24/02/2021

O risco é diferente para quem vive de vender

 


            Não pense que é má vontade do Seu Pedro da esquina, tampouco que aquele teramercado multinacional do tamanho de uma cidade está mancomunado com o governo illuminati dos alienígenas atlantes do Alasca austral para prejudicar os vendedores de paçoquinha que trabalham nos semáforos. Existe um fator, de inúmeros, que as pessoas ignoram quando descem a lenha em um negócio, que é o risco. Sim, é verdade que a vendinha do Seu Pedro poderia ter artigos sofisticados e recém-lançados no mercado internacional, afinal o comércio electrônico facilitou deveras o acesso de virtualmente qualquer um a qualquer coisa. Comprar poucas unidades de cada coisas e receber tudo em um só pacote é o fino da comodidade, mas sempre para o consumidor final, para revenda as coisas são mais complicadas, apesar da facilidade tentadora de ter coisa fina no armazém. Em tese, mas pura e simplesmente em tese isso seria possível, na vida real a vaca não mastiga de boca fechada. Mesmo que ela pudesse provavelmente não o faria, não tem necessidade e nem genética para fazer isso.

 

            Para um cidadão comum, que deseja apenas algo para uso pessoal pode se dar o luxo de comprar algo que jamais dará outro retorno que não seja emocional, como um besouro roxo de borracha de algum anime obscuro feito em pequeníssima escala, praticamente tudo é viável. O problema vem quando tu precisas obter retorno disso. Mesmo que seja um personagem que é um mestre do último grau da mais alta tradição de guerreiros mágicos da trama mais bem bolada do mundo, existe o risco de a demanda não ser suficiente para justificar a compra e o producto ficar meses, talvez anos parado e empoeirando no seu estoque. E se o recurso investido naquela compra for necessário nesse meio tempo? Vai fazer o quê? Dar desconto? Anunciar? Uma promoção de pague quatro e leve cinco? E quem vai querer ter cinco bonequinhos de um mestre besouro roxo? O seu público é realmente interessado a esse ponto no que tu compraste? Já sentiram o cheiro de azoto do prejuízo? Uma tentativa desesperada de revenda pode custar mais caro do que o valor eventualmente recebido do comprador… se houver um...

 

            Agora voltemos à venda do seu Pedro. Para repor seu estoque ele precisa recorrer aos atacadistas mais próximos, e dentre eles escolher os que oferecem as melhores condições. Há productos que têm muita saída, mas oferecem pouca margem de lucro, enquanto outros saem menos e compensam permitindo cobrar alguns reais a mais do que se pagou ao fornecedor, simplesmente porque o consumidor está disposto a pagar por isso. O real a mais que ele pode cobrar pelo refrigerante compensa os centavos a menos que fazem a alegria do freguês que leva o leite das crianças. É assim que Seu Pedro mantém o equilíbrio frágil entre custo e retorno. O dinheiro que entra não é só dele, a maior parte fica com fornecedores, prestadores de serviço e o governo. Se ele consegue ficar com um terço do faturamento bruto, está cobrando caro pelo que revende. Daí o motivo de ovos de páscoa custarem tanto mais do que uma barra, não é só porque dão mais trabalho para fabricar. Eles pagam o que as balinhas tão populares deixam a desejar.

 

            Mas se certos productos dão tanto retorno a mais, por que ele simplesmente não vende só deles e esquece os que dão muito trabalho e pouco lucro? É porque esses baratinhos são os que chamam e até fidelizam o freguês, é por eles que as pessoas entram e saem da vendinha o dia inteiro. Ninguém vai comprar salmão defumado uma ou duas vezes ao dia, mas qualquer saída pode ser motivo para pegar um saquinho de salgadinhos. E enquanto escolhe o salgadinho, o freguês vê outras opções ao seu alcance, fica sabendo de algumas novidades e pode voltar depois para comprar aquele acepipe de maior valor agregado, e que vai pagar melhor pela hora de trabalho do Seu Pedro. É um expediente de que ele pode lançar mão porque sabe que ambos têm boa saída e justificam investir seus escassos recursos, porque darão retorno, o que ele não pode fazer é ousar demais sem a perspectiva de obter o retorno necessário em tempo hábil.

