16/12/2011

Guilhermino está morto


Guilhermino corre pela praça, com avós a observar, descobrindo entre os canteiros o mundo de cheiros e formas a se revelar. Seus sonhos são pueris, mas não menos dignos de investimentos, o menino não conhece tempo, só sonha em seus doces momentos.

Olhando uma joaninha em uma maria-sem-vergonha, imagina que seja um Fusquinha filhote, e dentro dele se sonha. Sonha seu mundo tão jovem, sem prazos para cumprir, sonha com passeios em família, todos juntos a sorrir.

Guilhermino aprendeu, no entanto, que coisas bonitas podem ferir, mesmo sem querer, e que mesmo pessoas bonitas e boas podem por-lhe em pranto. Os prantos do menino são breves e passam com o sono, onde mergulha em seu mundo maior, onde ainda consegue voar, sem tempo para chorar por uma sensação de abandono.

Guilhermino cresce sem perceber sua mudança de visão deste mundo, ainda é criança e não nota, as cores permanecem em tom sempre profundo. O menino sabe relevar, é boa companhia, tem sorriso pronto e olhar meio tristonho, parece estar sempre carente e gosta de abraçar.

À margem da aspereza dos que o cercam, o menino continua sonhando com o mundo que quer. Se distrai nos jardins da praça e nele mergulha sem ver o tempo passar. Guilhermino já entende o tempo e sabe das urgências que ele cobra, por isso hoje tem um relógio, só não tem mais desculpas para se atrasar; ainda se atrasa, de vez em quando.

À medida em que cresce, alguns começam a se decepcionar, ele não está se tornando o que querem que seja. O que ele quer ser, pouco importa, importa que as expectativas criadas sejam satisfeitas. Mas não perdem as esperanças de posar ao seu lado, com centenas de aduladores ao redor, para uma photographia de capa de revista. Guilhermino, pelo contrário, quer ganhar a vida na discrição, sem alarde e sem adulação. Não que não queira prosperar, longe disso, mas quer sair às ruas com a mesma tranqüilidade que tem agora, colocar esposa e filhos no carrinho para andar pela cidade. Não é por ser risonho que aprecia a notoriedade.

Já garoto, com afazeres de sua responsabilidade, Guilhermino se esforça em continuar sorrindo. O mundo não perdoa o crescimento, mas ele mantém vivos seus sonhos, sabe o que quer e traça o caminho que pretende seguir. Solícito, é sempre o primeiro a ser lembrado para um pagamento de última hora, uma compra em loja distante, um bom meio de poupar ida e volta de táxi, já que não se importa em andar de ônibus. Mas mudou, entretanto, a percepção de Guilhermino deste mundo ferino. À medida que cresce, mais gente se decepciona, se pergunta aonde foi parar aquela genialidade, a criatividade, e todos os talentos que demonstrava em tenra idade. Só não se lembram que já não tem tempo, que a convivência é cada vez mais escassa e que as responsabilidades o chamam a todo momento. Não que se importem.

Guilhermino, rapazote cada vez mais cobrado, atolado em responsabilidades. Mas ninguém acha que são muitas, sempre que cabe mais uma. Como só o notam quando está descansando, não acreditam que seu tempo seja tão tomado. Do pouco que ganha nos bicos que consegue, deixa metade em casa. Seus sorrisos não são mais os da infância, embora ainda sejam fáceis, mas seus sonhos estão firmes, os mantém em mente para quando puder pô-los em prática. Uns são sofisticados e demandarão anos de trabalho árduo, mas a absoluta maioria não passa de cousas simples, como ter seu próprio teto e decorar o lote com mistos de flores e ervas. Sonha, Guilhermino, se é o que mantém suas esperanças vivas, sem elas a morte em vida se anuncia.

