15/02/2021

Mais uma utopia estúpida

"Cyberman" from Dr. Who


 De tanto ler e ouvir discursos prolixos de gente intolerante que luta contra a intolerância, resumi em um texto relativamente curto o conteúdo de suas narrativas. As repetições enfadonhas são propositais, mas a quem se deixa envolver pela conversa, tudo parece ser de uma beleza e clareza raras.


            O ser humano é um animal político, por isso deve-se levar a política em conta em todos os âmbitos e nuances de nossas decisões, a fim de não ferir a individualidade pessoal de cada pessoa em si. Assim sendo, posto que todos concordam, devemos aderir a um modo de vida mais racional e sustentável, pondo de lado o velho normal que priorizada o indivíduo em detrimento do coletivo junto à sociedade estratificada e imersa em devaneios individualistas, a fim de realizar as diretrizes para implementação e adaptação ao novo normal. É sabido que a velha mentalidade lutará para permanecer e não seria de outra forma, por isso a nossa luta urge para a vitória a nível de sociedade coletivizada, enquanto não privada em termos de pessoa e propriedade. Trata-se não de proibir a posse, mas de ressignificá-la para uma ampla discussão livre e democrática, que resultará na conclusão da necessidade de maior acesso dos desassistidos aos bens de consumo e serviços. Tudo é muito fácil de ser resolvido, bastando eliminar o egoísmo materialista consumista que vigora e oprime as populações sujeitadas ao sentimentalismo escravagista, pois é aos sentimentos irracionais que apelam os que querem se perpetuar no controle dos destinos do indivíduo e da coletividade. O ser humano vive em busca de prazer, é só a isso que se resume todos os seus esforços e é só isso que interessa ao corpo, portanto é a isso que devemos convergir esforços, sem sentimentalismos estigmatizadores que nos impedem de viver com pleno domínio de nossos corpos e nossos destinos.

 

            Todos de acordo, vamos aos ditames democraticamente discutidos e amplamente aceitos. É necessário que tenhamos um padrão de consumo e um modo de vida mais racionais e sustentáveis, abrindo mão dos conceitos arcaicos e segregatórios de propriedade absoluta e poder absoluto sobre a própria vida enquanto indivíduo participante e afirmativo na sociedade. Começando assim pelos nossos destrutivos hábitos alimentares, que a ciência já comprovou que são insustentáveis, conforme já disseram os nossos cientistas adesistas de nossas idéias democráticas e acessíveis, amplamente discutidas democraticamente em nossos fóruns libertários. O aquecimento global requer medidas afirmativas e urgentes, então deveremos parar imediatamente de produzir e ingerir cadáveres, cuja produção e processamento demandam energias não renováveis, pelo que em pouco tempo nossa atmosfera retomaria os níveis aceitáveis de absorção de carbono, preservando assim as florestas tropicais destruídas pelos pastos, mantendo a produção de oxigênio, detendo e estancando o efeito estufa causado pela atividade consumista.

 

            O egoísmo de quem está contaminado pela mentalidade e lógica de mercado tenderá a resistir, mas será inútil, pois é o novo normal que vem à tona, é a nova verdade, a nova realidade, a nova ordem do novo mundo de uma nova humanidade mais racional, mais prática, mais sustentável e tolerante às mudanças de paradigmas. Seremos racionais, assim os sentimentalismos que perpetuaram o patriarcado opressor não terão âncoras para se fixarem na nova sociedade, se dissolvendo aos poucos com a figura do “homo proprietarius”. Seremos livres, decidiremos o que fazer com nossos corpos uma vez que os ditames de mercado não oprimirão mais os vulneráveis. A racionalidade prevalecerá e a ciência ditará nossos destinos, não havendo mais lugar para a subjetivização arcaica de interpretações acadêmicas comprovadas, porque o amor, a felicidade e o prazer não passam de reações electroquímicas em nossos cérebros, por isso a solução de nossos anseios é muito mais fácil do que nos permite acessar a mentalidade neandertal que não resistirá à eclosão revolucionária do novo normal.

 

            Quem hoje abre mão das comodidades da inteligência artificial, que facilitam nossas vidas e evitam que cometamos erros irreparáveis, tornando tudo mais eficiente e sustentável? Isso se deve ao reprimido e inato desejo humano de se tornar mais racional, deixar as decisões importantes para quem entende do que se trata cada assunto, sem a interferência da mentalidade individualista que arruína as melhores intenções com sentimentalismos arcaicos e castradores. Se você está usando um computador, está usando o resultado de décadas de mentalidade racional aplicada para o propósito de revolucionar a vida na Terra, proporcionando uma existência mais agradável a todos, democratizando a ideologia racional do novo normal para um mundo onde o egoísmo e a devastação ambiental não têm mais lugar. Aderir à causa é aderir à preservação da própria espécie humana, por isso é na racionalidade científica e filosófica que reside a nossa única esperança. Está cientificamente provado que é a racionalidade pura da inteligência artificial, criada e programada por pessoas racionais, que faz as melhores escolhas, traz as melhores soluções e dá as melhores perspectivas para todos, de modo universal, eficiente e sustentável.