 

            Vamos exemplificar com três casos na mesma situação. Aquele hipermercado badalado tem centenas de milhares de itens à disposição a preços atraentes. Como consegue? Por ser uma rede gigantesca, os lotes comprados podem ser desmembrados em quantidades menores para cada loja, que sozinha precisaria comprar de um atacadista que também é um revendedor, às vezes de distribuidores maiores que revendem da fábrica. Uma rede multinacional compra directo do fabricante, pagando não só o preço da fonte, como recolhendo os impostos uma vez só e distribuindo essa vantagem entre seus postos de venda, que assim podem ter estoques comparativamente discretos e vender a preços mais baixos do que muitos pequenos atacadistas, tanto que alguns mercadinhos pequenos recorrem a essas lojas para poderem oferecer algo mais sofisticado à sua clientela local de vez em quando, sem correr os riscos de uma compra grande para a qual sequer teria fundos. Já tivemos uma vendinha no início dos anos 1980 e fazíamos isso, mas é conversa para outro texto em tempo oportuno. Para essas grandes redes não é pesado bancar uma grande campanha publicitária em grandes veículos de comunicação, bem como pagar cachês a artistas famosos em locações distantes.

 

            Por outro lado, o comando pouco pessoal e centralizado de uma rede multinacional dificulta a conversa com pequenos artífices e indústrias tradicionais locais, inclusive porque eles não têm condições de fornecer a quantidade necessária a um cliente de tamanho porte, também por isso algumas lojas dessas redes têm artigos que as outras não têm. Lembram-se daqueles suspiros duros em cores pastéis, os doces de abóbora e batata-doce em forma de coração, as bananadas com brinquedinhos espetados nelas e outros que fazem parte da infância de tanta gente? Dê uma olhada no tipo de embalagem que usam, geralmente uma caixa estampada de forma extremamente simples e rudimentar, e saberão que é uma indústria de pequeno porte, talvez uma empresa familiar. Ainda são fáceis de encontrar em pequenos comércios na periferia e no interior, mas fornecer dez mil caixas em uma semana está totalmente fora de questão. Mas geralmente é coisa que a clientela deles não procura, oferecer artigos normalmente caros a preços convidativos é o mote e diferencial deles, também por isso podem se arriscar mais. Se uma loja dessas redes vende mil itens a menos em um mês, bem, é só uma baixa de demanda em um mês específico. O regente vê as planilhas, confere o estoque, faz uma promoção e decide depois se volta ou não a comprar aquele producto.

 

            O próximo caso é o de supermercados locais, que dificilmente têm mais de cinco lojas e todas elas em bairros mais afastados. Essas empresas dificilmente falam com os grandes fabricantes, que têm os productos de maior saída e lucro agregado, que normalmente já trazem consigo material de marketing e se vendem sozinhos, elas recorrem para isso aos grandes atacadistas e para o restante aos fabricantes locais. Com isso ainda precisam pagar um mesmo imposto duas ou três vezes, o que obriga a reduzir a margem de lucro e ainda assim vender um pouco mais caro, mas como alguns fornecedores estão por perto, a logística ajuda a reduzir custos e prazos, o que faz com que productos da cultura tradicional local estejam presentes em suas gôndolas, dividindo espaço com algumas novidades do mercado que ainda estão longe das prateleiras das vendinhas de esquina. Não que a administração seja rente à clientela, mas é mais pessoal e geralmente os fregueses mais assíduos conhecem muitos funcionários pelo primeiro nome, tornando a comunicação mais ágil e directa com a gerência.

 

            Como o orçamento é bem mais apertado, a publicidade e as promoções são muito dirigidas, se utilizando de carros de som e gráficas locais; muito de vez em quando um anúncio no rádio, raramente usam a televisão e ainda assim só em horários mais baratos. Com um estoque relativamente grande e diversificado, podem se dar o luxo de arriscar mais, testar de vez em quando productos que normalmente não estão na despensa de sua clientela, claro que em pequenas quantidades e a preços menos convidativos. Mas o fator novidade e exclusividade, já que supermercados menores quase nunca têm condições de fazer isso, age como chamariz para a clientela, que mesmo reticente na compra daquela coisa exótica acaba levando outros productos. É uma clientela emergente, por assim dizer, mas que ainda faz as contas antes de colocar alguma coisa no carrinho, então a persuasão do vendedor precisa ser mais forte e directa. Aqui a venda de mil unidades a menos por mês já tem algum drama, pois compromete mais o faturamento mais magro, mas não é o fim do mundo. Um eventual prejuízo dessa monta pode ser absorvido e raramente demanda punições mais severas à gerência de cada loja.

