Ainda me lembro como se fosse ontem. Era uma mulher bonita, sempre usando o mesmo vestido preto, ou talvez sempre o mesmo modelo... Bem, não tenho tanta certeza, aquela escultura feminina não permite ver detalhes da indumentaria, sabe...
O certo é que ela chamava atenção, muita atenção. Mesmo evitando olhares, era uma mulher altiva, segura de seus passos e aparentava saber para onde ia, e que ninguém deveria se colocar no caminho. Passos calmos, mas firmes, um modo discreto de averiguar sua sacola de compras e, creio ter visto, um relógio que sempre tinha em mãos.
Não posso dizer com certeza absoluta que ela estava lá todos os dias, mas sempre que eu estava lá, por lá ela passava. Aliás, nunca soube de que panificadora ela vinha, ainda mais tão arrumada. Dava a impressão de que estava na activa durante a noite e passava em algum lugar para voltar com pães quentes. Dava para ver o vapor saindo deles, o cheiro que eu nunca encontrei em panificadora nenhuma... Pareciam ter manteiga de leite na massa!
Dei uma de esperto, certa feita, e saí pela noite, nas zonas das meretrizes, ver se a encontrava. Eles riram da minha cara! Todo mundo riu de mim! Soube então que era conhecida como mademoiselle Anita, que era moça fina, bem conhecida e respeitada no meio, mas que não era profissional do ramo. Nada mais. Parecia que a protegiam de curiosos.
Fiquei amigo deles, e eles me ajudaram muito, quando as coisas bagunçaram por aqui. As atrocidades nazistas já atravessavam fronteiras, por judeus que fugiam da Alemanha.
Uma vez eu tentei abordá-la na rua, mas faltando uns doze metros, um trio de rapazes cruzou o caminho e, quando passaram, ela não estava mais lá. Ainda que corresse sobre nuvens, não teria havido tempo. E a saia não era tão folgada que permitisse performances atléticas! Não sem deixar aparecer tudo e fazer todo mundo em volta parar.
Durante anos, até o início da guerra, via essa mulher passando nesta mesma rua, nesta mesma esquina, nesse mesmo horário. Mas já pode imaginar, judeu que tinha juízo se mandou da Europa e foi para a América. claro, não sou judeu, mas todo mundo pensava que eu fosse, e a minha fama era de ser um judeu discreto, não consegui convencer quase ninguém de que não era.
É, o facto de eu ler e falar hebraico a ponto de ter te ensinado, corroborou para a minha fama. Já fui expulso de uma igreja no interior, por causa disso. Mas, voltando à nossa dama, o mais interessante era ela chamar atenções sem, como direi, sem parecer ser nova, ou ter algo de extraordinário. Ela andava como se não tocasse o chão, mesmo requebrando, coisa incrível.
A maquiagem naqueles fins dos anos trinta, era marcante, até para compensar o pessimismo em que o mundo vivia naqueles tempos, por causa da grande depressão... Algumas exageravam, mas ela não. Embora forte, sua maquiagem era sempre equilibrada, impecável, e sempre a mesma! e parece que só eu percebia isso!
O mais intrigante é que ela parecia inalterada, quero dizer, os anos pareciam não passar para ela! Nunca ouvi sua voz, ela só cumprimentava os conhecidos por gestos com a cabeça e sorrisos. Nunca encontrei a panificadora de onde saía com aquela sacola sempre cheia, nunca consegui segui-la, nunca sequer consegui dar um bom dia para...
- Era parecida com aquela moça, vô?
- Não, não era parecida com ela... É ELA! Meu Deus, é ela! Mas não mudou nada, nem maquiagem, nem a roupa, nem o andar, nada!!!
- Tem certeza? Sua testa tá fria, mas...
- Me respeita, menina! Estou velho, ma estou lúcido...
- Ela tá vindo.
- Bonjour, monsieur De Champs! Pontual como sempre!
- Você me conhece??
- Ra, ra, ra, ra, ra, ra... Oui, me lembro do monsieur ainda garotão, tentando me alcançar na volta da panificadora. Peço desculpas, eu estava sempre muito apressada, tinha urgências a tratar.
- A mademoiselle é médica ou algo assim?
- Non, monsieur. Anita é meu apelido, me conhecem mais formalmente como Boa Morte, para os que se portaram bem durante a vida. Hoje poderemos conversar sem pressa.
Conversam por alguns minutos, Anita Boa Morte agradece à mulher por ter ajudado a cuidar de seu amigo e diz que assume de agora em diante .Ela se ata ao seu braço e o leva, ele cai e vai embora consigo, deixando a neta desesperada.
FIM
Um comentário:
A morte sempre teve uma presença trágica na minha vida, a família desandou quando minha mãe morreu, o chão se abriu quando perdi minha madrinha, os assaltos que sofri, as dificuldades que passei e ainda passo, tudo parece me levar a ela, mas de alguma forma, apesar de ser sina da família as mulheres morrerem cedo, e embora ele sempre de suas voltas aqui na minha casa, nunca a convidei a entrar. ;)
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