02/12/2011

Difícil de entender

Como assim, não está entendendo?

Faz não mais do que dois meses, lembrei-me hoje de um episódio que presenciei dentro do ônibus.

Dois cidadãos estavam conversando, deu para entender que moravam ambos na cidade, quando um perguntou se o ônibus passava em certo lugar. O outro não entendeu. Ele insistiu, talvez na tentativa de ser mais didático, mas foi em vão. O que pude ouvir con clareza é que um perguntou de o "oimbu" ia até certo ponto, enquanto o outro 'achava' que ele tinha entrado no "ombz" errado.

Embora em nenhum momento tenha havido animosidade, a frustração de ambos era patente, por não conseguirem se entender. Um deles desceu sem que tivessem entrado em um acordo, e sem que nenhum dos dois tivesse dito 'ônibus', entre outras expressões que os fazia parecer serem de países diferentes. Mais ou menos como se um brasileiro aprendesse um pontunhol mal arranhado e tentasse conversar com um argentino; mas eles moram na mesma cidade. Imaginem se a discussão fosse sobre mulheres, não duvido que um interpretasse que o outro estivesse se insinuando para a sua.

Não muito tempo depois, indo para um dos encontros interclubes de veículos antigos (todo último domingo de cada mês, exceto em Dezembro, das 09h às 13h, no mercado coberto da Paranaíba; prestigiem) presenciei novamente a cena, duas mulheres, aparentemente jovens, entre vinte e sete e trinta anos, eu diria. Ambas com novas e bizarras variantes da palavra 'ônibus' que ninguém mais entendia, além delas mesmas. Novamente não se entenderam.

Para não dizerem que é só nos hospícios sobre rodas que isso acontece, já ouvi na rua, do meu quarto, uma discussão acalorada entre dois indivíduos que não se entenderam, e no final perceberam que estavam dando nomes diferentes ás mesmas cousas. Pararam de discutir a um passo de se agredirem.

Não pensem, os mais jovens, que 'antigamente' não havia gírias e bordões de grupos restritos, havia, mas ninguém se esquecia do vocabulário básico da língua oficial do país, assim até mesmo o diálogo entre um gaúcho e um amapaense tornava-se possível, com pequenos esclarecimentos no decorrer da conversa.

Não é de hoje que o relaxamento com a língua vem acontecendo, mas é recente o apoio oficial. Aliás, está do jeito que a politipatia brasiliense gosta. A deforma ortographica não foi aprovada à toa.

Há uns dez anos, uma senhora, dentro de um dos famigerados terminais de ônibus, me preguntou se "esse oimbus vai pro framboã" (sic) apontando para um que estava parado. Compreendi que ela quis dizer 'Flamboyant', o shopping center, mas só porque tinha apontado para o ônibus. Na pressa cotidiana, eu dificilmente teria podido ajudar, não haveria tempo para analisar o contexto.

Contextualizar é um exercício que pratico desde muito cedo, porque desde meninote eu philosopho a respeito da compreensão alheia. Eu não tinha certeza de que a interpretação que meu cérebro lesado faz de uma bola (por exemplo) é a mesma que os outros fazem, não sou clarividente para saber disso. Ainda que tomógrafos consigam detectar reações electroquímicas, ele não diz o que a pessoa está vendo, cabe muita interpretação ao neurologista... Se ele for experiente. Sei que o que sai de minha boca é mais ou menos o que qualquer um compreende, porque provavelmente há um mecanismo de correção para isso.

