12/02/2020

Uma semente no Bronx


Puerto Rico dinner, Bronx, New York, 1950s

            Há uma lojinha em Nova Iorque premiando com (sentença mágica para taurinos) "comida grátis” de bom grado (aqui) clientes desabrigados do Bronx que conseguirem fazer contas simples, mas simples mesmo, como “tenho 10 maçãs e perco 4 laranjas, quantas maçãs me restam?”. Não há sequer uma simples regra de três no menu. A intenção é ajudar E promover a imagem da loja no bairro. Até onde percebi, eles não procuraram pela imprensa, a fama deles é que entrou nas redações e motivou a entrevista.



            A iniciativa chamou atenção em meio a tantos milhares, justamente por vincular o prêmio ao exercício do raciocínio lógico. Eles poderiam muito bem fazer questões sobre a própria loja, sobre polêmicas mais em voga, ou mesmo algo sobre celebridades vazias que se metem a dar pitaco na política interna alheia, às vezes dando tapas nas caras de comunidades de refugiados em seu próprio país; isso daria muita manchete e publicidade, mas eles preferiram o caminho mais difícil da porta mais estreita. O necessitado entra em um comércio que aceita outros meios de pagamento, subsidiados pelos próprios proprietários, paga pelo que foi buscar e sai feliz, ou pelo menos, um pouco mais para cá da linha do abismo. Não foi esmola, foi comércio. Dar o alimento angariaria mais simpatia, mas vender pelo que o outro pode pagar dá ganhos maiores, mais perenes e para toda a comunidade.



            Em primeiro lugar, eles fazem o cidadão em estado de penúria se sentir merecedor do que está ganhando. Ele entra na loja à espera de uma esmola e sai de lá com o fruto de seu mérito. Que diferença faz? Para quem pensa que não tem absolutamente nada a oferecer, conseguir o direito ao prêmio em vez de simplesmente receber passivamente uma doação, é como conseguir escalar um precipício em que caíra. E para essa gente ignorada, quando não serve de audiência ou palanque político, a quem a vida é sobreviver a mais um dia e nada mais, significa ter uma faísca de dignidade em meio às trevas da autoindiferença que suas existências tendem a se tornar. Ele se sente gente e fica mais longe de agir como um animal, controlando melhor sua índole e assim ficando menos acessível aos chamados do dinheiro fácil.



            Em segundo lugar, essa iniciativa atenua uma falha crassa em que o ocidente mergulhou, que é o menosprezo pelas ciências exactas. Já falei aqui do estúpido e inútil complexo de culpa que alimentamos, por erros que ALGUNS DE nossos ancestrais cometeram, como se isso apagasse ou corrigisse o que AQUELAS VÍTIMAS sofreram. Pois os orientais não têm essa deficiência e estão nadando de braçada nas nossas bobagens, ou vocês pensam que a China se ergueu choramingando e apontando o dedo para si mesma? Quase que subliminarmente eles estão vinculando a matemática à parte mais luminosa da humanidade, com isso desmentindo a narrativa retórica de engomadinhos de ar-condicionado que nunca resolveram problema nenhum, mas apontam seus dedos sujos para todos e exigem que os outros transformem o mundo em um paraíso instantâneo.



            Em terceiro lugar, mas não menos importante, isso quebra a inércia social. As pessoas têm sido condicionadas nas últimas décadas a sempre esperar tudo do Estado ou de entidades formais, as famigeradas ONGs. Se teu irmão está ali, ao seu alcance, não precisa entregar dinheiro a um grupo intermediador, ver os recursos viajarem pelo mundo para só depois voltarem e fazerem (ou não) aquilo a que foram destinados. ONG é só um nanoestado não assumido, meus amigos. Agindo assim, a distância midiática entre o fornecedor e o destinatário do recurso desaparece, obrigando os indivíduos a se envolverem e verem a pessoa por detrás das estatísticas, dando rosto e nome a quem era apenas um número; números não reagem, quando são manipulados, pessoas podem quando percebem isso.



            Não, isso não vai resolver os problemas do mundo. Não, a pobreza não será magicamente erradicada com isso, para o alívio dos bondosos lutadores de causas. Não, isso não vai torar daquela ditadura os oitenta anos de tecnologia que lhe demos de graça. Essa iniciativa é uma semente, que na verdade já está brotando, e vai ajudar a reflorestar o amor-próprio do ocidental, especialmente das Américas. Não falo aqui de orgulhos nacionais, me refiro àquilo que os ingleses ainda têm em relação ao seu gentílico e suas tradições, o que em boa parte motivou o desligamento da UE… que agora está correndo atrás deles para firmar acordos comerciais. Posso dizer sem medo que a Inglaterra é o país mais legitimamente ocidental do mundo, porque foi o que menos se curvou a essa culpa idiota; e francamente eu acredito ter sido plantada, mas isso é assunto futuro.



