03/01/2009

Não sou ela, 1 de 3

Close na mãozinha do bebê. Cena em branco e preto. É batizada Audrey Aldrin Foster. Os pais saem felizes com a criança ao Chevrolet Caprice recém comprado. Em dois anos é tudo o que lhes resta. A empresa vai à falência por fraude e toda a directoria fica marcada, inclusive os membros inocentes. O pai de Audrey é interrogado e solto em seguida, passam a viver do salário de professora de Kate, ele vira dono de casa.

Cena colorida. Audrey completa dez anos, magra como só ela, é educada pela própria mãe da maneira mais austera possível. Dois desempregos em menos de um ano fizeram dos Aldrin Foster muquiranas incorrigíveis, mas a educação da filha de modo algum é negligenciada...

- Audrey, preste atenção! Deixe para sonhar depois, agora é hora de executar.

Balé, música, philosophia, prendas domésticas, do-it-your-self, tudo o que pode preparar a menina para a vida lhe é ensinado em regime de quase internato. Passam a levá-la para albergues onde actuam como voluntários, para ela aprender o valor do pouco que tem. Três brinquedos simples são o que ela tem, mas lhe é dito sempre que há os que brincam com caixas de sapatos, lembram que os siberianos vivem no gelo, onde não se brinca.

Audrey com doze anos. Falsa magra. A vida dura lhe deu pernas e glúteos desenvolvidos, contrastando com a cintura fina. Jeans e camiseta solta, para não chamar atenção, ainda assim sofre um incidente, um mendigo a ataca. Estava a menina contra o sol e a luz desnudou-lhe a silhueta, sai do episódio com seios à vista, logo socorrida pelos pais e um policial. Desta vez não é reprimida pela mãe, mas recebe uma advertência carinhosa...

- Minha filha, ser bonita é muito ruim num mundo materialista. E você é muito bonita. Tome cuidado, eles não perdoam as pessoas belas. Vão te invejar, tentar se aproveitar de você, e se você não quiser fazer esse jogo, vão te tratar como inimiga. Não são só os mendigos, é todo mundo, Audrey.

Mãe e filha se entreolham, câmera parada, foco de luz nas duas. Audrey começa a chorar e é acolhida. Mas mesmo assim vão ao albergue nesta noite, os mendigos de lá não são maníacos sexuais, estes não suportam ambientes respeitosos. A garota vai de vestido jeans longuete bastante folgado. Alguns voluntários começam a comentar como ela está se parecendo com a diva do cinema. Kate e Orson temem que a filha se envaideça, traçam planos mais austeros para sua educação, embora a vontade seja lhe encher de presentes. Mas têm visto o quanto isso tem estragado as crianças, que se tornam tiranas dentro de casa. Teatro, entretanto, lhes parece um bom entretenimento para ela.

Debute? Audrey não tem tempo para pensar nisto. Trabalha no estoque de uma loja de auto peças, embora mãe e pai estejam empregados há dois anos e meio. Mas o padrão de vida da família permanece o mesmo, assim como o Caprice 1980 seis cilindros. Mesmo assim tem festinha surpresa, quando chega em casa. Pais, parentes e colegas de trabalho não a esqueceram. Embora não saibam se estão exagerando nos rigores, mesmo achando que às vezes exageram, esses mesmos rigores docilizaram e prontificaram a índole da unigênita. Cabelinho curto, para não atrapalhar e economizar com os cuidados, ela se torna cada vez mais parecida com Hepburn. Todos notam e comentam, enquanto comem o bolo cor de rosa e tomam suco de maçã ou uva. Álcool em casa, só vinho, em pequenas porções e poucas ocasiões. De tanto serem tão rigorosos com Audrey, eles se tornaram também consigo mesmos.

Audrey, sempre ocupada, consegue tirar a habilitação. Desenvolveu uma disciplina marcial ao longo da pouca vida que teve até agora. Paralelamente, as semelhanças com Audrey Hepburn já são inegáveis. Volta para casa com os pais no banco de trás. Dia claro, poucas e tênues nuvens no céu, ela dirige devagar.

A sogra. Irvana chama filha e genro para uma conversa séria. Luz dura apenas na saleta onde estão as poltronas de vime. A sexagenária fala com gravidade...

- Eu estudei em colégio interno durante dez anos. Nós tínhamos vida social, apesar de as pessoas acreditarem que não. Gostei muito de ver vocês dois tirando Audrey das ruas, das más companhias, et cétera - pausa para pensar. Mas eu acho que vocês estão exagerando muito. Irmã Dayse ainda é viva, contei à ela sobre nossa garota e ela me perguntou o que Audrey fez de errado. Só trabalho e estudo, trabalho e estudo, trabalho e estudo. Kate, eu tive vida social, eu tive namoros, eu tive férias e tudo mais. Vocês estão preparando minha neta não para a vida, para para a parte dura da vida. A vida tem outras partes, se ela não souber lidar com elas, vai fracassar. Como esperam que saiba lidar com amigos se só os vê no ambiente de trabalho, onde não há chances de ela ser a garota que ainda é? Ela sabe lidar com os homens? Quando ela foi ao cinema, pela última vez?

- Well... She... Never.

Irvana faz uma expressão dura, a luz acentua as sombras e explicita seu aborrecimento. Neste momento Audrey chega do trabalho, exausta. A luz fica mais suave e ilumina todo o cômodo. A avó nota o modo como ela anda, altiva, delicada, como se deslizasse sobre o piso de tacos. O uniforme, camisa azul com crachá e calças pretas, não esconde o estágio avançado de sua formação física. Apesar de tudo, a moçoila é carinhosa e receptiva com a avó, como é com os pobres do albergue. Após o banho a integram à conversa, onde decidem que qualquer que seja o rigor, não poderá privá-la da vida social que ela nunca teve. Amanhã, domingo, após o meio turno de trabalho, a levarão ao cinema...

- Wow... Cinema? Puxa...

A cara de surpresa e perplexidade provam que ela não tem idéia do que fazer em uma sala de projecção. Na verdade, sequer tem uma roupa propriamente de passeio...

- Que tal aproveitarmos, nós quatro, para comprar roupas de moça para você?

- Mas eu tenho muitas roupas. São mais de dez peças.

No dia seguinte, após o almoço, vão os quatro ao shopping. Audrey sabe dirigir mais economicamente, então ela os leva. O deslumbramento comprova que ela é estreante na vida fora das obrigações.

Continua.

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