10/01/2009

Não sou ela; 2 de 3

Os amigos riem quando Audrey diz que jamais entrou em um shopping center, foi estratégia dos pais para resistirem à cultura consumista de seu povo. Pois lá está um deles, logo à frente, se avolumando na moldura do para-brisas.

Plano geral no estacionamento, da esquerda o Caprice surge andando devagar e pára. Um Toyota Corona verde limão com um barbeiro à bordo está bloqueando a passagem. Quando ele sai, Audrey consegue estacionar.

Câmera acompanhando os quatro. Audrey usa um macacão de brim cru e uma camiseta branca bem folgados. Quem estava ao volante, passa a ser guiada. Kate acolhe a filha pelos ombros, aquela é a maior quebra de rotina que ela já sofreu. Quando entram, ela se deslumbra. Close no rosto, duas espinhas muito pequenas na bochecha esquerda são disfarçadas pela maquiagem muito leve. Ela balbucia exclamações de espanto. Na realidade, poucas vezes saiu de Rochester sem ser a trabalho. Nova Iorque a aterroriza, aquele shopping center é intimidador. Gosta de cidades pequenas, mas ironicamente é uma novaiorquina. Um detalhe que ela não conta, é que odeia refrigerante. Nas poucas vezes em que cedeu e tomou um gole, arrotou como se tivesse tomado um litro, uma grosseria pela qual não se perdoa.

Orson encontra de cara uma loja de moda jovem, mas não sabe se a filha vai gostar das aberrações que vendem. Ela torce a boca assim que entra. Uma placa enorme onde se lê "ATITUDE" em cima as peças que mais vendem, como calças com calcinhas fio-dental propositalmente costuradas meio para fora. Ela logo argumenta com a vendedora...

- Senhorita, eu tenho dezenove anos! Eu gosto de coisas mais simples, discretas... Entende?

A ladainha de que muitas artistas usam aquelas peças em seus shows não a convence. Peregrinam até encontrarem uma loja que lhe pareça aceitável, mas logo descobrem que peças de bom gosto são relativamente caras, pois não são cortadas às milhares de uma só vez. A moçoila se apaixona perdidamente pelas estampas xadrez. Cigarretes, corsários, vestidinhos, blusas, calças longas, saias até os joelhos e muito mais. Seu sorriso ilumina toda a loja, enquanto pais e avó conversam. Câmera atrás deles, com Audrey e a vendedora aparecendo alegremente a todo momento...

- Que menina incrível! Como é charmosa!

- Temos que admitir, ela precisava mesmo de roupas novas. será que ainda dá tempo de ela aproveitar a juventude?

- Não do jeito que poderia, Kate. Mas acredito que ela consegue ficar mais leve. A propósito, e a faculdade dela?

- Ela já mandou - diz Orson - cartas para algumas. Mas faz muito pouco tempo, ainda não responderam.

- Acho que não terá problemas, ela é bastante culta. Mas agora, mamãe, a senhora me deu uma preocupação. Ela realmente não saberia lidar com os colegas fora da sala de aula.

- Foi o que pensei. Vocês dois sabem bem da malícia e da promiscuidade que há em ambientes com muitos jovens, ela não tem disso...

São interrompidos por gritinhos de contentamento do tema de sua conversa. Ela se olha no espelho sem acreditar no que vê, e ama o que vê. O vestidinho médio de alças com estampa xadrez preto sobre fundo vermelho a encanta. A vendedora não hesita em dizer "Você é a cara de Audrey Hepburn!". De frente, até lembraria o filme "A princesa e o Plebeu", se tivesse visto algum filme da musa. Uma colega alta, loura, de minissaia e blusinha curta, aparece. Reconheceu-a de imediato...

- Audrey! Meu Deus, o mundo vai acabar! Você em um shopping!

- Anna? Nossa, quase não te reconheço sem o uniforme! Estou escolhendo roupas novas.

À cabeça da moça logo vem uma imagem de conservadorismo, que se desfaz ao se lembrar do trato que a colega tem com os integrantes de minorias, na loja. As duas, frente a frente, são um contraste gritante. É apresentada à família, conversam um pouco e se despedem. Saem com algumas sacolas e vão ao cinema. Vêem cinco filmes, dois de Audrey Hepburn.

Audrey dorme se lembrando dos filmes. Agora sabe que realmente e o quanto se parece com a estrela. Não quis ficar muito mais tempo, gosta de dormir cedo e aquela cidade realmente a oprime.

Audrey passa a ser vista, quando não de uniforme, com aquelas roupinhas de boa moça que ganhou. Passa a receber amigos em casa, eles constatam o fineza de seus modos, bem como a espontaneidade e a alegria que exala. Chega a ser cansativo ser comparada à actriz. Passa a ler sobre ela, aluga filmes sobre ela, descobre cousas muito boas a seu respeito, mas não é Audrey Hepburn. Nem mesmo tem vontade de ser actriz, gostava muito do anonimato que tinha há até poucos dias.

Orson descobre photos de Audrey na internet, publicadas sem autorização. Fazem comparações entre ela e a actriz, em algumas só mesmo o pai da moçoila sabe dizer qual é a sua filha. Felizmente não dão endereço, nome completo, nem e-mail. Mas um colega dela, pensando que está ajudando, fornece os dados. No dia seguinte o telephone fixo toca, um jornalista quer entrevistar Audrey. Kate, fica encantada, mas trata de filtrar...

- Olha, eu não sei quem deu nosso endereço e nosso número, mas não foi com nossa autorização. Audrey é uma moça ocupada, ela estuda e trabalha em tempo integral, não tem muito tempo livre.

Sem querer, passa dados preciosos para o jornalista, que deduz facilmente o perfil da garota. Com o que já sabia consegue escrever algumas laudas para a edição de amanhã, que cai nas mãos de amigos e da gerência da loja. Logo Audrey, a contragosto, adquire uma fama local. Tudo bem, consegue manter sua vidinha calma e pacata, mas se contém fora de casa. Dentro dos muros, porém, se solta, faz caretas, dança e canta. Quando vão ao albergue, há uma equipe filmando o local, a repórter a vê com suficiente antecedência para prevenir o câmera e aprontar uma surpresa. Filmam Audrey discretamente, enquanto ela ajuda a fazer curativos, dá banho em uma criança e ajuda a servir a sopa da noite. Está em um conjunto de saia branca com xadrez azul e blusa de mangas curtas. A meiguice em pessoa. Filmam o especial carinho que tem com as crianças, o beijo que dá em uma delas e assim por diante. Muito tocante, igualmente lucrativo. Audrey é uma voluntária valiosa. A repórter se anuncia e, por ter permissão prévia da administração, começa a fazer perguntas...

- Venho aqui desde criança.

Kate e Orson logo percebem a deficiência da filha, por falta de malícia diz tudo o que ela quer saber sem precisar falar muito. Eles vão ter com a repórter e conseguem que ela não escancare a intimidade da filha, mas logo de manhã o telejornal anuncia o "Novo Anjo das Crianças". As cenas são preparadas de modo tal, que ficam tão comovedoras, que para os fãs é como se Audrey Hepburn ainda estivesse viva sobre a Terra. No trabalho, Audrey é assediada pelos fornecedores, já que trabalha onde a clientela não tem acesso. Está assustada.

Continua.

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