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Em uma tarde comum, de um dia comum, em um
passeio comum, com sua família comum, Altino aprecia a paisagem feminina,
como todo garoto comum. Por vezes se aborrece com a intrusão de
defeitos visuais masculinos, que não foram chamados à cena e se meteram
assim mesmo.
Em dado momento, percebe que o picolé de chocolate cremoso com recheio fluídico se acabou, sem que tivesse se dado conta do consumo. Questiona-se se não foi uma andorinha marota que passou voando, abocanhou tudo e se foi sem deixar vestígios. Não, andorinhas não têm boca e ele sentiria o vento de uma passagem tão rápida. Se dá conta de que a passagem não vista pode ser confirmada por seus indícios, mas estes podem ser forjados e a hipótese ser, então, enganosa, levando a conclusões equivocadas, talvez até à condenação de um inocente.
Volta ao mundo comum em que se encontra e procura uma lixeira. Pensa em comprar outro picolé, sem conseguir avistar um sorveteiro. Pensa em ir a uma lanchonete ou padaria, para encontrar outro. Pensando bem, do jeito que está quente, vai todo mundo querer um teco, então é melhor ir directo ao caminhão e comprar uma pequena caixa, o que até barateia a unidade. Interessante que o preço caia tanto com a garantia de algumas unidades negociadas. O preço em si, não existe, é hipotético, tanto que na falta de troco, ele pode ser ligeiramente maior ou menor, por isso gostaria de ter um cartão de débito, não fosse tão jovem para abrir uma conta corrente.
Sorvete, preço, conta bancária... Começa a estabelecer vínculos existenciais. O sorvete é resultado do processamento de leite, chocolate, espessante, açúcar e outros ingredientes menores, quase todos eles resultados de outros processamentos, mas jogar tudo em cima de um palito de madeira não os transforma em um sorvete. O sorvete é, então, não os ingredientes em si, mas o que foi feito deles. E o dinheiro?
Absorvido em seus pensamentos, nem nota a passagem do tempo, fica como Sócrates, parado e alheio ao restante do mundo comum, em uma tarde comum, enquanto tem meditações incomuns para garotos comuns de sua idade. Mais de uma hora se passa até sua mãe, uma mulher comum, o chamar para a sombra, antes que e queime ao sol, não que sua pele seja muito clara, a radiação é que tem registrado índices muito altos, algo comum nos dias correntes.
À sombra de uma árvore comum, no Ibirapuera, com sua família comum, continua a meditar com afinco e um interesse descomunal, até mesmo para philosophos experientes. Um primo comum nota a introspecção e cutuca os tios, que vêem o semblante severo e o senho franzido, um olhar duro, boca recolhida e a mão direita como se estivesse agarrando firmemente uma corda. Ele parece estar atônito, com jeito de quem não acredita do que acabou de saber. Chegam à ele, perguntam o que há e ele responde "Toda condição é uma hipótese". Se alguém tivesse entendido algo, teria começado uma conversa a respeito.
Pega um bolinho de chuva para exemplificar e explicar a instabilidade da existência, que sem essa transitoriedade, porém, seria inviável. Ninguém entende potoca nenhuma. São pessoas comuns, com vidas e aspirações comuns, jamais se prenderam a qualquer divagação que não fosse de seu cotidiano prático e comum. Alguns fazem gestos de que ele está ficando maluco, outros comentam que o excesso de onanismo já começou a fazer mal, o pai apenas comenta que está na hora de Altino arranjar uma ocupação para as tardes, mesmo não sendo o filho mais velho.
Em casa, um sobradinho geminado comum, em Pinheiros, se frustra ao encontrar pouquíssimo material na internet, a respeito de suas divagações. Recorre à rede social, onde escreve, na esperança de alguém poder ajudá-lo: A condição existe na hipótese de que pode ser percebida, mas não há certeza de que ela seja, apenas de que está acontecendo e que pode rapidamente deixar de ser. Aguarda alguns minutos e os primeiros comentários surgem, mas decepcionam: "Véi, ond'é que tu comprou essa erva? Eu tb quero", "Cê bebeu?", "Aí, maluco! cê tá doido, doido?", "E o quico?", "Tá provado, falta de mulé faz mal! Vai trepar, muleque!". Ele tenta explicar o que aconteceu, mas os cento e oitenta comentários seguintes só pioram, inclusive com muita gente perguntando onde ele comprou picolé de maconha sabor chocolate.
