de acordo com as nossas limitações individuais, se quisermos aprender algo com a vida. Aliás, se pudéssemos ser plenamente maduros, não seríamos humanos, seríamos anjos e não estaríamos aqui, eu não precisaria escrever a respeito para vocês e viveríamos felizes para todo o sempre. Aos que não acreditam, não adianta dizer, aos demais devo esclarecer um mito sobre os anjos: Eles não ficam deitados em nuvens, tocando harpa pela eternidade. Anjos trabalham dura e continuamente, arcando com responsabilidades e dificuldades cada vez maiores à medida que aprendem e crescem. Vida de anjo é responsabilidade eterna.

As conseqüências de a criança não se acostumar às frustrações e responsabilidades, inerentes a qualquer vida mental saudável, se refletem nos noticiários de atrocidades cometidas por garotos que não aprenderam a compreender a dor alheia, simplesmente porque não aprenderam que o outro (no caso, seus pais) se esforça para trazer comida e conveniências para dentro de casa. Ele não vê a comida sequer saindo da cozinha, já a encontra arrumadinha sobre a mesa, come à moda suína e deixa a bagunça para trás, apenas querendo que tudo esteja arrumado quando voltar. A cena descrita, antes restrita a jovens mimados de classes mais abastadas, agora é democraticamente distribuída entre jovens mimados até das famílias mais pobres. Estão poupando as crianças de tudo, inclusive do que lhes garantiria a própria felicidade, sem ter que comprá-las em uma drogaria, ou uma boca de fumo: sua noção de limites, deveres e direitos. Saber até onde pode e deve ir, para usufruir ao máximo da parcela de liberdade que lhe cabe. Sim, queridos leitores e queridas leitoras, a parcela de liberdade que lhe cabe, porque quem excede o que lhe é de direito, invade o direito alheio e tolhe sua liberdade, como os mongos que ligam som automotivo no último volume, se lixando se por perto há residências, uma escola ou mesmo um hospital. Isto é um exemplo tênue, perto do que já estou perigosamente acostumado a ver.

Com tamanha pseudo-liberdade dada aos jovens, sem qualquer contrapartida cobrada, a juventude deixou de ser uma fase dourada para se tornar um sonho de consumo, esperta e perversamente deturpado como tudo o que pode dar dinheiro. Marmanjos com filhos já grandes, se comportando como se fossem adolescentes, especialmente ao volante, proliferaram assustadoramente, mais do que mamona em campo aberto. Já disse uma vez e repito: Sua vida não é da minha conta enquanto não invadir a minha vida. O problema é que essa gente perde completamente a noção de limites, e acaba acreditando (e agindo como) que qualquer lugar em que esteja é seu território, e que todos lá estão exclusivamente para lhe dar prazer. Experimente, moça, recusar uma cantada nos dias de hoje. Experimente, rapaz, recusar uma oferecida nos dias de hoje. Eles invadem a vida alheia e muitas vezes querem se apoderar dela.

Mas se são questionados por sua conduta, acham-se no seu direito, bradam e retorizam bizarramente para continuarem a invadir o direito alheio. Com a ideologia da liberdade sem limites, as pessoas estão se acostumando a serem cínicas, fazer de conta que não é com elas e partir para o ataque se houver insistência em tirar seu carro da saída de ambulâncias. Uma das táticas verbais é relativizar tudo ao extremo, como afirmar que "no meu ponto de vista, não estou atrapalhando, estou em via pública, bla, bla, bla", ou mesmo descer e agredir fisicamente, com ameaças, o cidadão indignado. Uma parcela demasiadamente expressiva da população acabou acreditando que o mundo é seu quintal particular, e enquanto não encontrar alguém mais forte pela frente, age como se os outros fossem obrigados a lavar o prato sujo que deixou na mesa.

Patrocinando tudo isso, há um congresso que faz leis permissivas não pensando na proteção do cidadão, mas na própria contra o cidadão. Dar ao garoto o direito de voto, mas negando-lhe a responsabilidade criminal na medida de sua compreensão, é um meio de proteger os próprios filhos. Ainda hoje não esqueço do filho do ex-ministro que dirigiu sem carteira, matou e saiu impune. Vem dessa gente, aliás, a demonstração mais contundente de que o Brasil tornou-se uma nação de cínicos, onde dar de ombros ao direito do outro é aceitável, ser pêgo em delito e sorrir para a câmera dá status, entre outras fofuras. Disseminam seu comportamento egoísta e infantilesco, a despeito das rugas, pelos escalões inferiores de seus partidos, fazendo todos acreditarem que é normal ser cínico. Sendo cínicos, eles conseguem jamais admitir que podem estar errados, que sua ideologia pode conter erros, que seus actos podem ser errados, que seu partido pode estar errado. O "errado" passa a ter o significado que eles querem, de acordo com seus desejos no momento, desejos que mudam com as oportunidades.