            Aquela semente que acaba de brotar vai preparar a terra para futuras semeaduras, o que não nos impede de fazer o mesmo agora, em vez de esperarmos por frutos que talvez nunca saboreemos, pois aquela semente pode ser de tâmara. Demora? Sim, demora! Mas dá resultados? Sim, dá resultados, e resultados indeléveis por se atacar o mal pela raiz. Se uma grande parcela da população fizer o mesmo, não vai antecipar os resultados, que têm seu tempo, mas vai antecipar o desfecho, porque a colheita dessa safra vai nutrir muito mais humanidades ao mesmo tempo. A conseqüência imediata disso é a perda de prestígio de muita gente que se diz amiga dos excluídos, mas não passa de parasitas que acalmam o cérebro enquanto sugam o sangue. Artistas, políticos, celebridades, “intelectuais”, enfim, muita gente terá que procurar empregos de verdade para sobreviver.



            A longo prazo, teríamos um avanço mais significativo na ciência e tecnologia, pois afinal é com matemática que essa conversa nasce. Perder o medo da matemática é o primeiro passo para se ter um raciocínio mais limpo e organizado, e ter a matemática como “meio de vida” provisório é uma ajuda inestimável. Aquelas pessoas vão falar bem de cálculos e problemas concretos envolvendo equacionamentos, isso cedo ou tarde chegará aos ouvidos das crianças, encorajando os pais a brincarem com eles de algo mais do que competição esportiva ou ir comer pizza.



            O atrelamento das ciências exactas ao resgate da humanidade de quem pensa não ser mais humano, é inclusive uma vacina contra a arrogância típica de quem se julga ser intelectual, e esfrega seus títulos e artigos no nariz do cidadão comum; esse cidadão comum não seria mais um completo leigo e assim não cairia mais, também, na estética da lábia traiçoeira de floreadores verborrágicos. Seria o fim do político profissional como o conhecemos. Ah, claro, a grade da televisão e dos serviços de streaming mudaria radicalmente, inclusive com o fim dos circos de horrores de gente que chamam de reality shows. A forma como se vê e consome entretenimento seria completamente outra. Escatologia não seria mais artigo de venda fácil, e os esportes profissionais precisariam de novos apelos para conseguirem audiência.



            A união do amor-próprio ao rigor da análise matemática nos tornaria mais exigentes também na hora de gastar o tempo livre. A sensação enriquecedora de um bom livro com ilustrações bem-feitas e bem pensadas, de material de boa qualidade e bem texturizado, seria mais atraente do que o jorro de emoções intensas e voláteis. O automobilismo elegante tomaria muito espaço de jogos burros. Aliás, o gosto por máquinas complexas se alastraria, porque elas são um exercício mental tão recompensador quando o treino pesado é para o atleta. O gosto pela natureza cresceria muito, o que significaria necessariamente o alastramento das áreas verdes, jardins particulares e vasos decorativos em grandes centros urbanos; uma vez que o prazer de dirigir seria priorizado, ninguém estragaria isso congestionando as ruas usando o carro para ir comprar pão na esquina.



            O gosto pelas artes e pelo refinamento chegaria aos mais pobres, que já não seriam mais o que conhecemos como “pobres”. Para quem 3,14 não é mais um Pi, e 3,1415926535 nem sempre seria mais suficiente, apreciar os detalhes e sua participação no conjunto impulsionaria o mercado de artesãos de elite, e esses detalhes únicos migrariam para a personalização de productos de larga escala, talvez dentro das próprias fábricas. Se de um lado a racionalização extrema da parte estrutural cortaria vagas, estas migrariam para os serviços de retalhamento e aprimoramento técnico, humanizando até mesmo o mais artificial dos artigos plásticos; e talvez não houvesse mais mão de obra suficiente, teríamos que recrutar robôs para auxiliar os artesãos.



            As relações pessoais, uma vez que lógica e emoção estariam atreladas, começariam a amadurecer de forma exponencial. Relações abusivas decairiam, porque suas vítimas estariam mais propensas a pedir ajuda profissional, em vez de confiar em opiniões de redes sociais. Estas, por falar nisso, passariam a justificar seus nomes, não seria mais redes de intrigas, não haveria espaço para isso. O ápice viria quando o inconsciente coletivo recebesse essa extensão, mas então já estaríamos em outro mundo e, francamente, não se daria em um estreito prazo de um século… mesmo assim o início dos efeitos já seria um espanto!



E tudo isso nascido oficialmente naquela sementinha plantada no Bronx.

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