Alguém conta aos pais do garoto e eles se preocupam. Na manhã seguinte, na escola comum, ele passa a saber in loco o real significado da expressão "bullying". Shakespearado passa a ser seu cognome entre os alunos comuns, e boa parte do funcionalismo comum. A conseqüência mais grave, porém, vem na semana seguinte, quando tira zero na prova de português. A pergunta única foi "Qual a sua opinião sobre a imprensa nacional, ao nível de agente socializador e inclusivo, enquanto veículo de comunicação de massas?", ele respondeu "Na hipótese de haver algum meio de comunicação dedicado à promoção da coesão social, esta não pode ser efetivada senão pela própria sociedade, no exercício individual das atribuições de cada elemento, de modo contínuo e incessante". O advogado que dá aulas de português, um jurista comum, não entendeu patavinas e deu zero, sem se preocupar em procurar referências. Só está dando aulas porque não consegue clientes, e conseguiu um pistolão para ser reclassificado e tirar a vaga de quem tem preparo.
O aumento do assédio prejorativo, como Altino passou a chamar o bullying, obrigou seus pais a tirá-lo temporariamente dos estudos, após receberem reprimendas severas da directora, uma professora comum filiada ao partido da situação, por não prestarem a devida atenção ao filho, permitindo que fale e escreva coisas sem nexo, anormais para um garoto dessa idade, tendo assim causado desconforto social no âmbito escolar. O casal decide que, se ele não quer estudar, embora em nenhum momento ele tenha dito e nem lhe tenha sido perguntado, terá que trabalhar. Já que tudo começou com um sorvete de chocolate, lhe arranjam um carrinho para que comece a ganhar a vida como sorveteiro nas ruas, e cobram resultados.
Altino percebe que tem sua própria margem de ganho, e que pode negociá-la à vontade, à revelia da tabela de preços grudada no carrinho. Tira cinqüenta centavos aqui, dá o sétimo sorvete de graça para aquele grupo de alunos e, embora ganhe um pouco menos do que os outros, por unidade, leva um pouco mais para casa ao fim do dia. Aproveita o trabalho para analisar as pessoas comuns e a paisagem, que deixa de ser comum aos seus olhos. Também aprende a manter a boca fechada, quando não lhe for perguntado algo.
A família permanece desgostosa e decepcionada, acreditando que ele vai morrer na miséria, vendendo picolé e sorvete pelas ruas, pelo resto da vida. Alguns se afastam, outros apenas reduzem a convivência ao essencial, mas ninguém quer conversar realmente com ele, acreditando que começará a divagar abstratamente apenas para dizer as horas. Não o levam a um psicanalista, porque têm certeza de que será amarrado em uma camisa de força e trancado em um hospício, recebendo choques três vezes ao dia, entre as refeições. Seu aniversário é passado nas ruas, trabalhando, sem ter recebido sequer um "bom bia".
Passam-se alguns meses, passa um ano, passam-se dois anos. Altino estuda por conta própria. Noventa por cento de seus contactos o excluíram, mais da metade deles o bloqueou para não ter que ler o que não entende. Os restantes raramente dão as caras em algum comentário. O que mais lhe dói, no entanto, é sofrer em casa, com a família, o mesmo que sofreu naquela escola. Ainda não tem idade, ou já estaria morando sozinho.
No fim da tarde, com a família tendo viajado para o litoral em um fim de semana prolongado, e a noite quente dos últimos dias, decide pedir à fábrica mais um carregamento. Espera vender alguns sorvetes em um evento aberto, que se dá a poucos quilômetros dali. Ninguém o espera, não tem outro lugar aonde ir, então vai aonde manda o seu nariz. Aliás, nariz aquilino bem pontiagudo. O evento é com intelectuais de verdade, que saem do ar condicionado para conferir a realidade comum das ruas. A decisão de ir para lá foi acertada, a noite quente e sua maleabilidade na margem de lucro ajudam nas vendas.
