Vila Trabalho é uma cidade serena, mas não uma cidade pacata. Em suas ruas sempre há gente, sempre há movimento. Quem trabalhou até á tarde serviu quem trabalhará até de madrugada, que agora os serve. O trabalho faz parte da vida do trabalhense. Desde criança vê seus pais chegando exaustos do serviço, mas nunca mau-humorados. Chegam aliviados de poderem descansar, não reclamam de terem se cansado. Uma vez em casa, aproveitam a família, os amigos, as tosqueiras do dia a dia que seus rebentos proporcionam.
É comum haver crianças nos locais de trabalho dos pais. É comum que aprendam com eles uma profissão. É regra já terem seu próprio dinheiro aos dez anos, por pouco que seja. Nenhum conselho tutelar pune quem ensina uma profissão a uma criança, puniria quem a deixasse à esmo na rua, mas um trabalhense não faz isto.
As crianças trabalhenses estudam e o estudo é considerado um trabalho. Quem trabalha com crianças, então, recebe adicional. Professores, enfermeiros, psicólogos, babás e assistentes sociais são uma elite. Porque seu trabalho não tem fim, mesmo quando chegam em casa, no fim do expediente, há amigos e vizinhos que aguçam sua índole laborativa.
A expectativa de vida do trabalhense é elevada. Raramente um se aposenta de acordo com a lei, eles preferem trabalhar até onde derem conta. Quando o corpo já não coopera como deveria, a vida útil e productiva lhes deixa de herança uma mente lúcida, que permite o trabalho intelectual. Aos setenta anos ainda fazem planos para o futuro. Não só planos, como estudos e cálculos para viabilizá-los. Todo trabalhense quer deixar à posteridade o que tem de melhor, o bom exemplo. Gente com mais de cem anos ainda trabalhando não é notícia, a não ser para a imprensa de fora. Músculos, ossos e sistema nervoso sabem agradecer por uma vida de trabalho árduo e regrado.
Quando as abelhas trabalhenses vão se divertir, é hora das corujas trabalharem.
Trabalhenses gostam de dançar e cantar. Bailes informais e de gala fazem parte do cotidiano, são verdadeiros pés-de-valsa. Com o apuro que o senso de prioridade lhes lega, sabem identificar uma boa música e um bom intérprete. Nem tudo o que é sucesso aqui fora tem êxito por lá, e vice-versa. Bares e restaurantes nunca estão lotados, mas sempre com boa ocupação. Todos se tratam pelos nomes, cordialmente. O gari que varreu e recolheu folhas, por falta de lixo nas ruas, durante o dia, é o cavalheiro que conduz sua convidada à noite. O trabalho é valorizado, ser útil é bem visto.
Ser mãe é uma missão respeitada e bem remunerada. Quer alguém mais útil à sociedade que uma boa mãe? São autoridades. As meninas aprendem desde cedo os ossos da maternidade, mesmo que não venham ter filhos o conhecimento terá serventia, mas também a não depender dos outros para se manterem. O treinamento começa com a menina ajudando a cuidar de crianças de colo, ainda que seja apenas segurando a mamadeira ou uma fralda, enquanto a mãe ajeita o rebento. Paralelamente isto evita os ciúmes que os recém-chegados consumam suscitar, pois quem ajuda a cuidar também é cuidado e recebe atenção. Embora mais intensivo para elas, os meninos também têm que ajudar, pois mulheres não engravidam por brotamento.
Na Vila Trabalho há poucos chaveiros, pois há pouco mercado para eles. O que fazem é trocar fechaduras danificadas por mau uso, pelo tempo, substituir chaves perdidas. Fechaduras com segredos e toda a parafernália a que nos acostumamos, lá não existem. Onde o trabalho tem o status que por cá damos à malandragem, criminalidade é notícia vinda de fora.
Foram séculos de trabalho para ser o que é hoje. Conspirou a favor o facto de nunca ter despertado interesse de turistas nem de políticos, de estar em lugar de difícil acesso e ter poucos recursos naturais. Vila Trabalho se fez por si mesma, nem sempre teve papel-moeda suficiente, então as transações se davam com base na confiança, que foi cuidadosamente cultivada pelos seus cidadãos.
Não tente procurar Vila Trabalho em reportagens, no máximo vais encontrá-la em trechos da literatura oficial. Pois não desperta interesse político. Seus vereadores têm pouco o que fazer, além de ajudar o prefeito a administrar, pois um povo civilizado e comprometido com a coletividade não precisa de muitas leis, na verdade mais de três quartos delas foram abolidas com o passar dos anos, pois se tornaram supérfulas e obsoletas.
Poucos viajantes não para Vila Trabalho, bem menor ainda é o turismo, pois a única estrada que lhe dá acesso não passa por lá, vai pra lá. Só vai quem realmente quer ir. Mas a cidade não tem as atrações que a maioria julga imprescindível para um bom turismo, e a cidade não as quer.
Os dois únicos jornais diários não têm ligação com os grandes jornais, as três emissoras com freqüência trabalham em conjunto. Dão poucas informações a respeito do lugar e só quando são solicitadas. Mas há trabalhenses estudando e trabalhando pelo mundo e eles servem de correspondentes. É uma situação confortável, é uma cidade invisível que sabe tudo e da qual quase nada se sabe, senão por photographias de satélite e relatos de viajantes, que poucos se importam em ouvir. Nem a criminalidade reinante no país se interessa, pois não há mercado para uso recreativo de entorpecentes.
Recreação em Vila Trabalho é farta, mas não tem anúncios escandalosos, apelativos, nem são excludentes, são para a família toda. Porque foi na família que Vila Trabalho encontrou o gérmen de seu sucesso. E o sucesso de Vila Trabalho está intimamente ligado à discrição do trabalhense. Discrição não dá ibope. Na verdade, eles não diferenciam trabalho de diversão. Só tratam de ter suas pausas regulares ao longo do dia, para não serem traídos por seu amor ao labor.
Como regra de um bom trabalhense, lá se dá o melhor de si o tempo todo, é ponto de honra. Logo a mente do cidadão está alerta e bem calibrada. É natural encontrar um doutor de alguma área em qualquer lugar, crianças falando vários idiomas com naturalidade nacional, às vezes rodinhas discutindo cada um em um idioma, para ajustar melhor os neurônios. A internet foi uma bênção, pois agora eles podem trabalhar para empresas distantes sem sair de sua amada cidade. Mais uma vez eles sabem do mundo que não sabe deles. Levam a sério o que fazem, mas não a vida que levam. Por isto mesmo poucos programas de televisão vindos de fora têm índices significativos de audiência. Por isto mesmo Vila Trabalho permanece em seu lugar, crescendo sem inchar, sem chamar atenção.
Trabalhense que se preze sabe aproveitar a vida sem depredá-la, para tanto, nada melhor que se sentir útil. Trabalhense útil é trabalhense feliz.
2 comentários:
Muuuuuuuito interessante. Boa semana.
O apreço pelo trabalho honesto é uma de minhas excentricidades.
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