 

            Por último aquela pequena venda de bairro, que normalmente vive de fregueses que moram a no máximo três quadras de distância, e tem no carisma e na pessoalidade do comerciante o seu único recurso de marketing. Por economia, mas muitas vezes também por tradição, os productos são embrulhados com papel grosso ou até mesmo com jornal velho, e isso acaba sendo um diferencial que denota proximidade com a pessoa do comprador. É comum o freguês se sentir mais em casa lá do que em sua própria casa, e ir comprar qualquer coisinha só para bater papo com o comerciante por uma hora ou mais. Não é raro ele morar no segundo pavimento ou, no caso da maioria, nos fundos de seu comércio de poucos metros quadrados, estacionamento, quando há, é a garagem de seu próprio veículo de trabalho. Todo o estoque muitas vezes é só aquilo que está exposto à venda, junto com umas poucas caixas distribuídas pelo estabelecimento para reposição, até a hora de fazer novas compras. E por falar nisso, os atacadistas mais próximos são seus principais fornecedores, quando não os únicos. Vender bolos e biscoitos feitos em sua própria cozinha também é comum. Como os intermediários são muitos, a taxação real também é aplicada mais vezes e os custos por unidade são muito mais altos. Em contrapartida ele oferece além do aconchego inexistente em grandes redes, productos de pequenos fabricantes que muitas vezes também são pequenos negócios familiares nas imediações da cidade, ou coisas que saíram de moda há muito tempo e os CEOs de multinacionais, isolados em seus edifícios envidraçados, jamais arriscariam para não arranhar a imagem de suas marcas; imagine só, um Fusquinha de plástico soprado cor-de-rosa ao lado de um carro monstro superagressivo com controle de mil funções e câmera na frente! Pois aqueles brinquedos de plástico soprado ainda podem ser encontrados em muitas dessas vendinhas.

 

            Nesse tipo de estabelecimento raramente há uma novidade, praticamente só productos sazonais como em época de páscoa, festas juninas e natal, e mesmo assim só das marcas mais vendáveis e em pequenas quantidades, pois até o espaço físico é escasso. Como são caros em relação aos preços dos supermercados e hipermercados, o freguês compra porque já está lá mesmo e porque não quer se deslocar e enfrentar o trânsito, e nem quer esperar pela entrega. Por todas essas limitações, o risco que esses estabelecimentos podem correr é mínimo. Sim, é possível pegar um empréstimo para ter capital de giro e arriscar, mas isso exige um planejamento que nem todos têm, simplesmente porque a maioria deles só quer manter seu ganha-pão e criar suas famílias. Ambições expansionistas não interessam a todo mundo, ao contrário do que universitários bitolados pensam. Se uma vendinha comercializar mil unidades a menos em um mês, ela pode simplesmente não abrir mais as portas. Colocar uma quantidade razoável de productos diferentes não só toma o lugar da mercadoria que a freguesia sabe que vai encontrar lá, como pode consumir todo o recurso de que o dono dispõe, deixando-o refém de um sucesso incerto que, se vier, pode demorar muito mais do que o salutar para seu negócio.

 

            Aquela tradicional vendinha de esquina é um comércio de nicho, muitas vezes com toda a equipe se resumindo a uma só pessoa, que acaba se tornando ponto de encontro de uma freguesia restrita à qual influencia e pela qual é influenciada, a ponto de o inventário ser a cara e praticamente definir quem mora naquelas imediações. Claro que as compras do mês, para encher a despensa, são em comércios grandes que oferecem preço e variedade como atrativo, mas a conveniência e facilidade de acesso transformam a vendinha no salva-vidas para reposições e compras de emergência, e é claro para aquelas coisas que simplesmente não existem mais em grandes centros, como a maria-mole em forma de língua coberta com côco ralado, que veio em uma caixa de cinqüenta unidades com estamparia rudimentar e vai para sua casa enrolada em papel rústico… ou talvez nem chegue lá, tu vais comer enquanto conversa com o seu Pedro, esperando pelo café que está sendo torrado e moído na hora… mil vezes melhor do que qualquer café solúvel do mundo!

 

            É claro que pode haver uma cooperativa ou uma compra conjunta por contracto reconhecido em cartório, permitindo obter e fracionar lotes maiores a preços mais baixos para todos os participantes, mas isso é outra conversa.

Um comentário:

abreannelarussa disse...
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