Um grupo cerca o carrinho e conversa, enquanto é servido. Uma PhD com mais títulos do que células no corpo, pega um sorvete de pistache com veios de chocolate meio amargo, pergunta a Altino o que é aquilo e ele, inocente e por reflexo responde "Não é. Está". Cinco minutos de silêncio deixam o garoto apreensivo, temendo ter estragado sua estratégia por soltar algo diferente do que esperavam como resposta, quando a mulher devolve "Sim, está, mas por pouco tempo". Ela devora o acepipe e pede mais, enquanto o grupo puxa conversa com ele, que vende tudo e continua com as divagações iniciadas acidentalmente.
É convencido a vencer sua timidez traumática, para participar de uma rodada de discussões metafísicas, que visam angariar argumentos práticos para problemas comuns. A experiência nas ruas é um trunfo que a maioria dos palestrantes não tem. A philosopha que o revelou tasca "Caraca, véi! Caraca! O problema não é e nunca foi você! O problema é o ambiente, você está no lugar errado para as suas aspirações! Você está acumulando pérolas raras e só te dão emprego de alimentar porcos!. Não vais conseguir prohas nenhuma naquelas escolinhas de lobotomia retórica que o governo mantém. De agora em diante nós seremos seus professores formais. Você vai se formar em philosophia e, enquanto isso, vai ganhar um extra com contribuições. Mas fica vendendo sorvete nas ruas, que isso está sendo uma fonte maravilhosa de experiência e reflexão. E... Cara, casa comigo!". O pedido é sério e rende ovações, com a aceitação.
Combinam tudo secretamente à família comum do rapazote. Seu perfil na rede social passa a ter, de dez contactos que raramente dão as caras com "oi" e "e aê", para dez mil contactos de intelectuais que lidam com os problemas mundiais,participam de eventos internacionais e procuram saídas plausíveis para as questões mais sérias e antigas da humanidade. Daqui a dois anos ele faz dezoito e se casa com a namorada de trinta. A fanília fica ainda mais assustada com o conteúdo que os primos comuns relatam ter lido, em seu perfil. São centenas de comentários em discussões calorosas, para textos curtos e fáceis de digerir como "A conveniência da existência", "A equivalência do nulo e do infinito", "O absolutismo da relatividade" e outros assuntos que ele e seus amigos discutem numa boa, mas dão nó cego nas cabeças comuns de seus parentes, amigos e ex-amigos. Altino não bloqueou ninguém, assim todos podem ver o que ele e seu grupo dizem. Mas não conseguem nem xingar, porque não sabem o quê xingar. Até porque podem xingá-los de volta e eles não entenderão nem o ponto de exclamação que usarem.
Altino segue discreto para a sua emancipação, deixando seus pais crerem que só vive dos sorvetes que vende. Como não gasta com esbórnias e distrações cibernéticas que dão status, consideram-no um miserável abaixo da linha de pobreza. Não imaginam que seus pequenos textos são publicados em vários idiomas, em revistas de altíssimo nível, dando nós salutares até em cabeças gabaritadas. Teve a sorte que quase ninguém tem, a de encontrar pessoas afins, que valorizam o que ele está sendo e têm avidez por fazer seu conteúdo circular.
Aos dezoito anos, no fim da tarde, de terno listrado e barba bem feita, chega em casa com uma bela morena de olhos penetrantes, apresentando-a como sua noiva. Meu Deus! A casa cai, dá um pulo para cima e cai de novo. Os irmãos lascam a comunicar o facto bizarro para todo o planeta, por internet e telephone. O ex-professor que lhe deu o zero de misericórdia, afirma que é falso, que ele está mentindo, e escreve um texto longo, prolixo, retórico, repetitivo, cheio de "junto ao enquanto perante no nível de" para provar que o ex-aluno é um imbecil e que age de má fé. Os amigos, até então silentes a respeito, humilham o bacharéu com milhares de comentários de desagravo, em linguagem que ele desconhece e ameaças de processo. Lhe dão links para as publicações que Altino assinou e ele fica ainda mais confuso. Tudo isso em poucas horas.
Mesmo com todas as beneces ocorridas, casado, com renda generosa, Altino continua a vender sorvetes pelas ruas de São Paulo. A esposa teve o tino comercial de usar suas citações para estampar camisetas, cartões e adesivos. Desta vez, mas só porque a sociedade lhe deu uma reprimenda dura, sua família deixa de ter vergonha dele para ter de si mesma.