 

            Concordamos que é a ciência que deve ditar tudo, com nossos filósofos aclamados mastigando para o vulgo inculto o que os cientistas disserem, isso já foi ampla e democraticamente discutido pela sociedade engajada e politizada, consciente de seus direitos. É tudo fácil, simples e rápido. A desindustrialização dos bens e primeira necessidade é portanto uma urgência! Devemos abrir mão dos prazeres de sabores não naturais para cessar, de uma vez por todas, a irracional destruição dos mananciais e suas matas ciliares, de modo que a biodiversidade seja restaurada. Com essa mentalidade mais solidária, justa e fraterna, torna-se então desnecessária a figura do comércio, pois cada um estará mais sensível às necessidades do próximo, eliminando a figura egoísta e irracional do comerciante, permitindo que sobrem mais recursos para aplicar nas necessidades básicas a que todos têm direito nato. Assim, sabendo que os frutos de seu trabalho serão aplicados com justiça social e ambiental, é justo que se deixe nas mãos de líderes racionais e solidários os recursos oriundos do trabalho, que dará a cada um o estritamente necessário, eliminando-se assim também as doenças resultantes de abusos alimentares. E uma vez que está nos hormônios do prazer o ponto manipulado pelos sabores que nos levam aos abusos, deverá ser proibido qualquer alimento dotado de impressões sensoriais, porque devemos comer para viver e não viver para comer! Sejamos racionais! Sejamos justos! Sejamos solidários! Sejamos sustentáveis! Sejamos a nova humanidade!

 

            Já deixamos a cargo da inteligência artificial a tarefa de dirigir os carros, escolher nossos programas de televisão, nossas séries, nossas músicas, nossos livros virtuais, nossos vídeos livres e até mesmo a escolha de nossos parceiros em aplicativos de namoro! Já vivemos a racionalidade e desfrutamos de seus benefícios, só que não nos damos conta disso! Por que? Porque sempre somos atormentados pelo pensamento de desligar nossos sonhos perfeitos para sair e trabalhar, porque precisamos pagar para ter prazer, para viver, até mesmo para fazer pagamentos! Isso é injusto, irracional, ineficiente e insustentável! Aqui está provado que o uso da racionalidade delegada pela ciência, a realidade virtual, é um dos alicerces para a plena e perfeita felicidade! Sem esforços, sem culpas, sem preocupações, sem crimes, sem responsabilidades, sem compromissos, tão somente prazeres e felicidade com descargas hormonais não permitidas pelo normal arcaico. Se não há esforço, o consumo de energia é mínimo, e por isso a chance de sobrevivência é maximizada.

 

            Rações isentas de flavores, sem assim consumir os recursos naturais para dar sabor e cheiro, consistem no início de uma nova era, em que aos poucos nos desacostumaremos da sedução do mercado e da propriedade individual, sendo geridos por líderes racionais e eficientes que promoverão a saúde preventiva gratuita e universal, disseminando novas diretrizes sustentáveis para vigorar a nova sociedade racional que já está em andamento. Os recalcitrantes discutirão se essa nova realidade é mesmo real? Mas o que é real? A ciência já provou que não existe uma realidade, é tudo uma interpretação resultante de processos bioquímicos de nossos cérebros, por isso uma utopia humana é possível sim! É necessária sim! É obrigatória sim! Não é de hoje que as pessoas se refugiam em jogos de realidade virtual para viverem como gostariam de viver, sem a interferência deste mundo injusto e perverso, vivendo sem ditames e sem regras. É esse o nosso objetivo! É essa a nossa luta! É essa a guerra que travamos todos os dias contra a mentalidade arcaica que nos prende a todos os males artificiais que não existem na natureza, mas são impostos para que trabalhemos duro em troca de doses mínimas dos atenuantes.

 

            Por isso devemos ser racionais! Seguir e obedecer a líderes racionais! Deixar de lado os anseios construídos de uma vida individual irracional, ineficiente e insustentável. Uma vida coletiva com experiências baseadas em realidade virtual, sem consumos e sem cobiças, com a pureza da humanidade primitiva reestabelecida em bases racionais e sólidas. Quem não gostaria de viver tudo o que quer viver sem os riscos do mundo perigoso que habitamos? É essa a nova era de um novo mundo, que sucederá o novo normal para uma humanidade livre de sentimentalismos castradores arcaicos e perversos. A vida racional de trabalho mínimo para prazeres máximos, sem perdas, sem atravessadores, sem custos, com a subsistência cem por cento garantida por líderes científicos racionais. É só um passo para a fase seguinte, em que prescindiremos até mesmo do mundo externo, assim tornando nulo o nosso impacto ambiental. Viveremos não conectados, mas em simbiose com máquinas geridas por realidade virtual perfeita, proporcionada por nossos líderes científicos racionais e repletos de boas intenções. Então o velho mundo não será sequer história, porque será totalmente desnecessário, então seus arquivos poderão ser simplesmente apagados, poupando a nova e racional humanidade de traumas e frustrações decorrentes do contato com as agressões da velha sociedade, que é totalmente formada por indivíduos perversos e sem salvação.

 

            Viveremos totalmente no mundo virtual, trabalhando sem cansaço para produzir as riquezas de nossa nova coletividade, com tempo infinito para desfrutar de prazeres em vários universos virtuais paralelos, tento doas as boas experiências possíveis a custo zero, em uma sociedade utópica e fraterna, justa e sustentável! Sem custos, sem frustrações, sem castrações, sem violência, sem preocupações, sem culpas, sem compromissos, sem crimes, sem devastação, sem propriedades, sem limites! Um mundo onde a racionalidade científica ditará tudo e definirá tudo, sem que você precise se preocupar em tomar suas próprias decisões. Basta imaginar, na limitação irracional em que ainda estamos, um mondo onde tudo seja formado por bits e algoritmos, no qual se pode voar sem asas, viver debaixo d’água ou mesmo andar para apreciar a paisagem de uma natureza perfeita e sustentável. Tudo perfeito, universal e gratuito, até o dia em que alguém tropeçará em uma raiz, que na verdade é o fluxo de dados do suporte de vida, e todas as máquinas que mantinham nossos corpos funcionando são irreversivelmente desligadas.

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