Indiferente ao burburinho das colegas, ela
entra em um dos sanitários e fecha a porta. Elas não deixam isso
passar-lhes despercebido, estão acostumadas a tagarelar mesmo mandando o
barroso para fora, com a porta aberta. A conversa alta e estridente
passa a se dar aos cochichos e gestos, para que ela não perceba que
falam de si.
Calam-se por um instante, para tentar ouvir o
choro baixinho de quem não quer ser ouvida em sua intimidade. Nada. Nem
choro, nem soluços, nem mesmo um gemido. Especulam que acontecimento
terrível teria feito a moça se trancar em silêncio, na baia do
sanitário. Logo alguém cogita ter sido por causa de homem. Ah, mas é
claro, só pode ser. Começam a discutir a respeito sem citar nomes e sem
dar pistas de quem é a coitada, a traída, a infeliz vítima de um
cafajeste.
Toda a discrição cabe perfeitamente na
hipótese de drama passional. Se estivesse feliz, estaria espalhando para
todo mundo, para causar inveja, contar vantagem, essas cousas de gente
moderna e antenada com as baladas. Mas deixem que hoje mesmo, após o
expediente, a arrastam para uma boate e a enchem de garotões gostosos,
tarados e avessos a compromissos. Ela vai dar até arder e amanhã estará
feliz da vida.
Uma delas tem a curiosidade de olhar, com
todo o cuidado e silêncio possíveis, pelo vão inferior da porta. Fica
trêmula, estática, pasma e abismada. Pisca e se belisca para ter certeza
do que está vendo. É enorme! Não imagina por que uma mulher usaria
aquilo de livre espontânea vontade. Vai imediatamente contar para as
outras, a descrever com riqueza de detalhes aquela coisa sem detalhe
algum, que explica o motivo de ela usar cós alto até a cintura. Aliás,
para elas é a coisa mais senil que uma mulher pode usar.
Voltam a cochichar especulações sobre aquela
calcinha bege, que pelo tamanho cobre totalmente os quadris, talvez
sendo tão alta quanto as calças. Levantam saias e baixam os cós de suas
calças para mostrar lingeries de mulheres saudáveis, modernas, com vida
sexual activa e bem resolvida. Algumas são meros fios com uma telinha na
frente, embora várias sejam consideradas grandes, cobrindo o derriére
quase totalmente. Mas nenhuma é grande como aquela calçola de vovó.
Calam-se quando ouvem a descarga. Ela abre e é alvejada por olhares disfarçados. Lava bem as mãos,
cumprimenta-as e sai em passos delicados para seu posto de trabalho.
Pernas juntinhas e andar firme. Assim que sai, elas voltam a falar com
vontade. Nunca tinham notado tanto aquele cós alto. Não o cós baixo com
um remendo em cima, para parecer alto, mas alto até a cintura, como nos
anos oitenta. Olham para o relógio de parede e decidem ir também, mas de
butuca ligada nela.
Se revesam em idas que seriam desnecessárias
no cotidiano comum, para verem se descobrem algo mais. A cada uma que
volta, enquanto cumprem com os prazos, discutem veladamente as
conclusões a que cada espiã de toilete chegou. Desde o tablete de
chocolate até a ordem matemática da mesa, tudo serve de combustível. Até
a chave do carro, presa a um chaveiro em forma de casa, é discutido
entre gestos e abreviaturas verbais. Uma colega de fora da roda a
aborda, tratando-a com carinho. Pronto! Agora descobriram seu segredo! É
lésbica! Talbez bissexual, mas ela gosta de mulher. É por isso que não
quer chamar atenção dos homens, que não quer ser sexy para eles e nunca
ouviram falar de casos seus com colegas. Deve ser comprometida.
A hipótese é levada em consideração, mas
elas conhecem outras lésbicas e elas não usam calçolas beges. Aproveitam
que ela sai para a sala do chefe e aumentam o volume da conversa. O
estagiário ouve e mete o bedelho, diz que a ouviu falando "Sou de
virgem" ao celular. Elas se olham, arregalam os olhos, abrem as bocas de
espanto e em poucos segundos o escritório descobre que tem uma
funcionária virgem. Todos se calam quando ela volta. As conversas
tornam ser em gestos e meias-palavras. Os homens passam a fantasiar com
quem e como seria o desvirginamento daquela mulher, comentam que o
episódio deveria ser filmado para servir de prova. Vão um a um ao
sanitário, dar vazão à fantasia.