Em dado momento, percebe que o picolé de chocolate cremoso com recheio fluídico se acabou, sem que tivesse se dado conta do consumo. Questiona-se se não foi uma andorinha marota que passou voando, abocanhou tudo e se foi sem deixar vestígios. Não, andorinhas não têm boca e ele sentiria o vento de uma passagem tão rápida. Se dá conta de que a passagem não vista pode ser confirmada por seus indícios, mas estes podem ser forjados e a hipótese ser, então, enganosa, levando a conclusões equivocadas, talvez até à condenação de um inocente.
Volta ao mundo comum em que se encontra e procura uma lixeira. Pensa em comprar outro picolé, sem conseguir avistar um sorveteiro. Pensa em ir a uma lanchonete ou padaria, para encontrar outro. Pensando bem, do jeito que está quente, vai todo mundo querer um teco, então é melhor ir directo ao caminhão e comprar uma pequena caixa, o que até barateia a unidade. Interessante que o preço caia tanto com a garantia de algumas unidades negociadas. O preço em si, não existe, é hipotético, tanto que na falta de troco, ele pode ser ligeiramente maior ou menor, por isso gostaria de ter um cartão de débito, não fosse tão jovem para abrir uma conta corrente.
Sorvete, preço, conta bancária... Começa a estabelecer vínculos existenciais. O sorvete é resultado do processamento de leite, chocolate, espessante, açúcar e outros ingredientes menores, quase todos eles resultados de outros processamentos, mas jogar tudo em cima de um palito de madeira não os transforma em um sorvete. O sorvete é, então, não os ingredientes em si, mas o que foi feito deles. E o dinheiro?
Absorvido em seus pensamentos, nem nota a passagem do tempo, fica como Sócrates, parado e alheio ao restante do mundo comum, em uma tarde comum, enquanto tem meditações incomuns para garotos comuns de sua idade. Mais de uma hora se passa até sua mãe, uma mulher comum, o chamar para a sombra, antes que e queime ao sol, não que sua pele seja muito clara, a radiação é que tem registrado índices muito altos, algo comum nos dias correntes.
À sombra de uma árvore comum, no Ibirapuera, com sua família comum, continua a meditar com afinco e um interesse descomunal, até mesmo para philosophos experientes. Um primo comum nota a introspecção e cutuca os tios, que vêem o semblante severo e o senho franzido, um olhar duro, boca recolhida e a mão direita como se estivesse agarrando firmemente uma corda. Ele parece estar atônito, com jeito de quem não acredita do que acabou de saber. Chegam à ele, perguntam o que há e ele responde "Toda condição é uma hipótese". Se alguém tivesse entendido algo, teria começado uma conversa a respeito.
Pega um bolinho de chuva para exemplificar e explicar a instabilidade da existência, que sem essa transitoriedade, porém, seria inviável. Ninguém entende potoca nenhuma. São pessoas comuns, com vidas e aspirações comuns, jamais se prenderam a qualquer divagação que não fosse de seu cotidiano prático e comum. Alguns fazem gestos de que ele está ficando maluco, outros comentam que o excesso de onanismo já começou a fazer mal, o pai apenas comenta que está na hora de Altino arranjar uma ocupação para as tardes, mesmo não sendo o filho mais velho.
Em casa, um sobradinho geminado comum, em Pinheiros, se frustra ao encontrar pouquíssimo material na internet, a respeito de suas divagações. Recorre à rede social, onde escreve, na esperança de alguém poder ajudá-lo: A condição existe na hipótese de que pode ser percebida, mas não há certeza de que ela seja, apenas de que está acontecendo e que pode rapidamente deixar de ser. Aguarda alguns minutos e os primeiros comentários surgem, mas decepcionam: "Véi, ond'é que tu comprou essa erva? Eu tb quero", "Cê bebeu?", "Aí, maluco! cê tá doido, doido?", "E o quico?", "Tá provado, falta de mulé faz mal! Vai trepar, muleque!". Ele tenta explicar o que aconteceu, mas os cento e oitenta comentários seguintes só pioram, inclusive com muita gente perguntando onde ele comprou picolé de maconha sabor chocolate.