Mas nenhuma artimanha cerebral, mental, animal, philosophal consegue driblar um idioma desconhecido. Piora se este idioma não for catalogado. Esculhamba tudo se for um idioma criado pela indolência verbal, porque então só o grupinho ao qual o sujeito pertence o compreende. O mais interessante é haver gente achando lindo tudo isso. Eu gosto de ver sotaque e expressões regionais colorindo e enriquecendo a Língua, mas não é este o caso. Expressões regionais são resultantes de épocas em que não havia telecomunicação que não fossem carta e telégrapho, mas a maioria das pessoas era totalmente analphabeta, então tinham que inventar elas mesmas os nomes para o que fazia parte de seu mundo. Esses nomes, por meio de viajantes e escritores, viajavam pelo país. Não só isso, são nomes que uma região inteira compartilhava, não um grupo de um bairro.

Há uma diferença considerável entre criar uma neologia, que demanda um certo grau de intimidade com o idioma, e começar a falar de qualquer jeito por preguiça. O primeiro sabe o que está fazendo e o faz pela necessidade de comunicar com mais precisão o que o vocábulo comum falha. Por saber o que fez, sabe explicar o que é e não se esquece da relação palavra/significado padrão do país. O segundo simplesmente se acomoda, quase sempre não lê o que não o apraz e fica restrito ao seu círculo pessoal. Com o tempo deixa de usar as palavras da Língua e até se esquece delas.

Não, eu não estou teorizando, eu acompanho os acontecimentos há uns vinte anos ou mais, dar nomes aos bois seria falar também de conhecidos, amigos e parentes. Coincidentemente, com o desleixo para com a expressão, veio também o do entretenimento, passaram a tolerar mais facilmente o mundo-bunda e o mundo-cão da televisão, bem como aqueles 'sertanejos universitários' com refrões mais machistas do que os antigos e legítimos sertanejos; que já os estavam abandonando. Os jornais impressos (e depois online) não demoraram a ter os mesmos relaxamentos, abusando de erros crassos de ortografia, de conjugação, de coerência entre duas orações do mesmo texto, muitas vezes demonstrando que apenas copiaram e colaram uma tradução porca, sem se darem o trabalho de ler e escrever algo a partir do material recolhido, que daria até mesmo um texto mais enxuto e interessante, em vez de um atestado de fuga do mobral.

Antes de qualquer reação contrária, esclareço o que significa a palavra mais deturpada da história recente: hipocrisia. Hipocrisia é o fingimento social para ser aceitável em um grupo, não é 'pensar diferente do que eu penso' ou 'não fazer o que eu faria mesmo contra a lei'. Fui franco em cada linha que escrevi, como o sou em todos os meus textos, quem não acreditar faça-se o favor de procurar um blog que o agrade e não retornar, porque não serei hipócrita para ser bem aceito na patrulha do (esta sim, um ninho de hipócritas) politicamente correcto, dizendo que tudo o que sai da boca do cidadão é livre expressão de pensamento. Muitas vezes o que sai é o resultado da completa falta de raciocínio daquilo que se diz, por falta de hábito e visão de causa-conseqüência; aqueles não conhecem o cidadão, não saem de seus discursos e teorias.

Nosso povo está ficando preguiçoso, viciado em facilidades nocivas, o relaxamento verbal é só um reflexo disso. Como conseqüência, está tamém ficando obeso, com doenças normalmente relacionadas à idade avançada acometendo crianças, além de jovens aparentemente saudáveis. A preguiça está presente até na hora de comer, quando a maioria seria incapaz de detectar a troca do sal de cozinha pelo de amoníaco, até que começasse a queimar a laringe, porque mastigou mal, depressa e com a boca aberta, o que limita muito o trabalho do paladar.

Existem meios educados, civilizados à nobresca, de mostrar ao condidadão que ele cometeu uma gafe, eu me valho desses meios e quase sempre sou compreendido. Respondo, por exempo "Ah, o ônibus para o Flamboyant? É este aí mesmo". Eu não sou obrigado a deteriorar meu vocabulário, mas preciso ser cortez com a pessoa, porque ela não percebe que é massa de manobra nas mãos de demagogos. É dando exemplo que eu consigo a cooperação de que necessito. Cada um tem seu jeito de falar, mas o idioma que temos é um só.

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