Uma das piores mazelas deste país, responsável por grande parcela da corrupção (e suas conseqüências) é a obsessão do brasileiro em parecer mais do que realmente é.
Não se trata só de alugar (ou mesmo roubar) um carro caro só para ir a uma festa e impressionar os outros, para depois voltar a andar em um pau-de-arra do transporte público. A vaidade antiga, talvez remanescente da dor-de-cotovelo de quem não conseguiu um título nobiliárquico, durante o Brasil-Império, ser chamado de 'doutor' é uma das (se não A) adulações mais populares em todo o território nacional.
Não, não é o mundo inteiro que gosta disso, na verdade mesmo aqui nem todos aceitam essa bajulação, inclusive eu. É um vício endêmico de países subdesenvolvidos com pretensões de desenvolvimento, mas que raramente fazem algo para se desenvolver, principalmente na mentalidade; e a nossa é cambriana.
Lembro da história contada por um motorista de táxi brasileiro, em Nova Iorque, que falou de um passageiro cujo sotaque ele reconheceu. No decorrer da conversa, o fulano exigiu "'Senhor, não"! 'Doutor'". Meio constrangido, durante a conversa, o taxista descobriu que o indivíduo era apenas bacharelado em direito, se recusou a continuar chamando-o pela titularidade que não tinha e provavelmente arranjou um inimigo.
Como tudo sempre pode piorar, e geralmente piora, um vício se banaliza com facilidade, quando mexe com os brios do sujeito. Hoje, especialmente no serviço público, todo mundo é 'doutor' ou 'doutora', mesmo quem mal conseguiu um bacharelado, como o cidadão do parágrafo acima. Onde trabalho (ao menos tento) eu comecei a cortar a bajulação pela raiz, mesmo percebendo a contrariedade do outro lado da linha telephônica. Alguém liga perguntando pela 'doutora Thaís' e eu logo emendo 'A Senhora Thaís' está em reunião. A moça com cara de menininha e riso fácil, é minha chefe imediata, não serei um condutor de adulação barata, ainda mais uma que envelhece tanto quem a recebe.
Aos que insistem em serem chamados por 'doutor fulano', digo três pequenas cousas, que a soberba do diploma (que talvez nem tenham) os fez esquecer: 'Doutor' não é pronome de tratamento, é titularidade; exigir tratamento titular, indevidamente, pode dar processo por falsidade ideológica; não há artigo algum na constituição que obrigue alguém a te chamar de 'doutor'. Ah, ficaste chateado? Que pena, bacharel.
É diferente de chamar um juiz (de direito, jamais o de futebol) de 'meritíssimo', especialmente em serviço. Aqui é um dos poucos casos em que cabe chamar pela titularidade, porque o cidadão só a perde se for muito estúpido, especialmente em um país onde tudo o que é ruim costuma ser relevado. Mesmo assim, já há os de bom senso que preferem ser chamados pelos próprios nomes, fora de uma sessão. E nem sempre gostam de ser chamados de 'meritíssimo' o tempo todo mesmo dentro de um fórum, mas aqui já é questão de se ser uma pessoa bem resolvida e segura daquilo que é e de suas responsabilidades, então não precisa ouvir bajulações o tempo todo.
Aliás, leitoras e leitores que foram baptizados com nomes antes de terem títulos, se há algo que o brasileiro médio não tem, é segurança de si mesmo. Costumamos ver filmes e paródias chamando o americano médio de idiota metido a besta, mas não olhamos com o devido cuidado para nossas próprias mazelas. O brasileiro é mais bairrista do que os ianques, às vezes chegando ao ponto de se considerar regional, depois nacional. Bairrista a ponto de muitos se considerarem 'paulistas' e desprezarem o resto do país, só para citar um exemplo mais em voga, porque isto é generalizado e não se restringe às regiões abaixo de Brasília, há paraenses que sonham em fazer do Estado um país soberano... E lá ter o título honorário de 'doutor', seja lá do que for.