Alguém conta aos pais do garoto e eles se preocupam. Na manhã seguinte, na escola comum, ele passa a saber in loco o real significado da expressão "bullying". Shakespearado passa a ser seu cognome entre os alunos comuns, e boa parte do funcionalismo comum. A conseqüência mais grave, porém, vem na semana seguinte, quando tira zero na prova de português. A pergunta única foi "Qual a sua opinião sobre a imprensa nacional, ao nível de agente socializador e inclusivo, enquanto veículo de comunicação de massas?", ele respondeu "Na hipótese de haver algum meio de comunicação dedicado à promoção da coesão social, esta não pode ser efetivada senão pela própria sociedade, no exercício individual das atribuições de cada elemento, de modo contínuo e incessante". O advogado que dá aulas de português, um jurista comum, não entendeu patavinas e deu zero, sem se preocupar em procurar referências. Só está dando aulas porque não consegue clientes, e conseguiu um pistolão para ser reclassificado e tirar a vaga de quem tem preparo.
O aumento do assédio prejorativo, como Altino passou a chamar o bullying, obrigou seus pais a tirá-lo temporariamente dos estudos, após receberem reprimendas severas da directora, uma professora comum filiada ao partido da situação, por não prestarem a devida atenção ao filho, permitindo que fale e escreva coisas sem nexo, anormais para um garoto dessa idade, tendo assim causado desconforto social no âmbito escolar. O casal decide que, se ele não quer estudar, embora em nenhum momento ele tenha dito e nem lhe tenha sido perguntado, terá que trabalhar. Já que tudo começou com um sorvete de chocolate, lhe arranjam um carrinho para que comece a ganhar a vida como sorveteiro nas ruas, e cobram resultados.
Altino percebe que tem sua própria margem de ganho, e que pode negociá-la à vontade, à revelia da tabela de preços grudada no carrinho. Tira cinqüenta centavos aqui, dá o sétimo sorvete de graça para aquele grupo de alunos e, embora ganhe um pouco menos do que os outros, por unidade, leva um pouco mais para casa ao fim do dia. Aproveita o trabalho para analisar as pessoas comuns e a paisagem, que deixa de ser comum aos seus olhos. Também aprende a manter a boca fechada, quando não lhe for perguntado algo.
A família permanece desgostosa e decepcionada, acreditando que ele vai morrer na miséria, vendendo picolé e sorvete pelas ruas, pelo resto da vida. Alguns se afastam, outros apenas reduzem a convivência ao essencial, mas ninguém quer conversar realmente com ele, acreditando que começará a divagar abstratamente apenas para dizer as horas. Não o levam a um psicanalista, porque têm certeza de que será amarrado em uma camisa de força e trancado em um hospício, recebendo choques três vezes ao dia, entre as refeições. Seu aniversário é passado nas ruas, trabalhando, sem ter recebido sequer um "bom bia".
Passam-se alguns meses, passa um ano, passam-se dois anos. Altino estuda por conta própria. Noventa por cento de seus contactos o excluíram, mais da metade deles o bloqueou para não ter que ler o que não entende. Os restantes raramente dão as caras em algum comentário. O que mais lhe dói, no entanto, é sofrer em casa, com a família, o mesmo que sofreu naquela escola. Ainda não tem idade, ou já estaria morando sozinho.
No fim da tarde, com a família tendo viajado para o litoral em um fim de semana prolongado, e a noite quente dos últimos dias, decide pedir à fábrica mais um carregamento. Espera vender alguns sorvetes em um evento aberto, que se dá a poucos quilômetros dali. Ninguém o espera, não tem outro lugar aonde ir, então vai aonde manda o seu nariz. Aliás, nariz aquilino bem pontiagudo. O evento é com intelectuais de verdade, que saem do ar condicionado para conferir a realidade comum das ruas. A decisão de ir para lá foi acertada, a noite quente e sua maleabilidade na margem de lucro ajudam nas vendas.
