17/01/2009

Não sou ela; 3 de 3

O Responsável pelo albergue chega à casa dos Aldrin Foster. Quer falar com os três, mas principalmente com Audrey. Foco na garota de salopete xadrez e blusa branca. Entram e vão directo ao assunto, o albergue tem conseguido mais doações desde que ela saiu nas páginas dos jornais e na tevê. Ele é franco, avisa do mundo que é o das celebridades instantâneas, de toda a sujeira e da nojeira que ele mesmo viu pessoalmente, há mais de dez anos e trinta quilos atrás...

- É uma fogueira de vaidades como não existe em nenhum outro ramo, minha filha, a não ser na política. Mas graças à sua exposição, nossas despensas estão abarrotadas, nossas contas estão rigorosamente em dia, enfim. Seria muito bom para a nossa causa se você alçasse esse vôo.

- Eu compreendo, mas é que eu não tenho mesmo nenhuma queda pela fama. Não pense o senhor que eu fico presa à minha casa, eu estou aqui de livre arbítrio. Sou caseira, não gosto de baladas, de aparecer e de todas essas coisas que as pessoas se matam (literalmente) para fazer. Já pensei em ser freira, só mudei de idéia por causa do albergue...

Aos pais isso alivia, mas eles contam da conversa que tiveram com sua avó, sua preocupação com o futuro e tudo mais. A convencem a fazer uma sessão de photos para divulgar os trabalho do albergue. No dia seguinte ela está no estúdio improvisado, com pantalonas verde escuro e uma camisa curta de gola careca. Dão-lhe outras roupas para o trabalho. Ela consegue disfarçar o desconforto. Em uma semana está dando uma entrevista na tevê, em prol do albergue. Em um mês vira garota-propaganda da loja onde trabalha. Em um ano é uma celebridade que, ao contrário da imensa maioria, tem muito conteúdo a oferecer. Não gosta, mas tira de letra. Sempre ressalta, porém, que não é Audrey Hepburn e não faz questão de sair de Rochester, sua amada "Rochacha", como lhe disse uma Audrey brasileira. Esta, com cara de psicóloga e uma longa lista de micos pagos em público e em casa, costuma visitar a homônima para tricotar e lhe acalmar os ânimos, quando inventam alguma para vender revistas bobas. Mas o albergue está de vento em popa, até colaborando com creches e asilos. É o que motiva a moçoila. Se lhe perguntam por que ainda não tem uma filmagem acertada, responde...

- Eu não sou Audrey Hepburn. Estou neste ramo por causa do nosso albergue, não para estrelar um filme.

- É tão estranho ouvir isso! Quer dizer, você tem idéia da fila de artistas esperando por uma primeira chance? É muita gente quase implorando para ter um papel e você não se importa!

- Este é o sonho deles, não o meu.

Já não dá para levar a vida sossegada de antes, é pelos necessitados que expõe sua imagem. De um deles, abandonado pelos filhos, ajuda a cuidar e fazer curativos. Muitos não acreditam que ela seja tão certinha, acreditam que ninguém gosta de certinhos e a pose é um artifício para vender o peixe. Embora não saiba, câmeras a seguem o dia inteiro à espera de um deslize. Só passam raiva. A educação austera moldou toda a personalidade de Audrey. Plano geral. Ela ainda anda naquele Caprice 1980, que já ficou marcado, todos sabem que ela está chegando quando o vêem, embora já lhe tenham oferecido carros mais modernos.

Audrey vai morar com a avó. Após um mês em coma induzido, quando viu o edifício em que os pais estavam desabar. Ninguém sobreviveu. Agora precisa mais dos albergados do que eles de si. Por influência de Irvana, passa a aceitar convites para comerciais e se torna de facto uma estrela. A imprensa comemora intimamente as mortes de Kate e Orson, por conta disso. Também por sugestão da avó, se filia à fundação da diva, o que dá um fôlego grande ao albergue. Audrey trabalha às vezes dezessete horas por dia, encontra consolo e esperanças no trabalho. A avó a obriga a tirar uma semana de férias pelo menos uma vez por ano, longe dos holofotes, mas mesmo de férias se ocupa com algo, como cantar, compor, qualquer cousa que lhe acalente o coração. Reclusão não lhe passa pela cabeça, mas os motivos para sair ficaram menores, além do quê se empenha de corpo e alma naquilo a que se propôs. Cinco anos depois da tragédia, Audrey está sozinha. Se muda para um pequeno apartamento ao lado do albergue. O glamour que só público vê, não reflete a vida franciscana que passou a levar. Só tem aos albergados para cuidar, ganha dezenas de vezes mais do que precisa para se manter, não tem o mínimo interesse pelos excessos do americano típico. A imprensa explora esse estilo de vida, programas de auditório ganham fortunas com o patrocínio a debates televisionados sobre o tema.

Audrey atende à porta, usando um longo vestido azul claro de gola em "V". Vê aquele homem de pólo branca e calças pretas. Meio detrás da porta, olha para ele longamente, amolecendo aos poucos. Close no rosto, no brilho dos olhos, nos lábios reticentes em soltar algo. O presidente da fundação em que se transformou o albergue apresenta-lhe o filho, seu braço direito. Mas vê que precisa ficar calado até os dois saírem do transe. A moça pede que entrem, diz que há um bolo recém assado, biscoitos no armário, suco na geladeira, almofadas aos montes entre as poltronas. O que mais dizer? Se casam pouco antes do natal, no natal seguinte ela já amamenta uma menina. Não pretende lhe dar uma educação tão austera, acha que não cabe, mesmo assim será uma mãe austera. Leva a pequena tanto ao albergue quanto às filmagens dos comerciais. O apoio de um marido afim facilitou seu trabalho, adoçou as lembranças da família e a fez aceitar o primeiro papel no cinema. Os repórteres têm a coletiva que pediram de joelhos, literalmente...

- Então foi Edward quem a convenceu a ser actriz?

- Sim, foi. Ele me ajudou a planejar tudo de modo que não comprometa a minha vida lá fora.

- Seus pais apoiariam sua carreira?

- Pergunte a eles. Mas não teriam nada contra um trabalho honesto. A educação que me deram foi um excesso de zelo, não tinham ressalvas contra o cinema.

- Vai adoptar o sobrenome artístico Hepburn?

- Seria uma falta de respeito. De jeito nenhum. Podem me chamar de Audrey Foster.

A coletiva dura o tempo programado e nenhum segundo a mais. Agora ela vai ensaiar seu papel, para depois voltar para casa e se dedicar à família. Este sim, era e ainda é o seu sonho. Sabe que as comparações de agora em diante, com a fidalga, serão contínuas. Mas foram eles que pediram pelo seu ingresso no cinema.

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