As bases partidárias não ficam de fora, afinal é a massa de manobra dos malandros. Simpatizantes são orientados a atacarem qualquer um que demonstre não concordar com as diretrizes do partido, não importa que seus líderes tenham sido filmados em pleno exercício do ilícito. Neste momento, todos os de fora são golpistas, inimigos da nação, inimigos do povo, inimigos do direito particular, inimigos, na verdade, dos caprichos pessoais que eles colocam no pedestal, como se fossem a coisa mais importante e carente de proteção em todo o universo. Sim, queridos leitoras e leitores, nossos dirigentes não são simplesmente pilantras, eles são necessitados de tratamento psiquiatrico urgente, são incapazes de conviver pacificamente em sociedade sem prejudicá-la. Mas nem pensem, os mais exaltados, em dar cabo de um deles; vira mártir da causa, passa a ter sua vidinha torpe romanceada e a figurar como herói nas cartilhas do partido.

Uma forma eficiente de disseminar esse cinismo, é pela infiltração nas academias. Com a facilidade de hoje, com que se relativiza toda e qualquer expressão, fica fácil fazer interpretações absolutamente novas a qualquer frase, imaginem então um facto histórico. Convencendo os garotos de que querem tolher seu direito individual ou liberdade de escolha, assim apelando para os hormônios em ebulição, cria-se uma massa apaixonada que agride qualquer um pela "causa". Nada muito diferente das torcidas organizadas, só que estas sabem que estão defendendo apenas um entretenimento, enquanto eles realmente se convencem de que a coisa é séria. Questionamentos contrários? Cinismo neles! Com os aplausos da cúpula da academia. Até quebrarem a cara, quando se virem sozinhos no mundo real, vão fazer malcriações e morder as mãos que poderiam ajudá-los, como se fossem reivindicações de gente séria. Não importa resolver o problema, importa discutir junto ao enquanto perante no nível de, enquanto a infraestrutura do país se esfarela.

No ano passado, um amigo do Rio de Janeiro propôs uma marcha contra a corrupção,  convidando os cariocas com grande antecedência, animado pelo sucesso da parada gay e seus 2,5 milhões de manifestantes. Ele conseguiu o impressionante contingente de zero mil zerocentos e zerenta e zero participantes. Em vez de uma marcha pelo bem comum do país, acabou tendo que fazer um passeio solitário pela orla. Quando o interesse é próprio, restrito à turma e seus prazeres pessoais, fica fácil arregimentar simpatizantes. Quando a coisa é pela necessidade de todos, pelo que até os seus desafetos serão beneficiados, então o interesse desaparece. Todos querem um Brasil melhor, desde que o outro grupo seja excluído. Estão no seu direito, né! Por que citei a parada? Porque é o exemplo mais contundente, nem os participantes dela, que poderiam ter assim conseguido a simpatia de quem ainda tem preconceito, fizeram o favor de mandar alguns representantes, que fosse. O Renato passeou com a esposa e alguns cães de estimação, acabou sendo uma cão-minhada contra a corrupção, em família. Mas o Renato, que perde os dentes, mas não perde a piada, é adulto e não guardou mágoas de ninguém; só guardou os nomes, sobrenomes, endereços e já entregou tudo para uma bruxa resolver.

E tudo isso começou em casa, com a criança sendo poupada de tudo, até do dever de fazer metade de tudo o que faz na vida: estudar. A outra metade é existir. Esta única obrigação, para que não seja alvo de traumas, frustrações e todo um discurso de quem jamais pisa em sala de aula, faz o petiz ter certeza de que vai para o ensino médio sem sequer saber desenhar o próprio nome. Afinal, né, tem balada toda noite e não vai deixar de postar photographia de bebedeira e promiscuidade no orkut, para estudar e aprender o que não quer. Os pais, quando a directoria se dá a dignidade de convocar, apenas dizem que não sabem o que fazer e que deixam nas mãos da escola toda a criação dos seus filhos. Filhos, muitas vezes, gerados ainda na adolescência, quando a cultura de massas da felicidade pela permissividade estava se consolidando no Brasil... E de certa forma, no resto do mundo inteiro.

Mães e pais, vamos ser um pouco duros com as nossas crianças, sempre que necessário, desde bem cedo, para que elas aprendam de forma segura que a vida pode ser (e quase sempre é) muito dura e perigosa, com quem não respeita suas regras. Elas precisam aprender que todo o universo tem regras, que não existe liberdade plena nem sem conseqüências. Depois de aprendido, se puderem, se houver mérito por parte dos pequenos, sejam legais com eles. Assim eles serão adultos realmente felizes, mesmo que não tenham tudo o que desejam na hora e sem fazer por merecer. Sai até mais barato do que ser permissivo. Dizer sim, quando percebem que já se pode, faz bem às duas partes. Eu estou pedindo com carinho, porque a vida não será nem um pouco carinhosa, nem com eles, nem com vocês.

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