Ela atende ao celular, falando em tom
moderado, voz calma e risos discretos. Diz que busca as três e que há
dois quartos esperando por elas. A palavra "irmãs" tem muitos
significados, mas os outros só imaginam a acepção religiosa. Pensam que
ela faz parte de uma seita que tolera o homossexualismo. O facto de elas
sonharem com Brad Pitt, não significa que sejam suas amantes, então
imaginam que tenha feito também voto de castidade. Ah, agora quela
calçola faz todo sentido, é uma espécie de freira de uma religião
qualquer. Como deve ser infeliz a vida sem sexo! Começam a ter pena
dela. Não imaginam um motivo são para alguém tornar-se celibatária,
ainda mais sendo bonita e ainda jovem.
A hora do almoço também serve para
espionagem. O restaurante fica inexplicavelmente cheio naquele início de
tade. Não que garçons e gerente reclamem. Ela faz um gesto é atendida por uma
garçonete, com a qual demonstra certa intimidade. Será? Chega o prato,
ela faz uma pausa e começa a comer. Os curiosos comem quase sem ver o
quê, acabando por comer mais do que o normal. Notam seu recato, sua
moderação, sua classe, sua boquinha vermelho-cereja provocando reações
íntimas. Prestam atenção de modo que seriam capazes de desenhá-la a mão
livre, se soubessem desenhar. Nisso acaba despertando sentimentos mais
afetuosos em alguns colegas. Eles passam a imaginá-la em seu quarto,
imaginando como será seu quarto, usando só aquela lingerie bege.
Uma das vigilantes usa o tablet para falar na rede social, combinando com uma conhecida e depois com o chefe, que adora a idéia.
Como tudo está dentro do prazo, a
chefia avisa que um proctologista e uma ginecologista estão na empresa
para exames surpresa. Um gay gaiato fica indeciso e pergunta qual o
critério para definir o gênero, o proctologista diz que é pelos
cromossomos e ele entra na fila dos homens. As causadoras da polêmica
aguardam pelos relatos da amiga de uma delas. O relato surpreende, a
moça não é virgem, mas também não é chuchu na serra. Afirma que as duas
peças da lingerie combinam. Passam a cogitar um trauma sexual. Até o fim
do dia alguém conclui e espalha que ela foi violentada na adolescência,
embora a médica não tenha encontrado qualquer sinal de violência, mesmo
remota.
Na manhã seguinte há alguém designada
para espionar sua chegada. Ela chega em um Maverick preto, cheio de
adereços e rodas esportivas. O ronco até assusta. Ela sai em uma sai
preta plissada longa, e uma camisete xadrez marfim e chumbo. O grupo
recebe a notícia especula sua orientação política, passando a
considerá-la uma "reacionária moderada". No toilete, novamente uma
calçola bege sem enfeite nenhum. Deve ter ficado frígida depois de
adulta e se convertido à ordem das Abstinentes de Jesus. Elas nunca
estiveram tão alegres e motivadas, até a productividade no trabalho
cresceu, como se seus problemas pessoais não tivessem mais importância.
Elas não se dão conta, mas seus dramas e frustrações passam a ficar
pequenos diante daquela colega misteriosa. E ela é tão bonita, tão
educada, tão prestativa, tão dedicada ao trabalho! Espalham suas boas
virtudes pela empresa e cada um que ouve acrescenta mais uma.
Todos ficam felizes em ter uma pessoas
tão amável e honesta como colega. O clima no seio da equipe fica mais
leve, o bom humor aflora, o ar condicionado é trocado por janelas
abertas e tudo fica mais bonito. Imaginem só, dar tanta importância a
problemas cotidianos! Problemas são parte inegociável da vida! Eles
chegam e vão embora, passam, acabam assim que são resolvidos. Tudo
graças àquela colega tão bonita e recatada! Que reacionária que nada! É
uma boa samaritana, isso sim! Deve abrir mão de alguns prazeres pessoais
em prol de quem precisa. De perigo iminente a musa do escritório, ela
passa em um segundo, e todo mundo vasculha a internet para saber mais
sobre o Maverick.
Em um mês, um dos colegas toma coragem
para falar com ela, com tato. Seis meses depois estão se casando, sem
que assuntos pessoais tenham sido ventilados por sua conta. Já pela
conta alheia...
Um comentário:
Soham 8-)
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