21/02/2020

Voando contra a tempestade



            US$ 10.000.000.000,00 lhes parece ser uma dinheirama? De facto é para qualquer um. O que vocês fariam com esses dez bilhões? Ações? Imóveis? Realização de sonhos? Ajudar os necessitados? Levar uma vida de nababo e viver só de prazeres? Investiriam em algo do qual a imprensa apocalíptica alardeia há anos estar em final de vida? Nós leigos e a maioria dos profissionais, seguramente não… MAS como diz o bordão, é contra o vento que um avião decola! Vamos a uma breve história…



            A última crise mundial fez vítimas também na indústria da aviação, os aviões quadrimotores caíram no desinteresse das aéreas e pareciam fadados ao desaparecimento; O Airbus A380 já foi condenado. O problema desses aviões é que seus custos operacionais são maiores do que os bimotores. O que os sustentava até então, eram a maior confiabilidade de sua configuração e a grande capacidade de carga e passageiros. Acontece que os motores evoluíram, aviões bimotores como 737 e A320 se tornaram confiáveis o bastante para praticamente todas as rotas transoceânicas, e eles inda contam com a vantagem da capilaridade; por serem menores e mais leves, podem se servir de aeroportos menores e menos estruturados, onde os gigantes 747 e A380 dificilmente conseguiriam operar. O grande problema da aviação civil, desde a crise do petróleo, é que a magra margem de lucro, que faz com que qualquer mínima oscilação de custos precise ser repassada ao passageiro; por isso lá fora se cobra pelo envio da bagagem. A hora de vôo (ver mais aqui) é caríssima! Isso, é claro, sem contar outros custos, como taxas aeroportuárias, impostos, hangar, manutenção e reparo, seguro, et cétera.



            Some-se a isso a comodidade de os passageiros não precisarem descer de um 747 para esperar conexão com um 737, ou mesmo um E190, o que ainda hoje é comum. Mais, esses bimotores conseguiram crescer e oferecer mais assentos com um custo proporcionalmente bem menor. Há ainda mais um movimento da moda de gente engajada e alienada, que pensa que deixar de voar vai resolver os problemas ambientais, mais uma culpa inútil distorcendo o foco e tirando verbas de pesquisas para soluções funcionais. Agora ponham a última crise na equação, e seus ecos ainda ressonando em nossos bolsos et voilà! Temos um monte de especialistas e “especialistas” alardeando a morte dos quadrimotores. Paralelamente, esses mesmos indivíduos publicam afirmando que tudo vai piorar e todos vamos morrer, para em seguida deixarem suas salinhas com ar-condicionado para o happy hour.



            Acontece que os quadrimotores têm uma vantagem estratégica sobre os bimotores: capacidade de carga bruta. Por serem mais corpulentos e justamente dotados de quatro motores, sua aptidão ao trabalho pesado é inato, ou… pelo menos deveria ser… O A 380 pecou neste ítem e por isso foi descontinuado, mas o 747 foi pensado na época em que se acreditava que o vôo supersônico seria comum em poucos anos, por isso foi concebido para actuar também como avião cargueiro, configuração que o tem sustentado nesses dias de vacas magras, por isso ele tem aquela corcunda do tamanho de um 737 básico, para abrir espaço na fuselagem e permitir o carregamento pela frente. Sejamos francos, o porte altivo do Boeing é muito mais agradável do que o aspecto de porco de abate do Airbus! Em caso de pane em um dos motores, o Jumbo 747 e o A380 teriam permissão para prosseguir com a viagem, mas um bimotor teria impreterivelmente que pousar no aeroporto mais próximo.



            Sem contar que o avião presidencial americano oficial, código Airforce 1, é SEMPRE um confiável quadrimotor Boeing 747, que tem custo básico de quase meio bilhão de dólares. Seria mais interessante ao orçamento utilizar um 777 mais longo, mas a segurança neste caso é sempre prioridade.



            Também é com o 747 8F, a versão cargueira, ao lado do 777-F que a Qatar Airways (ver mais aqui) tem levado suprimentos para a China, num momento em que quase todo mundo evita até sobrevoar o país. Uma propaganda e tanto para o já legendário Jumbo.



            Bem, justamente de olho nas vantagens técnicas do 747 que o volume de encomendas do cargueiro teve um acréscimo súbito e substancial (ver mais aqui) citando ainda que ele é um velho conhecido dos mecânicos aeronáuticos, o que facilita bastante as revisões e eventuais reparos. Esse incremento nos pedidos fez os fãs da rainha dos ares suspirarem de alívio… como assim? Sim, fãs! Vocês pensam que só os ônibus é que têm fãs malucos? Não, os aviões têm também, e são ainda piores! Ter a certeza da sobrevida dos quadrimotores reacendeu a esperança de seu uso civil voltar a ser comum, o que parecia algo muito remoto, até que algumas encomendas voltaram a pingar, e logo a goteira ganhou volume e se tornou um pequeno jorro; é aqui que os dez bi entram!



            Uma intenção de compra para entrega entre três e cinco anos foi firmada pela Avatar Airlines, uma iniciante com uma proposta muito agressiva e ambiciosa, que abriu um sorriso na boca da Boeing em uma má fase sem precedentes (ver mais aqui). Se originalmente o 747 saía de fábrica com interiores de alto luxo, que podiam incluir até piano bar no lounge daquela enorme corcunda, a novata quer aproveitar o corpo gigantesco para encher de poltronas de classe econômica! Mas, hein??? M-mas… É isso mesmo, Lombardi? Os manos querem usar o 747-8I para vôos de baixo custo??? É isso mesmo, Silvio! A “startup” está praticamente com a caneta no cheque para comprar uma frota de 747 e fazer pobre voar! Mas isto é incrível!!!!! É mais ou menos como transformar uma Cadillac Escalade como táxi.



            O discurso, altamente simpático e visionário, soa quase hippie: “Em vez de equipar a aeronave com lounges de primeira classe, bares com piano e um arranjo de assentos decadentes da década de 1970, a Avatar gostaria de devolver a experiência do 747 às massas”. Parece ter saído de um jovem recém-formado e cheio de esperanças no futuro, mas foi feito por Barry Michaels, executivo experiente e com os pés no chão; mas cabeça nas nuvens. Tudo começará com a tradicional versão 747-400 no mercado de usados, que está em promoção, oito até o fim do primeiro ano de operação, mantendo a empresa funcionando e acumulando recursos até a entrega gradual dos trinta novos modelos até o final do terceiro ano. Para não dizer que será um busão de asas, serão 539 assentos na econômica e 42 na executiva, ou seja, haverá chance de mais comodidade para quem se dispuser a pagar mais, mas o foco está nas massas.



           

            Certo, mas e as outras? Estão pagando para ver. Se der tudo errado, não terão perdido tempo e dinheiro; se der menos do que Michaels espera, a viabilidade do 747 poderá ser reconsiderada; se der certo o Jumbo voltará a ser um best seller da aviação civil, porque eles têm cacife para dar bons sinais e garantir a renovação da frota. Mas sem a ousadia dessa novata low cost, essa possibilidade talvez nunca fosse aventada pelas veteranas calejadas e traumatizadas pelas décadas de vacas magras. Se o consumidor aceitar viajar regionalmente e com pouco espaço em uma aeronave que é símbolo de status, então teremos uma nova e promissora página na aviação comercial, que pode inspirar as outras indústrias. Quem sabe alguém descubra, por exemplo, que famílias grandes ainda existem e carrinhos de brinquedo não dão conta delas, e nem todos querem SUV na garagem.

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