O que um tem a ver com o outro? Tudo. A raiz é a mesma, tanto que em ambos os casos, não basta se achar o máximo, precisa esfregar sua condição imaginária nas caras dos outros. Tudo para, logo em seguida, voltar às suas frustrações e seus traumas de sempre, que a empáfia não é capaz sequer de ajudar a enfrentar. Não precisa de diploma de psicologia para saber que o brasileiro médio, à amiúde, é muito mal resolvido consigo mesmo e com seu país. Poucos conseguem se colocar no centro, a maioria se extrema na auto-piedade ou na arrogância sem embasamento.
A ilusão psicossocial de um título, ajuda a disfarçar o mal-estar íntimo. Sim, é o que vocês estão concluíndo, o Brasil precisaria importar psicoterapeutas, se o brasileiro assumisse seus complexos e decidisse acabar com eles. Não, não estou dizendo que o arrogante-mor do teu emprego é um coitadinho, eu disse que ele precisa de ajuda, se não reconhece é problema e hematoma para ele. Aliás, não tarda a encontrar alguém ainda mais doente e bem equipado para dar-lhe lições de humildade. Doentes psicológicos podem ser mais perigosos do que toxicômanos em crise de abstinência.
Como no caso do brasileiro que é (ou era, sei lá) taxista em Nova Iorque, pessoas apegadas a titularidades costumam guardar rancores com relativa facilidade, porque não adulá-las é tirar-lhes uma muleta. Cambaleiam e caem com muito mais facilidade. A ausência de um adulador, no grupo, para eles constitui uma ameaça. Claro que os aduladores profissionais estão atentos, prontos para defender a qualquer custo a honra e o prestígio do 'doutor zé mané'. Agora, além de platéia, ele tem um fã, que vai exaltá-lo e tirar proveito de tudo o que puder. Para quem ainda não percebeu, o adulador, na verdade, adula a si mesmo e se vê no direito de tirar o que puder do orgulhoso. Aqui, o 'doutor' pode ser traduzido como 'é um assalto' civilizado. Procurem por 'Fagundes, de Laerte Coutinho' e leiam as últimas tiras, é o exemplo que melhor ilustra este caso.
Alguém seguro de si, não tenta ser mais (nem aceita ser menos) do que realmente é. Não se esforça em provar algo, nem provar que não precisa provar cousa alguma. Não rebaixa e não exalta o outro, enfim, cuida da própria vida e só se mete na alheia se for convidado, ou se a vida alheia acabar invadindo a sua. Quem insiste em fazer de um título um pronome, ignora tudo isso, porque a insubmissão alheia o incomoda. Ele quer do outro o respeito que não tem por si mesmo.
Eu sou um extraterrestre por estas bandas, porque trabalho em uma autarquia em que qualquer um ao telephone é chamado de 'doutor', mas eu corto. Uso de toda a diplomacia possível, que ainda assim não evita o choque, para mostrar que não sou e não faço questão de ser tratado por 'doutor'. No máximo um 'senhor', porque já tenho idade para isso.
4 comentários:
A maioria dos doutores e doutoras de verdade que eu conheço não costuma nutrir essa obsessão pelo título, mas lidando com o "povão" é um tanto complicado quebrar o gelo e sempre tem um pessoal de formação mais rústica que acaba usando doutor como pronome de tratamento. Até comigo acontece às vezes de começarem a me tratar por doutor.
A propósito: como dizia um ex-professor meu, o brasileiro confunde demais formalidade e cerimonialismo como se fossem sinônimo de educação.
http://dzulnutz.blogspot.com/p/doutor-e-quem-tem-doutorado.html
Concordo contigo e com teu ex-professor. É dessa gente mais simples, aliás, que os espertalhões mais se aproveitam.
Tem gente simples que se impressiona com pouca porcaria e assim acaba se deixando intimidar por qualquer idiota, e isso facilita para os falsos doutores arrotarem prepotência. Mas chega para um desses que se iludem com os falsos doutores e começa a tratar bem, dando bastante atenção até para quebrar um tanto o gelo, e mesmo assim por estarem tão condicionadas com essa história de "doutor" fica difícil abandonarem o costume equivocado
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