Praticamente todos estão decepcionados com Guilhermino. Esperavam que já estivesse brilhando, fazendo o que gostariam que fizesse, trabalhando com o que gostariam que trabalhasse, sendo o que gostariam que fosse. Que importa o que ele quer? Nem isso ele conseguiu! Passam a cobrar, com ar de piedade, o sucesso que ainda não mostrou.

Guilhermino se afasta de muita gente, para evitar cobranças daquilo que não prometeu. Já é suficiente a dor de ver seus sonhos se desmanchando sem terem tido a chance de nascer, seus lutos se acumulando e perceber que só pode se apoiar sobre suas próprias pernas. Refaz o roteiro de sua vida para compreender onde falhou para tantos fracassos, aprendendo aos poucos que nem tudo depende só de sua ação. Sua luz se torna mais difusa e sua lente mais opaca, ele não atrai mais a admiração que tinha quando criança. Já é difícil manter um sonho aceso, as esperanças de obtê-los escasseiam com os dias passantes, sabe que não pode contar com absolutamente ninguém, pois vão cobrar-lhe o que já fez como se não tivesse tentado, mudança de rumos como se tantas vezes já não tivesse mudado, vão cobrar-lhe o sucesso que seus primos conseguiram e ele não, como se estivesse acomodado.

A idade já madura não perdoa Guilhermino. Nem pais mais tem, parentes há muito não vê, não conseguiu constituir família e todos os seus sonhos viu morrer. Não que não tenha lutado, feito o que estava ao seu alcance, mas as lutas ingratas foram as que cruzaram seu caminho. Guilhermino não sonha mais, não vê no horizonte mais do que uma névoa densa e escura, não enxergaria sua mão se esticasse um braço à frente. Ele trabalha para se manter e levar a vida até o fim, para não ser também acusado de covarde e desertor, de fracassado e mentiroso já o causam sempre que o encontram. Mas são encontros esporádicos e acidentais, que não delonga, os laços genéticos não têm força alguma quando a dignidade é atacada. A pouca dignidade que conseguiu preservar é tudo o que lhe resta. Não tem mais esperanças de melhorias, não alimenta mais os sonhos que mal nascem e já têm óbito, nem mesmo o choro consegue ter a contento.

Guilhermino faz o percurso diário, casa-trabalho-casa sem mudar a rotina. Perdeu o gosto por qualquer entretenimento, sente-se perdido em suas horas vagas. Os desenhos, que outrora fluíam em profusão, hoje estacionam na metade, sem linhas contínuas e sem qualquer acabamento, indo invariavelmente para o lixo. Só não perdeu ainda gosto pelas músicas antigas. Às vezes ouve algo melancólico, triste, para se assegurar que ainda não perdeu sua humanidade, é o que o mantém minimamente digno, ainda se importando com as pessoas e ainda não se importando em ser-lhes útil. Dorme cedo na solidão do casebre, acorda antes de o sol raiar.

Guilhermino dispensa protestos de piedade, dispensa adulação, dispensa até mesmo ofertas de ajuda para mudar de vida às custas de e perder sua dignidade. Ele não quer compaixão. Todas as manifestações de compaixão vinham acompanhadas de um "O que você fez de errado?". Na verdade já não tem certeza alguma do que quer, faz tempo que não constitui diferença alguma, só sabe o que não quer. Não quer ter o mesmo destino do garoto alegre e sorridente, porque este, pela sobrevivência de Guilhermino, está morto.

2 comentários:

Holly disse...

Nanael, meu "tio postiço", passei pra te desejar um Feliz natal! e tudo aquilo que todo mundo sempre diz! Mas somos pessoas diferentes, né? Meu desejo de natal pra você é mais profundo e quero que você conquiste tudo aquilo que realmente quer.
Um beijão! Amanda

Nanael Soubaim disse...

Amanda, sobrinha postiça, quero acima de tudo que o âmago de tuas aspirações seja também a geratriz da luz, com que iluminarás teu caminho e os dos ao teu redor.