Um grupo cerca o carrinho e conversa, enquanto é servido. Uma PhD com mais títulos do que células no corpo, pega um sorvete de pistache com veios de chocolate meio amargo, pergunta a Altino o que é aquilo e ele, inocente e por reflexo responde "Não é. Está". Cinco minutos de silêncio deixam o garoto apreensivo, temendo ter estragado sua estratégia por soltar algo diferente do que esperavam como resposta, quando a mulher devolve "Sim, está, mas por pouco tempo". Ela devora o acepipe e pede mais, enquanto o grupo puxa conversa com ele, que vende tudo e continua com as divagações iniciadas acidentalmente.
É convencido a vencer sua timidez traumática, para participar de uma rodada de discussões metafísicas, que visam angariar argumentos práticos para problemas comuns. A experiência nas ruas é um trunfo que a maioria dos palestrantes não tem. A philosopha que o revelou tasca "Caraca, véi! Caraca! O problema não é e nunca foi você! O problema é o ambiente, você está no lugar errado para as suas aspirações! Você está acumulando pérolas raras e só te dão emprego de alimentar porcos!. Não vais conseguir prohas nenhuma naquelas escolinhas de lobotomia retórica que o governo mantém. De agora em diante nós seremos seus professores formais. Você vai se formar em philosophia e, enquanto isso, vai ganhar um extra com contribuições. Mas fica vendendo sorvete nas ruas, que isso está sendo uma fonte maravilhosa de experiência e reflexão. E... Cara, casa comigo!". O pedido é sério e rende ovações, com a aceitação.
Combinam tudo secretamente à família comum do rapazote. Seu perfil na rede social passa a ter, de dez contactos que raramente dão as caras com "oi" e "e aê", para dez mil contactos de intelectuais que lidam com os problemas mundiais,participam de eventos internacionais e procuram saídas plausíveis para as questões mais sérias e antigas da humanidade. Daqui a dois anos ele faz dezoito e se casa com a namorada de trinta. A fanília fica ainda mais assustada com o conteúdo que os primos comuns relatam ter lido, em seu perfil. São centenas de comentários em discussões calorosas, para textos curtos e fáceis de digerir como "A conveniência da existência", "A equivalência do nulo e do infinito", "O absolutismo da relatividade" e outros assuntos que ele e seus amigos discutem numa boa, mas dão nó cego nas cabeças comuns de seus parentes, amigos e ex-amigos. Altino não bloqueou ninguém, assim todos podem ver o que ele e seu grupo dizem. Mas não conseguem nem xingar, porque não sabem o quê xingar. Até porque podem xingá-los de volta e eles não entenderão nem o ponto de exclamação que usarem.
Altino segue discreto para a sua emancipação, deixando seus pais crerem que só vive dos sorvetes que vende. Como não gasta com esbórnias e distrações cibernéticas que dão status, consideram-no um miserável abaixo da linha de pobreza. Não imaginam que seus pequenos textos são publicados em vários idiomas, em revistas de altíssimo nível, dando nós salutares até em cabeças gabaritadas. Teve a sorte que quase ninguém tem, a de encontrar pessoas afins, que valorizam o que ele está sendo e têm avidez por fazer seu conteúdo circular.
Aos dezoito anos, no fim da tarde, de terno listrado e barba bem feita, chega em casa com uma bela morena de olhos penetrantes, apresentando-a como sua noiva. Meu Deus! A casa cai, dá um pulo para cima e cai de novo. Os irmãos lascam a comunicar o facto bizarro para todo o planeta, por internet e telephone. O ex-professor que lhe deu o zero de misericórdia, afirma que é falso, que ele está mentindo, e escreve um texto longo, prolixo, retórico, repetitivo, cheio de "junto ao enquanto perante no nível de" para provar que o ex-aluno é um imbecil e que age de má fé. Os amigos, até então silentes a respeito, humilham o bacharéu com milhares de comentários de desagravo, em linguagem que ele desconhece e ameaças de processo. Lhe dão links para as publicações que Altino assinou e ele fica ainda mais confuso. Tudo isso em poucas horas.
Mesmo com todas as beneces ocorridas, casado, com renda generosa, Altino continua a vender sorvetes pelas ruas de São Paulo. A esposa teve o tino comercial de usar suas citações para estampar camisetas, cartões e adesivos. Desta vez, mas só porque a sociedade lhe deu uma reprimenda dura, sua família deixa de ter vergonha dele para ter de si mesma.
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